“Acho que os meus ouvidos são anotadores natos, desde sempre”
Archivo Pittoresco é o nome do terceiro trabalho, em quase duas décadas de canções, de Lula Pena. Um trabalho de memória, física e mental, transfronteiriço e livre. Uma liberdade que temos sentido em quase todos os momentos da carreira de Lula Pena: nos discos e no palco. Na composição deste álbum, ao sentir as amarras da criação, decidiu soltou as cordas da guitarra — mudou-lhe a afinação. E quase que descobriu um novo instrumento e terras virgens para para soltar a voz e as palavras — também elas livres, sempre. Seja lá em que língua for.
Passaram 12 anos entre o seu primeiro e segundo disco. Agora foram seis entre o segundo e este Archivo Pittorsco. O que é que significa este encurtar de tempo entre edições? Um maior conforto na altura de escrever canções e gravá-las?
(sorri) Não. Eu não vejo esse encurtamento da mesma maneira. Para mim é um período longo e necessário de qualquer das formas. Não há uma aceleração das partículas. Talvez tenha havido uma expansão nas pessoas com quem colaboro e que, isso sim, faz com que o processo tenha que ser pré-definido com maior assertividade. Se calhar o encurtamento dos anos passa mais pela equipa com quem estava a colaborar do que por mim, ou por uma consciência pessoal para não demorar tanto tempo.
Mas podia ter encontrado um outro conforto com as palavras e com a guitarra.
O tempo dá-nos a possibilidade de permanecer noutra qualidade, noutra escuta, noutra exploração. Mas quando percebemos que tipo de matéria conseguimos construir, o tempo vai envelhecer essa matéria, mas não lhe junta nenhum bónus. Se juntar, nunca é em disco: o disco é completamente atípico neste processo de tempo, é uma natureza morta no envelhecimento. Mas talvez, pensando assim, o próximo disco seja daqui a três anos — se eu ganhar consciência de como é que se faz um disco, algo que ainda não fiz, talvez até amanhã possa editar um outro!
Como é que tem pensado até agora, se não foi assim até agora? Quais são as fronteiras que existem à volta dos seus discos?
Tem sido como desenhar à vista. Uso a memória e o esquecimento — tanto a memória mental, como a memória física do corpo, com a guitarra, com os dedos. Há um conjunto de sensores que vão registando os inúmeros passos e portanto é isso. Não há uma partitura, não reproduzo a partir de nada, mas estou antes a processar informação a partir da memória e do esquecimento.
“A afinação aberta provocou um reportório aberto. Eu percebi que tinha atingido um limite e tinha percebido que podia fazer pouco mais em relação à guitarra. Questionei que possibilidades podia haver para trocar de instrumento, por exemplo”
Diz que é necessária a passagem do tempo é um período longo e necessário. Como é que passa o seu tempo de composição à volta da guitarra?
Há uma relação sensível, mais intuitiva. Não tenho uma relação académica com a guitarra e por isso permite-me criar um diálogo improvisado com ela própria. As coisas vão surgindo, vão-se tricotando em simultâneo: a voz e a guitarra. Normalmente há que criar uma espécie de metáfora e aí é a guitarra que vai criar esse movimento. Neste último repertório também há a exploração de uma afinação diferente da standart, o que me remeteu logo para um outro habitat, até na coreografia dos dedos. Tudo o que tinha auto-aprendido até então, transformou-se. Foi como tocar um outro instrumento.
Quase uma nova descoberta da guitarra.
Exatamente. Os elementos percussivos, rítmicos, já estavam a brotar. Mas a afinação aberta provocou um reportório aberto. Eu percebi que tinha atingido um limite e tinha percebido que podia fazer pouco mais em relação à guitarra. Questionei que possibilidades podia haver para trocar de instrumento, por exemplo.
Toca mais alguma coisa?
Tocar verdadeiramente não. Improviso em quase tudo, mas não toco no sentido mais harmónico da palavra. Mas, por sentir esse limite na guitarra, fui à procura de outro. É em base por aquilo que é a afinação deste repertório que este disco se tornou naquilo que é: todos passos que eu dei para superar os meus limites, de repente estão refletidos neste repertório. É como se dissesse que a Língua Portuguesa não me serve, então que língua posso usar? Há uma expansão de géneros, de sonoridades, que me ajudaram a superar um limite e a debruçar num novo território.
