“Nós, entre os técnicos portugueses, somos os mais brutos e mais caóticos”
Tocamos à campainha dos estúdios HAUS, perto de Santa Apolónia, em Lisboa numa fria noite de dezembro. A porta com janela lá para dentro permite-nos ver Makoto Yagyu e Fábio Jevelim a descer as escadas a correr para nos convidar a entrar e a ocupar um dos lugares do sofá que se encontra logo ali, numa espécie de hall ideal para conversar, fumar cigarros e beber duas minis. Têm sido dias longos nesta que é a casa dos PAUS, mas onde têm nascido, no último ano e meio, muitos outros álbuns.
Do primeiro andar vem também um riff abafado que percebemos ser bem pesado e distorcido. Está no forno mais música a sair, neste caso mais um dos projetos pessoais de Makoto e Fábio, os Riding Pânico, que deverá estar aí a rebentar – é questão de ficarmos de ouvidos abertos.
Têm vista para Santa Apolónia, mas não andam a ver comboios a passar: Makoto e Jevelim têm sido responsáveis pela produção e mistura de um par de importantes discos que saíram no último ano. A começar nos projetos das bandas da casa – Mitra, dos PAUS, e Linda Martini (Sirumba, do ‘sócio’ Hélio Morais) – passando ainda por Marrow, disco dos You Can’t Win Charlie Brown em que foram responsáveis pela gravação, Pensar Faz Emagrecer dos Galgo ou Maus Lençóis, dos Quelle Dead Gazelle.
A dupla já trabalha junta há um par de anos, desde os tempos nos estúdios Black Sheep. Agora têm pouso próprio e é por aqui que continuam a desenvolver uma identidade e sonoridade próprias enquanto produtores. Definem-se como brutos e caóticos, mas com capacidade de adaptação às várias bandas que por ali passam. “Isto não é como assar frangos, que é sempre da mesma maneira”, sintetiza Jevelim.
O HAUS fez, em setembro de 2016, um ano. Qual é o balanço que fazem do trabalho desenvolvido aqui até agora?
Makoto (M) – Este primeiro ano e meio tem sido quase sem parar. Quer seja em trabalho de gravação de bandas, a trabalhar e a produzir, mas também em trabalho de “bricolage 2.0”: que é a montar o estúdio.
Como é que o estúdio está neste momento?
Fábio Jevelim (FJ) – A nível de construção diria que estamos a uns 90 por cento. Ainda há uns painéis para fazer, mas acho que desde que abrimos, e até agora, temos estado sempre a trabalhar a 100! Mesmo quando ainda não tínhamos a acústica perfeita já íamos gravando bandas.
M – Por exemplo, quando estávamos a fazer o disco de PAUS: durante o dia fazíamos música e gravávamos e depois à noite fazíamos bricolage – trolha life! E no dia a seguir, quando ia ouvir o que tínhamos feito, já parecia diferente porque a acústica ia mudando. Começámos a gravar com as paredes abertas, com pladur, sem tratamento acústico. Quando fomos ouvir a última mistura das canções, já não era a mesma coisa: todo o universo à volta tinha mudado.
O disco dos Paus foi o primeiro disco do Haus?
M – Gravámos um EP antes, de uma banda de hardcore. Não temos bem o nome, porque quando vieram cá ainda não o tinham. Essa foi mesmo gravada só com paredes, sem tratamento acústico.
FJ – Só com o disco de PAUS é que começámos a montar os painéis de som.
“Aquilo que adotámos e achamos que é o correto – não estou a dizer que é o conceito de um produtor, porque não tenho certeza – mas é adornar e fazer o que o músico quer; puxar por ele da melhor forma. Elevá-lo naquilo que ele é melhor, da melhor forma que tu achas que ele consegue” – Makoto
Já tinham experiência de produção de outro estúdio, os Black Sheep. Como é que começou o vosso interesse pela produção? Foi por necessidade?
M – Não. Eu ouvia de música, comecei a tocar em bandas e, a certa altura, a interessar-me pelas gravações, pelos amplificadores – quais eram os que faziam o som melhor em consonância com, por exemplo, um microfone. Fui-me interessando cada vez mais, tirando uns cursos, até que fui para Inglaterra onde estudei durante dois anos. Voltei com mais teoria, mais certezas e conhecimentos: percebi que era disto que eu gostava.
