“O único sítio onde me sinto verdadeiramente confortável é em cima de um palco”
Dois mil e dezasseis foi um ano feliz para Marta Ren. Foi o ano em que viu nascer, finalmente, um disco que desejava há muito tempo. Agora sem projetos paralelos: apenas a sua visão, pura e dura, o carimbo da sua paixão pela soul. Para isso, chamou para seu lado dos The Groovelvets, um grupo de músicos à moda antiga, com um enorme groove, que criam o cenário ideal para que todos possam descobrir a incrível voz da cantora nascida no Porto há 35 anos. Stop, Look, Listen é um ótimo conselho para se poder descobrir o primeiro álbum a solo de Marta Ren que hoje, às 23h, sobe ao palco da Casa da Música, no Porto e que nos conta aqui uma parte do caminho que percorreu e de algumas influências marcantes na sua vida, como foi, por exemplo, Sharon Jones.
Pela forma como se sente a tua voz, como a forma que interpretas, e até pela banda que escolheste para te acompanhar – os The Groovelvets – pode dizer-se que este Stop, Look, Listen era um disco que querias fazer há muito tempo?
Era. Era o disco que queria fazer ainda antes de ter os Bombazines – em 2007 ou 2008. Já estava na minha cabeça há uns anos, mas precisava de reunir várias condições: as de tempo, as económicas, as artísticas para inspiração e criação para conseguir levar isto para a frente.
Para fazer um disco como este também é preciso ter tempo de viver?
Sim. Embora tenha começado a cantar profissionalmente muito cedo – aos 15, com os Sloppy Joe. Hoje tenho 35, portanto já lá vão 20. Essa experiência foi adquirida nestes 20 anos. Sou uma pessoa curiosa, que gosta de arriscar na vida e com as pessoas. Mesmo que a vida me tenha ensinado que não posso confiar em toda a gente, ainda dou hipóteses e confio, por isso ainda me desiludo. Mas são coisas que fazem parte da vida para conseguires ter inspiração para escrever sobre a vida. Não é fecharmo-nos em casa a viver pelas redes sociais. Eu gosto de ler, mas também gosto de viver. Tenho-me protegido num grau mínimo, mas depois desprotejo-me muito para poder viver as coisas e poder escrever sobre elas.
Mas concordas que uma mulher de 25 anos, a cantar estas músicas, é diferente de uma mulher de 35.
É claro que sim. Cada ano que passa vais aprendendo e vais vivendo. Vais-te surpreendendo e também desiludindo. Vives a vida como ela é.
“Tenho-me protegido num grau mínimo, mas depois desprotejo-me muito para poder viver as coisas e poder escrever sobre elas”
O Stop, Look, Listen é um disco que percorre todas essas emoções?
Sim. Toda as emoções, a luta dos 20 anos para conseguir chegar ao maior número possível de ouvintes. Foram muitas portas fechadas na cara, algumas que ainda vão batendo. Mas já vivo essas desilusões de outra forma: tento ter ideias para conseguir chegar aos mesmos sítios, só que de outras formas: há 15 anos levava com uma porta na cara e ficava muito desiludida e revoltada. De certa forma, ficava parada nesse sítio a revolver a minha mágoa, mas neste momento já não. Agora já sei como é que as coisas funcionam e procuro ter ideias para fazer com que as coisas não sejam assim.
Também ouvimos a revolta na tua voz?
Claro. Acho que consegue sentir-se bem isso no disco. Há um tema neste disco que é aquele que eu digo que é mais autobiográfico. Chama-se “So Long”. Se ouvirem a letra vão perceber tudo isto que eu estou a contar.
E é assim, com todas essas emoções à mistura, que a soul music tem de ser, não é?
Sim, tem que ser cantada com tudo a vir cá de dentro. Cantar até aquelas coisas aquilo que não consegues às pessoas no dia-a-dia. Todos os teus verdadeiros sentimentos.
Há muitos artistas da soul e do funk que, no palco, transfiguram-se por completo. Os tímidos e calados que se tornam excêntricos. Também és dessa categoria?
Depende da empatia. Há pessoas com quem consigo ter uma grande empatia à primeira vista, com quem consigo ser extrovertida. Há outras com quem me torno tímida e fechada. Depende do que recebo.
És assim hoje. Como eras no passado?
Era mais extrovertida. Tenho-me fechado mais. Mas depois aproveito para me soltar mais em cima do palco.
Como é que este disco começou a nascer?
