“É um diálogo fixe entre o lado mais humano e o outro mais maquinal”
“Tens tampões para os ouvidos?”, pergunta-me Quim Albergaria quando me sento numa cadeira na sala de ensaio dos estúdios HAUS. Sorri, meti uns auscultadores para proteger — porque também não sabia muito bem o que poderia vir dali. Tinha uma suspeita: já vimos a força com quem o baterista dos Paus bate nas tarolas e timbalões. E já tinha escutado, com auscultadores — também — a eletrónica de MMMOOONNNOOO, o produtor Daniel Neves que há uns anos foi até Tóquio, Japão, para participar na Red Bull Music Academy.
A primeira ideia é: “isto pode funcionar”. Um produtor de música eletrónica que trabalha com paisagens abrasivas, massas sonoras que fazem as pernas tremer. E um baterista que não tem medo de se atirar de corpo e alma à liberdade criativa.
Quando os dois universos se juntam, no ensaio, foi como se o cabelo se os cabelos da testa tivessem voado até à nuca. Ignorei o conselho de Quim, tirei os auscultadores e fiquei a levar pancada. Como se tivesse entrado para dentro de um camião-betoneira.
MQNQ é o nome desta junção da eletrónica de MMMOOONNNOOO com Quim Albergaria. Confesso que, no início, fazia-me sentido quando lia algo como “mécanique”. Mas não — é só a mistura de letras dos nomes de ambos. Esta conversa aconteceu durante uma pausa no ensaio: com os ouvidos a fazerem “piiii” e com o uso de palavras como “brita” e “jarda” pelo meio. Jarda, aliás, vai ser o nome do EP que a dupla apresenta hoje, quinta-feira, 20 de julho, no Lounge, em Lisboa; e sábado no Milhões de Festa, em Barcelos.
Sei que ainda é muito prematuro falar deste projeto MQNQ. Mas já podemos falar de como é que o projeto nasceu. Daniel — MMMOOONNNOOO: partiu de um convite que fizeste ao Quim Albergaria?
MMMOOONNNOOO — Não, até foi o Pedro Caldeirão que me andava a chatear há já algum tempo para tocar com um baterista. Eu não sabia como o fazer e nem sequer tinha quem com quem tocasse. Ele sugeriu o Quim e assim foi! Eu já tinha falado uma vez com o Quim, mas não nos conhecíamos. E por que não? Bora! Começámos assim!
Quim: o que é que pensaste que poderias acrescentar aqui ao som do MMMOOONNNOOO?
Quim Albergaria — O que me fez dizer que sim é o que me faz dizer, normalmente, sim às coisas a que acabo por dedicar mais tempo: posso aprender coisas aqui que ainda não sei e posso meter-me em sítios estranhos e esse “estranho”, normalmente, faz acontecer coisas boas em mim enquanto músico. Foi assim quando comecei a tocar com o Pedro Gomes e a Rita Vozone nos Caveira; foi assim quando o Makoto, o Hélio [Morais] e o João [Shela] disseram que sim para a ideia dos Paus… Este convite apareceu numa altura em que eu comecei a estudar a ideia de tornar o meu cérebro um bocadinho mais regular, mais atento a pulsos mais objetivos, a metrónomos mais exigentes, menos vastos. Senti que precisava de aprender a respeitar isso para tocar um bocadinho mais. Já estou há quase sete anos com os Paus, com estruturas bastante definidas, o que é ótimo também, mas às vezes davam-me as saudades de coisas mais alargadas, dos tempos em que tocava com os Caveira. Agora, com um bocadinho mais de controlo — ainda não o suficiente! — pensei que era boa altura para tentar isto com máquinas.
“[Em MQNQ] Posso aprender coisas aqui que ainda não sei e posso meter-me em sítios estranhos e esse “estranho”, normalmente, faz acontecer coisas boas em mim enquanto músico” — Quim Albergaria
Como foi pôr a máquina a funcionar?
Quim Albergaria — O arranque foi bué frustrante. Pensei que não sabia tocar o suficiente para isto. E fui estudar, sacar coisas, pensar nisto tudo, e comecei a fazer material que acho um bocadinho mais fixe. Mas o que o MMMOOONNNOOO faz já é tão fixe que eu estou só a acrescentar pozinhos.
A primeira paragem foi no Musicbox em Março do ano passado.
MMMOOONNNOOO — Foi. Mas o arranque aconteceu quase em simultâneo com o concerto. Isto porque arranjámos uma data no Musicbox e então decidimos ir fazer algo (risos). O primeiro concerto foi o mais estranho de todos, porque foi quase tudo de improviso. No início não tínhamos estruturas: peguei em malhas que estava a trabalhar ou ideias soltas e em quase dois ou três ensaios construímos por cima. Foi muito mais complicado porque tínhamos que estar sempre a comunicar as mudanças. Agora com as malhas mais estruturadas já há uma comunicação mais simples, mais direta e eficiente. A experiência para quem estava de fora foi interessante — e para nós também. As pessoas até gostaram do espetáculo, mas nós sentimos muitas falhas nossas.
Quim Albergaria — Estas coisas de inventar relações mais ou menos híbridas — coisas acústicas com máquinas e volume altos — normalmente obriga a um ajuste técnico. E esse concerto serviu para isso: foi a matança que nos fez ver como temos de fazer as coisas.
“O público tanto acaba por sentir-se bem, como depois já não está a apanhar ritmo nenhum… ninguém pode é estar à vontade! Tem que se sentir um certo desconforto” — MMMOOONNNOOO
Mas na altura já pensavam que isto poderia descambar em algo mais do que um concerto?
MMMOOONNNOOO — A primeira reação ao concerto foi essa: o som é este, só temos é que pôr isto direito.