Os seus discos nunca têm tido fronteiras muito definidas. Tem abraçado vários géneros, da Europa, ao Brasil, passando por África. As fronteiras, neste Archivo Pittoresco, diluem-se ainda mais?
Sim, completamente. É porque também é um repertório mais líquido. As vagas, as ondulações e as marés cruzam-se, coincidem. Eu acho que também é mais fácil não sentir essas barreiras pelo facto de ser só uma voz e uma viola, por isso as referências são muito primárias. A alquimia na escuta são as pessoas que a fazem — e eu também, claro. Mas o que é que temos de referência para considerar que um tipo de música é blues, que outro é fado… quais são os ingredientes? O que me interessa a mim é perceber o que é que todos têm em comum.
Enquanto ouvinte de música também vai faz escolhas aleatórias e “transfronteiriças”?
Completamente. Estou a lembrar-me de uma cantora romena que parecia estar a cantar criolo de Cabo Verde. No fundo poderíamos considerá-la a Cesária Évora romena! Mas facilmente podemos identificar o som do berimbau noutras culturas asiáticas. Eu faço isso quase muito naturalmente: acho que os meus ouvidos são anotadores natos, desde sempre, desde que me lembre e muitas vezes para grande infelicidade minha (risos) — mas tento usá-los a meu favor — e consigo estabelecer essas relações, intuitivamente.
“Eu gosto muito de fazer uma arqueologia das palavras, de entender o processo evolutivo — tal como os estilos musicais, que muitas vezes nascem de outras culturas e de repente dão corpo a um estilo de música que pode ser identitário, económico e político. Mas as palavras também podem ter esse efeito, quase de acupunctura na escuta”
Temos estado a falar muito de melodias e do lado musical. Mas e as palavras? Também existe esse cruzamento natural e transfronteiriço entre palavras no repertório deste Archivo Pittoresco?
Também e talvez com a mesma intenção. De criar poli-sentidos, que nos permita reconhecer com as palavras ou com as línguas. Como quando desfocamos o olhar sobre qualquer objeto e ele nos parece ser outra coisa. Se conseguíssemos desfocar os ouvidos das palavras, por exemplo, veríamos múltiplas outras coisas. É como achar que se dermos a patine de blur à língua russa, vai parecer português.
Mas precisa de saber o que significam as palavras que canta?
Sim, eu gosto muito de fazer uma arqueologia das palavras, de entender o processo evolutivo — tal como os estilos musicais, que muitas vezes nascem de outras culturas e de repente dão corpo a um estilo de música que pode ser identitário, económico e político. Mas as palavras também podem ter esse efeito, quase de acupunctura na escuta. Se isso é o efeito que tem em mim, também pode ter em mais alguém. É por aí eu alimento esta forma de cozinhar os sons — sejam das palavras ou não.
“Não tenho uma relação académica com a guitarra e por isso permite-me criar um diálogo improvisado com ela própria. As coisas vão surgindo, vão-se tricotando em simultâneo: a voz e a guitarra”
O primeiro single — chamemos-lhe assim — deste disco começa com uma canção em grego que diz “Dá-me uma palavra”.
Sim, “Pes mou mia lexi”. Dá-me uma palavra, diz-me uma palavra… há uma demanda de se saber qual será a palavra, uma espécie de enigma ou de jogo que, talvez no meio disto, possamos resgatar uma palavra que estava adormecida ou por inventar. Na nossa existência, o herói que cada um é terá que desbravar terreno, matar dragões e resgatar uma palavra, ou então com arte e engenho, inventar uma palavra que possa ter um efeito similar àquele que foi destruído ou está completamente perdido.
Porquê a escolha de um tema em grego?
Vários factores. Também teve a ver com a minha passagem pela Grécia na altura em que as manifestações da rua se sentiram de maneira muito forte e às quais eu senti em parte e até gravei. O som do povo a manifestar-se era qualquer coisa de tão harmónico — parecia um coro grego, um silêncio fundo ao mesmo tempo — e a possibilidade de se reconhecer algumas palavras. A palavra “lexi” será facilmente reconhecida por todas as outras culturas e línguas: é uma palavra que todos os países europeus, pelo menos, herdaram. Há essas referências: por muito que não tenhamos esse conhecimento, há essa sabedoria imediata, quase de sabor — soa-nos a qualquer coisa de familiar. O grego também por ter essa mitologia associada nessa jornada do existir.