Objetivamente, comecei a trabalhar no disco quando os Bombazines acabaram. Foi aí que disse que ia dedicar-me ao meu projeto a solo, sem ter mais bandas, sem participar em mais projetos. Essa altura pedi o New Max [Expensive Soul], que é o produtor do disco, dois temas: disse-lhe que queria dois singles dentro de duas linhas estabelecidas. E assim foi: começou tudo com o “Summer’s Gone” – que é uma canção sobre um verão em que não tive férias, em que não consegui ir à praia e ir fazer aquilo que toda a gente faz – e a “2 Kinds of Man” – um tema clássico de soul e funk sobre a relação entre um homem e uma mulher.
O disco vem com uma sonoridade muito especial: o chamado vintage – seca, rústica e quente. É daqueles discos que teria sempre de soar desta forma, certo?
Retro, clássico, chama-lhe o que quiseres. E esse foi um dos motivos para o disco demorar ainda mais tempo a ser feito. Além de ser muito mais dispendioso, é mais trabalhoso: é um disco analógico, com microfones e compressores antigos. E só não gravei diretamente em fita porque era muito caro. Em opção passei cada pista, de cada instrumento e de cada faixa, em tempo real pelo gravador de fita. E isso para mim era muito importante, porque a fita tem vida! Se passas o som de uma bateria pela fita uma vez, depois passas outro som, outro instrumento, e a fita já vai pôr a soar diferente.
“A Sharon Jones tem uma importância na minha vida quase como um membro da família. Mesmo que nunca tivéssemos tido esse tipo de relação”
Ainda te lembras de onde vem todo esse encanto e paixão pela música soul?
Começou de pequenina. O meu pai foi guitarrista amador e colecionador de vinil. Havia sempre música em casa: o meu avô adorava ópera e música clássica. Os primeiros discos do meu pai de que gostei foram os dos Led Zeppelin e dos Beatles. Mas havia um do Otis Reading que eu adorava, que tinha um tema incrível com a Carla Thomas, o “Tramp”.
Tanta paixão e amor pela música fez com que tenha sido natural teres uma banda?
Claro. Eu queria muito ter uma banda. Ouço música todos os dias desde que me conheço. Sempre soube o que queria fazer! Aos 14 anos já tinha participado com uma banda no Termómetro Unplugged; e aos 15 quis ter a minha própria banda – foi aí que formei os Sloppy Joe.
Com que idade é que percebeste que tens essa voz?
Eu não me apercebia e acho que ainda hoje não me apercebo bem. É uma necessidade. Tudo começou com na altura do grunge, quando ouvia Nirvana, Pearl Jam, Soundgarden, L7, Babes In Toyland, Hole – de quem não gostávamos muito porque a Courtney Love era meio bitchy e não tinha muito talento. Éramos quatro amigas e tivemos a ideia de fazer uma banda punk, tipo L7. O meu pai emprestou-me a guitarra e mesmo que eu só soubesse fazer dois ou três acordes, aquilo chegava perfeitamente, desde que o amplificador tivesse um bocadinho de distorção. Ensaiávamos ao fim de semana, até que às tantas sugeri que começássemos a escrever canções nossas. Como não tínhamos vocalista, percebi que o que eu queria era cantar. E ali fiquei: cantava porque sentia-me bem. Há pessoas que fazem ioga, tocam um instrumento ou são fotógrafos… O único sítio onde me sinto verdadeiramente confortável, onde me consigo esquecer de mim, da minha vida, daquilo que me preocupa, é em cima de um palco, a cantar a minha música com as minhas letras. Se for as letras de outros, já não consigo entregar-me da mesma forma.
Foi há poucas semanas que ficámos a saber da morte de Sharon Jones…
(suspira)
Já se percebeu que foi um desaparecimento que te marcou muito.
Foi, foi muito difícil. E ainda hoje não consigo ouvir a Sharon Jones a cantar. Anteontem estava no carro e começou a dar uma música dela e tive que mudar.
Chegaste a conhecê-la, certo?
Sim. A Sharon Jones tem uma importância na minha vida quase como um membro da família. Mesmo que nunca tivéssemos tido esse tipo de relação. Vi quatro ou cinco concertos da Sharon Jones e do The Dap Kings. Um deles foi na Casa da Música e antes do concerto encontrei o Binky, guitarrista, cá fora a fumar um cigarro. Foi depois dessa altura que fecharam as portas de vidro e reparei que ele estava a ficar aflito, porque não sabia como entrar. Eu disse-lhe para não se preocupar, que o levava ao backstage. Acabámos por ter uma pequena conversa em que ele me perguntou se eu gostava de ir conhecer a banda. Respondi que não queria estar a incomodar, porque sabia que tinham concerto no dia seguinte me Lisboa, onde eu ia estar, e deveriam estar cansados. Ele disse que tudo bem, mas, já que ia estar no concerto em Lisboa, pediu-me ir ter ao backstage porque queria apresentar-me à malta. Lá fui eu: conheci a banda, com a Selma Uamusse, e a Sharon saiu para vir conversou connosco.
