“A música é o meu refúgio e o meu escape a esta rotinazinha normal que toda a gente tem”
Depois de em 2014 ter editado Árvores, Pássaros & Almofadas, Minus regressa agora aos discos – e vem acompanhado. Uma companhia em jeito de heterónimo – ou de uma figura mitológica que faz confundir personagens. Minus & MRDolly: dois nomes para uma e a mesma pessoa, que assina o Cartão do Cidadão com o nome Hugo Oliveira.
Man With a Plan é o novo disco desta tripla (id)entidade nascida e crescida no Porto, agora num formato instrumental, uma clássica beat tape de rap, claramente inspirada na era dourada do hip hop norte-americano, em nomes como Pete Rock, DJ Premier ou J Dilla; sem esquecer o trabalho de nomes maiores da cena instrumental portuguesa, como é o caso de Rocky Marsiano ou Sam The Kid. Samples imaculados, gordos, com referências no jazz e na soul a servirem de base e a darem classe e finesse.
Man With a Plan é também o primeiro trabalho com o selo Kids Alone, a nova label de Minus e DJ Spot. E era difícil que uma estreia fosse tão aplaudida. Um trabalho brilhante – reluzente – na abertura do ano e com o número “001” de um catálogo que se espera cresça muito com mais discos desta estirpe.
Esta é uma entrevista a Minus & MRDolly, mas na verdade estou só a falar com uma e mesma pessoa: Hugo Oliveira, produtor e beatmaker. Explica-nos lá melhor esta tua dupla faceta.
Bem, indo às raízes: o Minus foi o primeiro nome que eu adotei. Inicialmente era por causa do graffiti e depois acabou por ser o meu nome de MC. O MRDolly foi uma personagem que adotei e que até tem uma imagem! Foi em 2011 que a arranjei e é quase uma espécie de Quasimoto da cena (risos). Acabei por usar esse nome como o produtor deste projeto: Minus & MRDolly.
Como é que é fisicamente essa personagem?
É uma espécie de um peluche fofinho (risos). A minha música é fofinha, ele também tinha que ser fofinho! É um esquilo, porque curto tótil esquilos. E basicamente tem uns adereços que tem a ver com a maneira como eu lido com as emoções. É um passageiro da nossa vida.
É útil para ti associar personagens às várias facetas do teu trabalho?
É importante haver todas essas personagens, inclusivamente outras que utilizo noutros registos musicais – também tenho o nome Tasco’Tau como artista de música eletrónica, com que tenho uma série de edits. As personagens ajudam-me a distinguir projetos, porque naqueles momentos a minha concentração impõe-se através dos nomes, das referências.Seja para o lado eletrónico, então, como Tasco’Tau; MRDolly ou trabalhar nas rimas como Minus. É como os heterónimos do Fernando Pessoa (risos), só que os meus não são tão distantes uns dos outros. Acabam por ter uma proximidade diferente.
Ainda assim, neste Man With a Plan, que é um disco de beats instrumentais, usaste o teu nome de MC, Minus, e um de produtor, MRDolly.
É verdade. Também pelo teor da estética musical que tinha nestes beats, que iam buscar muitas coisas que poderia usar para Minus. Foi por isso que acabei por juntar os dois nomes. Foi mais fácil para mim.
E qual era o plano para este Man With a Plan?
O plano era uma fuga à realidade, à rotina. Tenho muito pouco tempo para fazer música – ou pelo menos não tenho o tempo que desejaria ter – então sempre que tenho algum tempo, a música acaba por ser o meu refúgio e o meu escape a esta rotinazinha normal que toda a gente tem. Ao stress de sexta-feira, por exemplo!
“É como os heterónimos do Fernando Pessoa, só que os meus não são tão distantes uns dos outros”
Não tens tempo porquê? É a eterna mania do trabalho meter-se na vida das pessoas, não é?
Neste caso é a faculdade: estou a acabar o curso e a trabalhar ao mesmo tempo. Gostava de fazer mais música com o tempo que tenho, mas como o tempo que tenho disponível é dedicado a fazer isso, acabei por fazer um disco dedicado a esse plano.
Para a fuga à realidade de que nos falas, fizeste uma beat tape, um disco instrumental.