E o que é que já têm agora? Vai sair em breve o primeiro EP — Jarda — e vão ter concertos para fazer nos próximos dias.
MMMOOONNNOOO — Sim, faltam uns retoques finais na edição. Ao vivo serão essas quatro malhas mais passagens, uns extras, coisas que não chegaram ao disco, mas que gostamos de tocar ao vivo.
“O arranque foi bué frustrante. Pensei que não sabia tocar o suficiente para isto” — Quim Albergaria
MMMOOONNNOOO, o que é que gostas mais na bateria do Quim? O que é que lhe pedes para ele fazer para acompanhar os teus drones?
MMMOOONNNOOO — O que nós vamos fazendo é tentar coordenar aquilo que estou a fazer eletronicamente com a bateria do Quim. Mas eu não sou baterista! O que eu quero dele é mesmo aquela jarda pesada de bateria de que eu gosto! A nível técnico ele é que está sempre a inventar como mexer com as coisas à volta. Também há uma certa necessidade técnica que é aproximar o som da bateria a um som eletrónico e vice-versa, por serem dois universos diferentes. E esse lado técnico dele, a explorar o som da bateria, ajuda tudo a colar.
O peso e o som que o Quim imprime na bateria faz corresponder àquele universo dos drones de que falava.
MMMOOONNNOOO — Sem dúvida. É puxar isso para outro patamar. Na minha eletrónica estão lá as percussões, estão os kicks graves, mas falta-lhe a fisicalidade que o Quim consegue trazer. Se não ia ser mais do mesmo, igual àquilo que eu fazia, sem aquela pimenta extra.
“O que eu quero do Quim é mesmo aquela jarda pesada de bateria de que eu gosto!” — MMMOOONNNOOO
Quim, falando da tua fisicalidade… [risos] Há uma grande correspondência entre a forma como tu tocas bateria e aquilo que são estes sons eletrónicos, estas camadas de drones?
Quim Albergaria — O MMMOOONNNOOO diz que não é baterista, mas as coisas que ele preparou para trabalharmos juntos são bastante mais sincopadas e já têm bastante mais pulso do que aquilo que normalmente faz [a solo]. Ou seja: ele já vinha com uma ideia de ritmo. O meu trabalho é perceber como é que consigo ser progressivo, tentar não repetir aquilo que ele está a fazer, dar-lhe a tal jarda rítmica para se sentir o coração ali, sem ser, de repente, aquele caribe mix de um baterista a tocar por cima. Quero que tenha o lado abrasivo e poder enfatizar um lado mais humano: o próprio erro, a oscilação do tempo, as viragens bruscas que se percebem que são de ímpeto e não programado. É um diálogo fixe entre o lado mais humano e o outro mais maquinal. Uma muralha de som com um lado humano que dá para relacionar. Do ponto de vista rítmico, é um exercício bué fixe: ele está numa assinatura rítmica e eu estou a tentar outras, a tentar perceber qual o padrão que fazem juntas. É estar sempre a trabalhar na soma: não é um beat de um lado e a bateria do outro. Não: é as duas coisas juntas é que fazem trabalhar. Mas aqueles baixos, aquela brita toda… curto bué!
Quem está a ver de fora acaba por ver o homem das máquinas superconcentrado em frente ao computador a contar tempos e depois, por outro lado, vemos a tal fisicalidade do Quim a limpar o suor da cara. Depois ainda há uma terceira dimensão, que é a visual, com projeção vídeo.
MMMOOONNNOOO — No caso do Milhões de Festa não vai haver, porque será durante o dia, na piscina. Vai haver outras coisas engraçadas. Já no Lounge vai ter visuais da Mariana Oliveira da Distorted Vision, que já fez noutras vezes para outros concertos no Musicbox ou no Barreiro Rocks — que foi incrível. E traz um extra, porque estou eu e o Quim a tentar apanhar-nos um ao outro, a tentar bater o som certo, e ao mesmo tempo a tentar fugir, a quebrar! A Mariana tenta criar esse clash: tanto nos aproxima como está criar um embate através do branco e do preto, luz e contraluz. O público, a jarda, com este tipo de visual, tanto acaba por sentir-se bem, como depois já não está a apanhar ritmo nenhum… ninguém pode é estar à vontade! Tem que se sentir um certo desconforto.
“O meu trabalho é perceber como é que consigo ser progressivo, tentar não repetir aquilo que ele está a fazer, dar-lhe a tal jarda rítmica para se sentir o coração ali, sem ser, de repente, aquele caribe mix de um baterista a tocar por cima” — Quim Albergaria
O EP Jarda virá com quatro temas. Mas ainda há muita coisa a ser descoberta.
Quim Albergaria — MQNQ é mesmo sobre isso. Não fechar: criámos um puzzle, um problema para resolver, e resolvemos. Vemos o que é que aprendemos aqui, como é que se transpõe para outro problema. Não é uma banda de encontrar uma fórmula. É mais exploratório nesse sentido, de ir à procura. É uma banda de “e se?”.
MMMOOONNNOOO — … mas já estamos a construir temas novos. Há uma malha que estávamos a usar em live, mas agora já não queremos por estar demasiadamente fechada e por isso vamos trabalhar em mais um ou outra para encaixar. Provavelmente depois do verão já haverá material para um álbum, mas não sabemos…
Já têm nome para as músicas?
Quim Albergaria — Alguma das “cantigas” têm nomes como “Ondas Fantasma” — feita a partir de uma colaboração do MMMOOONNNOOO com o Ghostwavves; tens outra chamada “Pequeno Colapso”; outra “Centopeia”, ou “Difíceis Estreitos” — que se meterem no Google Translator pode dar uma coisa fixe…
Entrevista: Bruno Martins
Fotografias: André Dinis Carrilho x UWF