Sobre o que é que conversaram?
Falei-lhe da minha preocupação, ao idealizar o disco, de estar a ter muitas dificuldades em fazê-lo, ter condições, juntar os músicos, ter dinheiro, a não ver a luz ao fundo do túnel. Foi aí que ela me perguntou a idade e disse: “Eu comecei a cantar com cinquenta e tal anos e só há dez anos é que faço tours. Tens tempo para fazer tudo. Não desistas. Continua focada no que queres. Se não for agora pode ser daqui a dez ou 20 anos.” E aquelas foram as palavras que eu precisava de ouvir naquela altura, que me acalmaram e fizeram com que me focasse no trabalho.
Então, mais do que uma inspiração musical, para ti a Sharon Jones também foi uma inspiração pessoal.
Exato. Mesmo tendo sido uma conversa muito rápida e tranquila, consegui-me concentrar nas coisas. Há um mês estive em Nova Iorque e conheci o Neil Sugerman, que é um dos fundadores da Daptone Records. Estivemos lá uma tarde inteira a ouvir música, a conversar, a mostrar-me coisas que eles estão a gravar. Falámos dos The Frightners, no Charles Bradley e acabei por perguntar ao Neil pela Sharon, que me disse que tinha de estar a descansar, por causa da condição de saúde dela. Na altura não insisti com ele porque pensei que qualquer dia poderia voltar aos estúdios e nessa altura logo falaria com ela. Julgava que tinha tempo, mas não tive. Custa-me muito, porque quando gostamos muito de um artista tornam-se parte da nossa vida, como se fossem fosse familiares. Às vezes são mais família do que um primo afastado.
Como foi visitar o estúdio da Daptone Records?
Foi espetacular: ainda mais porque sabia que a própria Amy Winehouse gravou lá parte das vozes do Back To Back. Mas depois também pelo trabalho do Lee Fields e do Charles [Bradley]. É uma editora emblemática…
“[O concerto da Casa da Música] não é um fecho de ciclo, porque ainda há muito para mostrar. Quero ver quantas pessoas é que vão seguir-me até ao Porto. É a gasolina que põe uma banda a arder: ver as pessoas a sair de casa para celebrar o nosso trabalho”
Depois de uma editora italiana, achas que há alguma hipótese de também editares por lá?
Editar não sei (sorri), mas pode ser que façamos alguma coisa juntos! Eu sei o que valho, musicalmente. Não tenho falsa modéstia, mas como pessoa não me acho mais do que ninguém, mesmo. E há uma coisa que me têm dito: ainda não cheguei ainda a certos patamares porque tenho uma postura humilde. Isto para dizer: eu fui à Daptone um bocadinho nervosa…
… espera: foste convidada para ir lá?
Fui. E era aí que eu queria chegar: quando o Neil Sugerman soube que eu estava em Nova Iorque, falou com o meu agente e disse-lhe que queria que eu passasse por lá porque queriam conhecer-me pessoalmente. Lá fui eu: tentei disfarçar o meu nervosismo todo e fui tratada de forma incrível! Tinha levado uns discos de vinil do álbum para deixar lá com uns amigos ligados à música e acabei por trazer mais, mas em goodie bags que o Neil me ofereceu!
Hoje é dia de concerto na Casa da Música. É um concerto especial por ser em casa?
Todos os concertos são especiais à sua maneira. Mas é lógico que este é especial porque nunca se sabe que amigos vou ter por lá, quem é que vai da minha família, ou até pessoas que não são propriamente amigos próximos, mas que pedem muito para ir tocar ao Porto. Não é um fecho de ciclo, porque ainda tenho muito para mostrar. Digamos que é o fechar do verão e do ano. E quero ver quantas pessoas é que, depois dos concertos do verão, vão seguir-me até ao Porto: é importante para a banda, e para mim. É a gasolina que põe uma banda a arder: ver as pessoas a sair de casa para celebrar o nosso trabalho.
O que é que estás a preparar?
Não vou apresentar coisas novas, mas vou apresentar algumas músicas, nesta linguagem, que fiz em participações com outras bandas. E tenho umas surpresas: convidados que não posso revelar para já. Mas basicamente é um concerto para mostrar o Stop, Look, Listen.
O arranque do próximo ano vai ser no Eurosonic. O facto de teres sido convidado pela Antena 3 também é um reconhecimento deste bom trabalho?
É sempre lisonjeador. E é um excelente reconhecimento. É um festival muito importante, onde estão muitos produtores, agentes, managers, pessoas que gostam de música e que pode trazer muito mais oportunidades no futuro.
Entrevista: Bruno Martins