Sim, os temas acabam por sugerir paisagens ou momentos emocionais que podemos sentir enquanto o ouvimos. E, neste caso, acaba por ser quase um disco de frames de bandas desenhada em que tudo acaba por ter uma história até chegar ao fim do disco. É a minha viagem, entre dias mais “soalheiros” e outros mais “chuvosos”.
Uma das paisagens que este disco desperta – ou uma geografia que é sugerida – é a dos Estados Unidos da Golden Era do hip hop. A Costa Leste e a Costa Oeste, claro. São referências que tiveste para este álbum?
Sim, acaba por ser. E se calhar até é por aí que estão as duas personagens, Minus e MRDolly: o Minus é mais fã daquilo que soa mais a Nova Iorque; e o MRDolly já é mais pelo sol de Los Angeles. A ideia era juntar os registos. Eu sou muito estudioso do trabalho de produtores como o Pete Rock e penso que aqui em Portugal ainda não tinha havido uma grande referência destes estilos. Como, por exemplo, na música clássica, haver períodos que soam mais ao Romântico, por exemplo. Neste disco são as minhas referências, o hip hop de Nova Iorque e o de Los Angeles.
“Gostava de fazer mais música com o tempo que tenho, mas como o tempo que tenho é dedicado a fazer isso, acabei por fazer um disco dedicado a esse plano”
Em Portugal, de facto, não é assim tão comum a aposta em beat tapes ou discos instrumentais. Temos, já algum tempo, o hip hop instrumental dos Orelha Negra; e temos outros trabalhos incríveis do Sam The Kid, do Rocky Marsiano, do Sr. Alfaiate, do Kilú, do dB… mas não é uma prática assim tão comum, pois não?
É verdade. O caso do Kilú é um bom exemplo, porque ele tem muito material. E também o Rocky Marsiano que, por acaso, foi uma grande influência com o disco Pyramid Sessions [2005], e até motivação para fazer uma edição em vinil. Fazer um disco de instrumentais é arriscado, mas também prazeroso.
Que samples andaste a procurar para este disco? Que discos é que vieram parar-te às mãos e que acabaste por samplar?
Eu sou péssimo para os nomes… os primeiros beats que foram feitos até vinham com um sample que eu andava a tocar já há muito tempo. No disco anterior, o Árvores, Pássaros e Almofadas, encontrei imensos standards de jazz com que consegui trabalhar. Neste Man With A Plan quis fugir um bocado disso porque a estética e a estética seria usar samples mais pequenos. Tenho dois standards de jazz, no tema que dá nome ao disco e no último, o “Spring Flowers”. Um deles é o “Round About Midnight”, do Thelonious Monk, que já queria fazer há muito, muito tempo, mas nunca tinha conseguido encontrar maneira de o fazer.
Mais alguma coisa?
Os outros temas acabam por ser samples curtos: um ou dois acordes. A dificuldade disso é mesmo pegar nesses acordes e deixá-los a soar à moda dos anos 90.
“Os temas acabam por sugerir paisagens ou momentos emocionais que podemos sentir enquanto o ouvimos. E, neste caso, acaba por ser quase um disco de frames de bandas desenhada em que tudo acaba por ter uma história até chegar ao fim do disco”
Num disco instrumental conseguiste dizer tudo o que ia na cabeça? Só com os sons, com o samples, com cortes…
Espero que sim! Claro que é sempre ingrato eu ter que decidir isso pelas pessoas. Mas espero que também consigam ter uma viagem, mesmo que diferente da minha! Mas eu sempre que ouço música instrumental, seja a minha ou de outros, a música leva-me sempre para outros sítios. E era isso que eu queria fazer: oferecer uma viagem.
Mesmo assim há palavras que têm de ser ditas. E se não são ditas, são sampladas. No tema de abertura, “Morning Skate”, ouvimos em eco, uma voz que faz uma referência a Sun Ra…
(Sorri) Existe sim! É o Logos, com quem eu tenho o projeto de Ollgoody’s. Confesso que muito dos beats que tinham lá já tinham sido abordados por ele anteriormente para o projeto que ainda não chegou a sair. Pelo menos para já!
Tens o hábito de ouvir rap instrumental?
