Foto: Tiago Frois
“Estamos mais no mundo das ideias e não tanto no das convenções”
Os tempos de Ghuna X já lá vão. Pedro Augusto, produtor crescido em Leiria e que passou a última década e meia a criar e a compor no Porto, confessa ter chegado “a um limbo em termos de exploração sonora e rítmica” e decidiu partir para uma nova aventura. O músico, que já partilhou o seu talento tanto com Capicua como com Black Bombaim, não queria estar sozinho nesta fase e por isso puxou para o seu lado amigos e colegas músicos para partilhar a vontade de trabalhar dentro do cancioneiro português. Depois de um EP e de um trabalho de remixes – ambos editados no formato cassete – Pedro Augusto, Ece Canli, Gonçalo Duarte e Miguel Ramos editaram o primeiro disco, Toada, um projeto de recolha de temas que fazem parte da raiz da canção portuguesa, de nomes como José Afonso, Vitorino, GAC ou Brigada Victor Jara, num formato ligado à eletrónica experimental, pausada, densa, ecoante, que sabe ser soturna e também sonhadora.
O disco Toada faz na sua génese uma espécie de reinterpretação e revisitação daquilo que é uma parte do extenso cancioneiro tradicional.
Não é só cancioneiro tradicional, porque decidimos incluir neste cancioneiro o Fausto [Bordalo Dias], para pôr tudo ao mesmo nível. A ideia era trabalhar à volta da música portuguesa, por este cancioneiro é mais alargado, mais dedicado à música portuguesa.
Mas era algo que pensavas desenvolver já durante o projeto de Ghuna X?
Não estava a pensar nesta aplicação em concreto. Estava a pensar num tipo de andamento, mas não propriamente no cancioneiro português. Podia ser, por exemplo, música de trabalho e essa música de trabalho ser mundial. Essa parte, mais ritualista e performativa, surgiu desde o início. A parte em concreto da música portuguesa não surgiu logo desde o início, mas também estamos a falar de um projeto com dois ou três anos, pelo que o início pode ainda estar a acontecer!
Ainda assim, enquanto Live Low, tu e os teus colegas de banda – Ece Canli, Gonçalo Duarte e Miguel Ramos – já fizeram um EP e um trabalho de remixes. E já aí se notavam esses andamentos de que falas, os ritmos.
Acho que são os andamentos que definem o nosso estilo, que dão a forma ao que fazemos. Também, e por comparação com as coisas que fazia antes, tem mesmo que ver com abrandar, tornar tudo mais do plano terreno rural – e não urbano! Tem muito que ver com o ritual do trabalho, com pausas e silêncios. O groove do trabalho não é igual ao do industrializado. Os próprios timbres também remetem para um universo menos industrial, mais empírico e rural.
“São os andamentos que definem o nosso estilo, que dão a forma às coisas que nós fazemos. Também, e por comparação com as coisas que fazia antes, tem mesmo que ver com abrandar, tornar tudo mais do plano terreno rural – e não urbano”
O que é que te puxou para essas temáticas?
Não sei… várias coisas. Uma aproximação ao campo, que até esteve sempre na minha vida, mas houve uma certa epifania.
Começaste a passar mais tempo no campo?
Também, mas não tem só que ver com isso. Eu posso estar no sítio errado e ter uma epifania sobre o sítio certo. Mas não aconteceu uma coisa na minha vida, de repente, que tenha feito pensar. É mais um acumular de coisas: também queria estar num projeto com mais pessoas, com uma linguagem que fosse um bocado comum. E estas pessoas também sabem ter este universo dentro delas!
Como é que nasce a relação entre vocês?
O Miguel Ramos é, provavelmente, a pessoa que conheço há mais tempo e já nos envolvemos em projetos que não eram nossos, mais institucionais, e cruzámo-nos algumas vezes. Até ao dia em que fomos beber uma cerveja e começámos a falar de música e a perceber que tínhamos algumas coisas em comum, sendo a mais óbvia a ideia de fazer uma versão da mesma música do Fausto, “Lembra-me um Sonho Lindo”. Depois, a Ece, que é turca [diz-se ‘Edge’], mas vive no Porto: por umas certas ligações, ela pediu-me ajuda para um trabalho e eu ajudei-a – e acabei por fazer o mesmo com ela. A partir daí percebemos que tínhamos o mesmo tipo de ideias e um processo semelhante de trabalho, então como sempre tentei trabalhar com voz, achei que era a pessoa indicada. O Gonçalo foi simples: estava a ver um concerto de Equations e achei que o timbre dele tinha muito a ver e parecia muito fixe!
“Queria estar num projeto com mais pessoas, com uma linguagem que fosse um bocado comum. E estas pessoas também sabem ter este universo dentro delas!”