FJ – Eu comecei a fazer música eletrónica: drum ‘n’ bass e hip hop, em FRUITYLOOPS, nesses programas mais manhosos. Depois de começar a produzir cenas eletrónicas, passei naturalmente para a minha base como músico – rock, instrumentos reais – e senti a necessidade de aprender essa parte. Quando fui trabalhar com o Makoto, já sabia mexer nos programas, com as bases eletrónicas, mas faltava-me a parte dos microfones e o aspeto da produção, mas crio música há tanto tempo que uso essas bases de conhecimento para a produção.
M – Para seres um bom produtor não precisas de ser um bom técnico. E vice-versa. Nós fazemos as duas coisas.
O trabalho que têm feito com as vossas próprias bandas, desde os Riding Pânico até aos Paus, também tem sido importante para desenvolver a vossa marca enquanto produtores? E essa marca existe?
M – Claro, mas não acreditamos como sendo uma premissa, só que naturalmente isso acontece. Somos bastante camaleões e conseguimos produzir várias coisas, vários estilos diferentes. Podemos produzir algo que seja completamente diferente daquilo que estamos a fazer e que seja a nossa assinatura e não percebes que foi feito por nós. Mas um produtor, normalmente, tem a sua assinatura: nós temos um som de bateria, temos um som de guitarra e uma forma como a mistura é distribuída. E quem é músico ou produtor consegue perceber isso: eu, pelo menos, consigo perceber várias coisas de outros produtores e que dá para identificar.
“Ainda há muitas bandas que vêm para aqui e não têm ideia do som, um som próprio. O que tentamos fazer é criar o som base da banda, que pode mesmo estar perdida” – Fábio Jevelim
Mas essa assinatura trabalha-se?
FJ – Acaba por sair naturalmente. É como ouvir música: gostas de vários estilos de som e depois ouves tudo e acaba por ser essa a tua música. Na produção é a mesma coisa: tens certos sons de guitarra de que gostas, há certos efeitos de que não gostas, e ao eliminar alguns sons e efeitos, acabas por ter a tua assinatura inconscientemente.
M – Aquilo que adotámos e achamos que é o correto – não estou a dizer que é o conceito de um produtor, porque não tenho certeza – mas é adornar e fazer o que o músico quer; puxar por ele da melhor forma. Elevá-lo naquilo que ele é melhor, da melhor forma que tu achas que ele consegue.
E não dão só de conselhos mais técnicos, de pedais ou amplificadores.
M – Não desvirtuando o conceito e o estilo do músico, mas vou sempre puxar pela minha ideia, por aquilo que eu acho que é um bom som de guitarra.
FJ – Até porque muitas pessoas que vêm aqui gravar vêm à procura do nosso som. Por isso, é normal puxar por isso, também. E ainda há muitas bandas que vêm para aqui e não têm ideia do som, um som próprio. O que tentamos fazer é criar o som base da banda, que pode mesmo estar perdida.
Vamos a exemplos práticos deste vosso último ano. O Marrow, dos You Can’t Win Charlie Brown, foi um dos discos gravados aqui no HAUS.
M – Sim, gravámos, não produzimos.
FJ – Mandamos sempre uma dica ou outra, mas eles ficaram com a parte da produção maior. Nós só demos um eyliner (risos).
M – Acompanhamos sempre, mas não fizemos aquilo que o Fábio estava a dizer, de ajudar a criar o som da banda. Já são uma banda mais experiente, com uma identidade tão vincada que até nós já temos uma ideia daquilo que eles são e o processo encaminha para o lado que eles querem – e que nós também achamos que eles querem. Naturalmente já vamos para ali.
Mas é curioso que Marrow é capaz de ser o disco mais explosivo da parte da banda.
M – É um disco diferente.
FJ – Mas a diferença é marcada pela produção deles. O que nós ajudámos a fazer foi o som: nós somos mais brutos na gravação, por isso é normal que sintas um som mais explosivo.
No caso do Pensar Faz Emagrecer, dos Galgo, aconteceu-me aquilo que o Makoto disse há pouco: escutei o disco e fiquei com a impressão de que teria sido gravado aqui.
FJ – Os Galgo têm uma identidade sonora próxima às nossas bases. O que fizemos aqui, e que foi ideal para a banda, foi eles gravarem em take direto – todos juntos, a tocar – e o que fizemos em seguida foi meter efeitos e depois meter guitarras. Só que o som deles já é próximo da nossa realidade. Tudo isso junto acaba por ser uma identidade HAUS e Galgo.
M – O facto de o som deles se aproximar do HAUS também vem deles, que já vinham com algo próximo – sem pretensiosismos.