Archivo Pittoresco era também o nome de um jornal ilustrado lisboeta. É daí que vem o nome deste disco?
Em parte sim, mas o “pittoresco” — não relação a esse jornal, especificamente — em relação à forma como aglomeramos a informação que pode ou não ser mundana. É o “pittoresco” pela maneira como exploramos de forma incerta os dias e as noites da nossa vida. Por muito que lhe queiramos impor regras, austeridade, ou predestinação vamos dando conta que há um caos instalado que terá a sua ordem, mas imperceptível. É o lançar um desafio ao que é incerto, imprevisível, ao que tem mais ou menos um mapa possível a percorrer, mas tudo pode acontecer pelo caminho. O desafio deste repertório é a recolha de certos dados da minha percepção, da minha consciência, em que tento pô-los em relação uns com os outros. São modulações constantes, a cada concerto, a cada tirada, que é pitoresco! Pitoresco no sentido de quebrar um certo cânone familiar e encontrar os outros semitons.
Existe muita ligação entre essa forma de compor, meio imprevisível, com o desenho?
Eu já perdi a mão no desenho… já não desenho há anos. O que fiz mais até foi desenho gráfico, estilizar mensagens, comunicar de forma clara qualquer coisa, sem descuidar, obviamente, o aspeto técnico e tudo mais. Aí talvez haja relação, talvez me tenha influenciado na composição — até pela escolha da voz e da viola como elementos de trabalho. Eu já não desenho e também não escrevo aquilo que componho: está tudo em memória! No corpo e mental. Isso é definir e eu não quero, até porque sou um bocadinho supersticiosa. Lembro-me de gravar algumas etapas da composição, mas há sempre um inimigo presente: quando a minha intenção é muito clara, há um inimigo que se instala (risos). A única forma de não estar presente, é não revelar a intenção inicial, se não ele surge e passamos ao território das artes marciais.
Como é que damos forma a esse inimigo? Como o descrever?
É definindo os nossos pensamentos, pensar num plano, estabelecer limites, horários… tudo o que é do reino do previsível. Quanto mais informação se der, mais o inimigo ganha o corpo necessário a desafiar a previsibilidade. O meu prazer maior, e medicina, é desafiar o inimigo estando o mais possível na imprevisibilidade e na invisibilidade, também.
“A minha composição tem sido como desenhar à vista. Uso a memória e o esquecimento — tanto a memória mental, como a memória física do corpo, com a guitarra, com os dedos. Não há uma partitura, não reproduzo a partir de nada”
O que é que surge primeiro na sua expressão artística? As palavras ou a guitarra?
Talvez a guitarra tenha ganho mais protagonismo. E neste repertório sem dúvida. Quase que me convenci que faria sentido cantar, mas o cantar quase que nem seria necessário estar num disco — seria uma viagem puramente instrumental e a voz surgiria em contextos outros, como aqui na rádio ou concertos. Sempre de forma inesperada. Interessa-me a desafiar o público a estar disponível, da mesma forma que eu o estou de cada vez que agarro na guitarra.
Como é que relaciona estas canções com o palco e com as pessoas?
Não sei muito bem. Eu sinto que há um ritual, um espaço comum, em que as pessoas e eu nos instalamos no espaço que nos é proposto. Depois é um ritual de adaptação de fazer com o que temos em tempo real. Claro que eu também ouço o público: o silêncio, os desconfortos, tosse ou cadeiras a ranger. São tudo elementos do ritual.
E sente-se confortável com esse ritual?
No início de todo e isso até talvez tenha feito questionar-me, muitas vezes, se estava no sítio certo. Custava-me imenso subir a um palco e estar à frente de uma plateia. Depois fui relativizando. Não há forma de não sentir uns certos tremores e angústia, sobretudo porque, lá está, é o reino do previsível: é o tal inimigo que diz que “daqui a cinco minutos o concerto vai começar”! Eu preferia entrar para a sala quando me sentisse pronta e, naturalmente, o público e eu encontraríamos o momento certo.