Sim, tenho. Também gosto da parte lírica, mas desliguei-me um pouco quando descobri alguns produtores europeus. Gosto muito do rap alemão, mas o instrumental, claro, porque não percebo o que estão a dizer (risos). Mas tenho noção pelo que leio que eles também são bons MCs. Mas estou muito colado na cena alemã, como por exemplo o trabalho do FloFilz… A música que ouço mais regularmente acaba por ser a instrumental, talvez porque não gosto muito de ouvir música com letra enquanto trabalho.
“O Minus é mais fã daquilo que soa mais a Nova Iorque; e o MRDolly já é mais pelo sol de Los Angeles. A ideia era juntar os registos”
Falaste aí no Rocky Marsiano, sobretudo no trabalho Pyramid Sessions. O Marko Roca chegou a ter, no lado ao vivo, uma faceta orgânica, com instrumentos tocados ao vivo – na altura com o Rodrigo Amado no saxofone, o André Fernandes na guitarra e com o DJ Ride a ajudar. É algo que também queres fazer?
Sim, é algo que estou a fazer já para este disco. O Rocky Marsiano já faz isso há muito tempo, e, mais uma vez, foi uma grande influência. Há umas semanas, eu fiz uma espécie de showcase com banda, porque também gosto dessa dinâmica, de passar o álbum completo para banda, orquestrar o pessoal todo que toca comigo. Mas também já tinha feito isso no meu disco anterior.
Aqui há uns dias, em conversa com o Blasph, ele sublinhava o talento e a criação de ambientes dramáticos da parte de produtores do Norte. O que é que se passa no Porto? Tu, o dB, o Keso, o Virtus, o DJ Spot…
Eu acho que o país inteiro está muito bem servido. Há pessoas a fazer coisas incríveis. Claro que na produção eu estou muito ligado a esses nomes de que falaste – tenho a felicidade de eles serem meus amigos. O Virtus sempre foi um produtor de que gosto muito, super talentoso, metódico… o dB é outro do que também está sempre a produzir discos e além da qualidade, que é boa, tem sempre conteúdo – com histórias e contexto por trás. Mas há muitos mais: também gosto muito da malta que está a aparecer num contexto mais lo-fi, como o caso do Pardal, do LYFE… Há muitos produtores aqui no Porto.
O trap ainda não chegou tanto ao Porto?
Eu acho que ainda não chegou com a mesma força, mas temos muitas festas, muitos clubes com noites dedicadas ao trap.
“O Rocky Marsiano foi uma grande influência com o disco Pyramid Sessions [2005], e até motivação para fazer uma edição em vinil. Fazer um disco de instrumentais é arriscado, mas também prazeroso”
Mas já há produtores a fazer trap no Porto?
Eu acho que sim, mas confesso que não conheço. Nem é uma coisa que eu ouça muito. Por exemplo, em Lisboa gosto muito do trabalho do Here’s Johnny, independentemente de gostar ou não de trap: a abordagem dele e de tudo o que tenho ouvido da Superbad é de muito valor! É uma cena mesmo dele. Acho que ele próprio também revolucionou um bocado o trap! Mas o trap é fixe: eu nunca pus de parte produzir qualquer estilo! Há uns anos também não imaginaria estar a fazer garage e agora faço (sorri).
Este Man With a Plan é também o primeiro disco da editora Kids Alone. Que editora é esta?
A ideia da editora partiu de mim e do [DJ] Spot. Às vezes sentimo-nos sozinhos, mas não queremos deixar de fazer as coisas, de pôr trabalho cá fora. No fundo foi pôr isso em prática: chegámos à conclusão que estávamos sozinhos, mas que ia ter que sair de qualquer das formas. Ter uma editora é trabalhoso, mas também muito prazeroso poder assumir o nome a cara da label como sendo minha.
Há mais projetos para sair em breve?
Sim, estamos com algumas ideias, mas não sei as podemos revelar para já! Gostávamos muito de trabalhar com algumas pessoas – que já têm o nosso input. Espero que saiam mais coisas, como é lógico, porque uma editora não funciona só com uma edição!
Entrevista: Bruno Martins | Fotografias: Paulinha Rocha