Também foi assim com os Quelle Dead Gazelle?
M – Mais ou menos. Fizemos o som no primeiro EP.
FJ – Nós fomos tocar com Riding Pânico, já não me lembro em que festival. Por acaso fui ver o alinhamento do evento, vi um vídeo deles e curti muito o som, então abordei-os para saber se não queriam gravar um EP. Disseram-nos que não tinham muito dinheiro, nós respondemos que pagavam só metade porque gostávamos muito do som. Quando vieram, pudemos meter mas as mãos na massa porque eles não tinham nada gravado. Começámos a puxar efeitos e hoje em dia já estão a velocidade cruzeiro.
M – E hoje em dia o [Miguel] Abelaira até já faz parte do som que sai do HAUS, já tem muito cunho dele. E o Pedro [Ferreira, guitarrista] também. São duas pessoas que entraram no nosso ambiente. Eu estou a misturar e o Pedro aparece: é daquelas pessoas em quem eu confio.
O que é que é o som do HAUS?
FJ – Nós vamos mudando as coisas, mas acho que nós, entre os técnicos portugueses, somos os mais brutos e se calhar mais caóticos em efeitos esquisitos ou dissonantes – com efeitos estranhos. Essa talvez seja a nossa influência. Mas se vieres com uma banda em que isso não faz sentido, o som já não vai ser igual.
Não têm cá bandas que fujam a esse conceito? De hip hop, por exemplo?
M – Aqui no HAUS não, mas antes de virmos para cá gravámos e mixámos vários discos de hip hop! Aqui em Santa Apolónia é que nunca calhou.
FJ – Tem sido mais para o pop e para o rock. Há pouco tempo apanhámos uns miúdos que são os Marufa, que estão agora a começar: não têm uma identidade de rock sónico como nós produzimos, mais bruto, então fomos para outro lado: temos uma sala em que o meio tem um som muito vivo e noutra parte é sequíssima. Gravámos a bateria aí porque fazia mais sentido. Nós não somos sempre brutos e o nosso estilo não é sempre o mesmo: vamo-nos adaptando de banda para banda. O som e a música são tão conceptuais… não é como assar frangos, que é sempre da mesma maneira.
M – Eu também não conseguia estar sempre a gravar a mesma coisa!
Como é que está o mapa de gravações do HAUS para 2017?
FJ – O planeamento de calendário num estúdio está sempre a ser montado.
M – os estúdios têm um aspeto meio sazonal. Quando a malta toca há mais tempo – e toca mais – há um período do ano em que vão tocar ao vivo e não gravam nada. Depois, de repente, param os concertos, descansam – vão para a praia, para a Costa Vicentina apanhar um sol e volta tudo com vontade de gravar discos, tudo na mesma altura.
FJ – E nós arranjámos uma estratégia de ajudar bandas mais pequenas a gravar aqui ou, pelo menos, a registar o primeiro single que as consiga projetar de alguma forma. É um plano de “um single num dia”, em que saem daqui e podem mandar logo para a rádio! Durante este ano vamos ter muitos singles a saírem daqui de bandas novas.
Como é que arranjam espaço e tempo para os vossos projetos criativos?
M – Marcamos! Nós não ficamos à espera da inspiração. Marcamos o estúdio e a inspiração tem que vir, se não vier estamos fodidos! Temos os dias marcados para Riding Pânico, temos que fazer o disco.
“Nós não somos sempre brutos e o nosso estilo não é sempre o mesmo: vamo-nos adaptando de banda para banda. O som são tão conceptuais… não é como assar frangos, que é sempre da mesma maneira” – Fábio Jevelim
Mas para haver a decisão de se marcar o estúdio, é sinal que há qualquer coisa a ferver aí dentro.
M – É agenda (risos).
FJ – Nós também olhamos para o timeline: se não sai um disco há dois anos, se calhar está na altura. Com PAUS, o que fazemos é marcar na agenda, entrar direto sem nada – ou com um riff ou outro – e sai tudo naturalmente.
M – Estamos a acabar a composição e gravação de Riding Pânico, que deverá sair agora no início do ano.
E têm sala marcada para voltar às gravações com Paus?
M – Não. Temos uns concertos, uma tour. Mas a certa altura deste ano deveremos fechar-nos lá em cima [no estúdio]. Falámos nisso, mas ainda não temos nada agendado.
FJ – Este será o segundo ano do Mitra e então é nesta altura que começamos a pensar em marcar uns dias para ver o que é que sai.
Entrevista: Bruno Martins