O projeto assenta mais nas melodias do que nas palavras. A Ece conseguiu relacionar-se também com este lado do cancioneiro português?
A opção da palavra é muito clara: as coisas não têm que ser feitas de uma forma tão literal. Nós estamos mais no mundo das ideias sobre a música e não tanto no das convenções. Mas ao longo deste processo todo, fomos trocando muito material: discos ou coisas que encontrávamos nas Internet, então a própria Ece mostrou-me muita coisa que eu não conhecia, porque também se estava a envolver muito com aquilo e a deixar-se levar e a gostar de saber mais sobre a música portuguesa. Se fosse turco, acho que ia gosta de ouvir uma música como “O Sol”, ou “Sonho Lindo”, do Fausto: acho que há coisas ali, para lá da letra, que tem muito sentimento.
O que é que descobriste em ti com o aprofundar da tua relação com o cancioneiro português?
O universo musical português que eu conhecia era de um passado mais ou menos recente, dos anos 1970, a partir do Zeca, do Sérgio Godinho ou do José Mário Branco. Eram artistas que eu poderia ouvir na minha infância, mas não frequentemente. A partir do momento em que comecei a recapitular, fui à procura de saber mais de outros artistas além destes que são os maiores e a partir daí comecei a retroceder temporalmente, a cruzar-me com o material do Fernando Lopes-Graça, do Michel Giacometti, porque é difícil cruzares-te com material desse e não sentir um apelo em procurar. Quis saber onde é que andaram e o que fizeram. Lembro-me que ia num táxi, super tarde, onde estava a dar uma música que eu não conhecia, mas que achei fenomenal: percebi que era política, porque referia-se a uma data, e porque achei a fusão que se ouvia, com gravações de campo, coros e instrumentos variados. Quando cheguei a casa percebi que era do Grupo de Acção Cultural (GAC) e fiquei espantado por ver que o Adriano Correia de Oliveira, o José Mário Branco ou o Manuel Freire fizeram parte, andaram por aqui e por acolá. Fui criando uma base de dados na cabeça, que foi sempre crescendo! Comprando um disco aqui, outro ali, e a base de dados começa a crescer também fisicamente.
“Ao longo da vida vais-te cruzando com discos e relacionando com a música de maneira diferente: um dia ouves um disco que não te bate tanto, mas um ano depois vais ouvir aquilo e pensas como é que não te bateu da outra vez! Acho que foi isso que me aconteceu com vários discos”
Achas que esse teu trabalho de pesquisa até pode ter despertado algo que poderia estar escondido lá na parte de trás da tua cabeça?
Acho que sim! Foi também encontrar o momento certo para descobrir esse material. Ao longo da vida vais-te cruzando com discos e relacionando com a música de maneira diferente: um dia ouves um disco que não te bate tanto, mas um ano depois vais ouvir aquilo e pensas como é que não te bateu da outra vez! Acho que foi isso que me aconteceu com vários discos.
Também se pode dizer que a tua experiência de produtor de música eletrónica ajudou a levar esta recriação do cancioneiro para paisagens menos óbvias?
Nos meus outros trabalhos como produtor, que sempre gostei e que aqui se mantém – que acho que se mantém! – é esta fusão de instrumentos: de repente haver uma voz ou uma guitarra elétrica no meio de uma salganhada eletrónica. Ou então gravar sons concretos, criar um ritmo, mas depois haver sintetizadores e linhas de baixo ou um teclado qualquer. Essa fusão, que sempre explorei, aqui ainda se mantém – e é algo de que ainda estamos à procura!
“Nos meus outros trabalhos como produtor, que sempre gostei e que aqui se mantém – que acho que se mantém! – é esta fusão de instrumentos: de repente haver uma voz ou uma guitarra elétrica no meio de uma salganhada eletrónica”
Acredito que ainda estejam à procura de muita coisa: da identificação e ligação uns com os outros, de perceber o que gostam mais e o que gostam menos, mas também de descobrir o que gostavam de fazer daqui para a frente. No teu caso, depois de dois EPs e deste disco, como é que olhas para a banda? Já pensam em partir para outras aventuras?
Acho que sim. Há muitas coisas que ainda não fizemos: sentarmo-nos os quatro frente a frente e, simplesmente, improvisar. Tocar alguma coisa. Este disco foi bastante planeado: encontrávamo-nos isoladamente, seccionalmente, mas com ideias bastante claras. O processo foi bastante executivo e acho que nos está a faltar a parte da folha em branco e tocar. Acho que assim também se vai traduzir em performances ao vivo, em concertos, mais intensos, que também nos está a faltar.
Entrevista: Bruno Martins