“O que temos em comum? Ambos gostamos de fazer malabarismos com versos e de contar histórias”
Vamos começar por assumir que esta conversa não é das mais recentes que já tenhamos publicado por aqui. Estava na gaveta há quase um ano, à espera do dia de hoje, em que é lançada a nova faixa de Mundo Segundo e Sam The Kid: “Brasa”.
Na altura, e aproveitando a passagem por Lisboa de Mundo Segundo, juntámos os dois rappers — dois pesos da velha escola do hip hop que ao fim de muitos anos de amizade estão agora a trabalhar num disco em conjunto — numa conversa na escadaria do então MEO Arena. Em janeiro, com o mesmo sol e mais ou menos com as mesmas temperaturas que temos hoje, conversámos sobre a nova faixa que estava a ser fechada para ser mostrada daí a um par de semanas.
Entre ajustes de última hora, calendários de outros projetos que se meteram pelo meio — que é como quem diz, o novo disco de Orelha Negra — e um verão exageradamente quente, esta nova “Brasa” acabou por ficar a marinar mais uns tempos. Sai agora, numa altura em que o frio sabe bem, mas procuramos formas de nos aquecermos. E por que não um banger com beat do convidado nova-iorquino Marco Polo para voltar a agitar a cena e a deixar-nos com água na boca à espera do disco conjunto que há-de sair um dia destes? É melhor deixarmos de pensar em datas e desfrutar o material que Mundo e Sam nos vão deixando aos poucos. “Quando as pessoas deixarem de perguntar, é quando o disco vai sair”, ri-se o rapper de Chelas.
O novo tema vem ainda com a voz de Zacky Man e o vídeo foi realizado por Thomas Zimmermann.
Este “Brasa” é o terceiro lançamento oficial do quarta faixa do vosso novo trabalho, depois de “Tu Não Sabes” e “Também Faz Parte”. Ainda há um outro, que interpretam ao vivo, o “Gaia Chelas”.
Mundo Segundo — Sim, contas feitas, e na cronologia, este será o terceiro tema oficial.
E vem com a produção do Marco Polo.
Sam The Kid — Sim, esta é uma das faixas que fizemos com ele. Ele deu-nos uns quantos beats para trabalharmos e escolhemos este como primeiro para ser atacado. Os outros também são bastante bons, com aquela linha Nova Iorque, banger, forte.
“Estou a trabalhar mais do que nunca, mais do que há dez anos! Estou tão ocupado com tantas outras coisas que me preenchem, e são outros tipos de criatividade…” — Sam The Kid
E como nasceu o tema?
Sam The Kid — Quando não temos uma temática definida, se o sample disser alguma palavra, isso pode ser o ponto de partida para aquilo que vamos falar. E, neste caso, como o sample diz algo como “qué calór!” fomos por aí… no meu caso fiz um brainstorm a tudo o que pode associar o calor: temperatura, queimar… é como se fosse um verso de hip hop típico, de battle… é como se fosse uma composição para a escola (risos): “Hoje o tema da composição é a temperatura e o calor” e vais tentar pôr referências do calor dentro de um verso de battle. Não é nada super-complicado ou um conceito fora, mas é eficaz e ditado pelo sample.
Mundo, como é que o sample do Marco Polo te motivou a escrita?
Mundo Segundo — O Marco, quando esteve em Portugal, mostrou-nos alguns beats e este, em específico, era para um projeto dele e do Torae — o Double Barrell. Mas insistimos para ele nos dar o beat e acabámos por usar. Esse sample foi tirado de um disco que ele encontrou quando foi uma vez ao México. É uma música carregada de versos. Não é um tema convencional de hip hop em que ouvimos 16 barras e está bom.
“Também tenho ambições: andei na escola de cinema e gostaria de um dia fazer um filme… também disse que um dia gostaria de ter um álbum e fiz um álbum — fiz três! Mas para fazer um filme, deixa-me fazer o meu TV Chelas, aprender a editar… a aprender! Se calhar depois vou fazer uma curta, e depois quem sabe…” — Sam The Kid
É importante haver sempre um tema que vos guie no trabalho em cada uma das faixas?
Sam The Kid — Claro que sim. Essa é uma parte muito importante. No meu caso é a primeira vez que estou a ter essa experiência, mas o Mundo já me tinha dito isso: aquilo que escrevemos para este projeto é muito diferente do que fazemos a solo. Não quer dizer que aquilo que faço aqui com o Mundo não cabe na minha cena a solo, mas o que faço a solo pode não caber no trabalho com o Mundo.
Mundo Segundo — São projetos diferentes. O que acho que há em comum é o facto de gostarmos os dois de fazer malabarismos com versos (como é o caso daquilo que se ouve em “Tu Não Sabes”) e ambos gostamos de contar histórias (é aí que entra o “Também Faz Parte”). O álbum, quando sair, vai ser o melhor desses dois mundos: entre o malabarismo dos versos e o storytelling.
Tendo o Marco Polo produzido mais temas para lá deste “Brasa”, e por estar tão próximo do estilo boom bap, quer dizer que o vosso disco também poderá vir a estar mais próximo de um universo mais clássico?
Sam The Kid — Acho que sim. O Marco é versátil, mas sempre desse género que gostamos. Ele não vai muito ao trap, por exemplo. Mas dentro desse estilo mais clássico consegue ter aqueles mais bangers, mais fortes.
Mundo Segundo — Aliás, os quatro ou cinco sons com que ficámos até são bastante distintos.
“A coisa está a acontecer, não estamos a prometer coisas que ainda não fizemos. Nós estamos focados em fazê-lo, só que queremos fazer à moda antiga” — Mundo Segundo
E como é que aconteceu a oportunidade de trabalhar com o Marco Polo? Ele até esteve por cá e tudo.
Mundo Segundo — A pessoa que trabalha connosco, e que vai trabalhar no design do nosso disco — o Deck97 — conseguiu, há uns anos, travar conhecimento com o Marco quando esteve no Porto com o Masta Ace. Ele até nos contou essa história: pegou em alguns trabalhos que tinha feito e enfiou-os na mala de discos do Marco, que quando chegou a Nova Iorque encontrou aquilo e procurou saber quem era. Foi aí que começou uma conexão e agora ele é o designer oficial do Marco Polo. Bom, nós falámos com o Deck97 a ver se existia a possibilidade de o Marco produzir alguma coisa para o nosso disco e acabou por ir um pouco mais longe do que isso: ele veio cá passar 15 dias em Agosto e foi-nos mostrando mais beats… a coisa ganhou outra forma. É uma honra podermos contar com algo que vem acrescentar outro brilho ao disco.
Corrijam-me se estiver enganado, mas o Marco Polo esteve a trabalhar convosco em agosto de 2015! Isso também é sinal de que o disco está a ser “cozinhado” há muito tempo, não é? Agora com este terceiro tema, com um terceiro vídeo… já há uma data mais definida no calendário para se lançar este disco?
Mundo Segundo — Não! (risos)
Sam The Kid — É até o pessoal se fartar e desistir! Quando deixarem de perguntar é quando vamos lançar!
Mundo Segundo — Há uma diferença entre nós e outros artistas: é que nós começámos a lançar músicas que fazem parte desse álbum. A coisa está a acontecer, não estamos a prometer coisas que ainda não fizemos. Nós estamos focados em fazê-lo, só que queremos fazer à moda antiga. Eu faço quando me apetecer pelo simples facto de dar gozo de fazer. Divertimo-nos, falamos por Skype ou Whatsapp, a mostrar o que estamos a fazer… sem essa coisa toda da emergência atual… queremos é que seja bom. E as coisas boas demoram a fazer.
Sam The Kid — Ainda só saíram três músicas, mas nós temos muitas mais!
“Hoje já quase não compras um álbum às cegas. Ouves primeiro no YouTube e depois compras” — Sam The Kid
É estratégia, então: ir lançando aos poucos em vez de mostrar logo tudo.
Sam The Kid — Os prós e contras disto é que os dias de hoje permitem muito mais essa ideia de lançar música a música. Mas quem gosta, mesmo quando o disco sair, vai querer ter o objeto porque gostou das músicas individualmente. Imagina que o disco só saía quando as músicas estivessem todas apresentadas (à partida isso não vai acontecer): mas perdia-se um fator de primeiro impacto; e se calhar já ia ser difícil entrar nas listas de melhores do ano… mas quando as pessoas já conhecem um bom produto e gostam, não deixam de apoiar! Aliás, hoje já quase não compras um álbum às cegas. Ouves primeiro no YouTube e depois compras.
Este foi um ano de muito trabalho para ambos. Entre concertos e discos novos pelo meio: o Sam com Orelha Negra, o projeto TV Chelas; o Mundo Segundo com o EP Sempre Grato…
Mundo Segundo — Esse foi um disco que fui fazendo aos poucos. Era um EP que queria fazer para oferecer, mas que acabou por sair com a revista Blitz. Era uma espécie de presente para quem me ouve, para quem me segue, para a minha família e amigos.
Como é que defines para onde vão os teus beats, Mundo?
Mundo Segundo — Eu, no meu trabalho, sou mais introspectivo. Procuro falar mais daquilo que sou enquanto indivíduo singular. Se calhar com o Sam já vem mais ao de cima a arte do MC, o tal contador de histórias… são coisas totalmente distintas, assim como se ouvires o Pratica(Mente) do Sam e ele tem letras gigantescas a contar histórias.
“O álbum, quando sair, vai ser o melhor desses dois mundos: entre o malabarismo dos versos e o storytelling” — Mundo Segundo
Quando falas em gratidão, falas em quem?
Mundo Segundo — Pela minha família, por me terem dado espaço para poder-me exprimir artisticamente; pelos meus amigos, que já me acompanham nesta caminhada pelo início, e pelas pessoas que continuam a acreditar no que faço, que vão aos concertos e que gastam o dinheiro para comprar os nossos discos e ver os nossos concertos.
Sam, tu lançaste Orelha Negra; tens o teu projeto TV Chelas… e fala-se sempre muito no teu disco a solo… Tens alguma ideia em mente para o lançar ou nem tens vontade disso?
Sam The Kid — Não tenho interesse… eu tenho vontade e tenho ideias, mas tem que ser natural. Tem que fluir, porque não tenho necessidade de estar a mandar cá para fora só porque sim. Eu sou um criativo: se estivesse parado e não estivesse entusiasmado com aquilo que estou a fazer… aí seria triste. Estou a trabalhar mais do que nunca, mais do que há dez anos! Estou tão ocupado com tantas outras coisas que me preenchem, e são outros tipos de criatividade… por exemplo, o TV Chelas é outro tipo de criatividade e aprendizagem. Também tenho ambições: andei na escola de cinema e gostaria de um dia fazer um filme… também disse que um dia gostaria de ter um álbum e fiz um álbum — fiz três! Mas para fazer um filme, deixa-me fazer o meu TV Chelas, aprender a editar… a aprender! Se calhar depois vou fazer uma curta, e depois quem sabe…
Entrevista: Bruno Martins