“Hoje já estamos mais à vontade para fazer coisas mais complexas”
Prontos para mais uma viagem. Desta vez com capacetes de cosmonauta? Os Orelha Negra parecem querer dizer que sim com o terceiro capítulo de uma discografia que, pelos títulos, só se distingue quando datamos os álbuns. Em 2017, Chico Rebelo, DJ Cruzfader, Fred Ferreira, João Gomes e Sam The Kid regressam com um disco mais introspectivo, com teclados, sintetizadores, vozes e samples cósmicos, intergaláticos, sem um pouso geográfico específico. As coordenadas são apenas as mentes musicais de cada um dos Orelha Negra; aquilo que os radares emocionais dos cinco captaram entre 2015 e 2017.
Demorou, mas foi. Com as pausas e com o tempo necessários para fundir os saberes e sabores destes cinco seres que, aqui confessam, nunca sentiram a estreitar a estrada por onde viajam desde 2010, de forma meio surpreendente depois de se terem reunido a meio de uma digressão de Sam The Kid.
Neste terceiro tomo apontam para o espaço. Mas sem tirarem os pés da terra. E a navegarem cada vez mais em conjunto. As máquinas continuam a disparar os samples, mas hoje já não são os únicos comandantes. “Nós, de certa forma, aprendemos a tocar como samples, mas também se dá o contrário: já contrapomos com arranjos que não partem dos samples”, sublinha Chico Rebelo, baixista dos Orelha Negra.
É com essa premissa de entendimento mútuo cada vez maior que surge este terceiro disco dos Orelha Negra. Mais uma volta, mais uma viagem por um universo já bastante consolidado, mas com paisagens infinitas.
Os Orelha Negra em janeiro de 2016, ou seja, há cerca de um ano e meio, estavam no Centro Cultural de Belém (CCB) a pré-apresentar as canções deste novo disco. Mudou muita coisa nas canções desde esse concerto para cá?
Sam The Kid (STK) — Sim, mudou bastante, mas em pequenos pormenores. Se calhar na essência, no bruto da canção e nas estruturas pode ter mudado, mas pouco. A base, os samples, as ideias… em grande parte tudo isso se manteve. [Esse ano e meio] foi um tempo para terminar o disco. Nós apresentámo-lo, na altura, numa de mostrar esboços! Nunca dissemos que estávamos a apresentar músicas super finalizadas ou até que já estariam prontas para sair. Aproveitámos todo este tempo, fomos aos poucos misturando, acrescentando coisas e até ao último dia houve sempre oportunidades para mudar o que quer que fosse: alterar um volume, acrescentar uma voz…
Parecem ter uma certa facilidade em desenhar os temas. O mais difícil, neste caso, foi o registar essas ideias?
João Gomes (JG) — Acho que sim. Essa parte do registo e de chegar à versão final perfeita, que agrade a todos, é um bocadinho mais complicada, porque não estamos sempre e exclusivamente a trabalhar neste projeto. Só se fosse assim é que talvez conseguiríamos trabalhar mais depressa na fase da pós-produção, finalização dos arranjos e das misturas.
Como é que este terceiro capítulo começou a nascer? Conversaram muito sobre os rumos a seguir ou as vossas conversas são feitas mais com os sons?
Chico Rebelo (CR) — É mais isso. Falamos mais com os sons. Não me lembro de termos tido uma conversa prévia a antecipar que o próximo disco teria de ser “assim” ou “assado”… há sempre coisas que estão subjacentes ao nosso trabalho.
“Há coisas que já fizemos e não queremos repetir e outra coisa que está implícita é a necessidade de nos surpreendermos, criar novos desafios apostando em coisas que ainda não tínhamos explorado” — Chico Rebelo
E conseguem aquilo que ainda não tinham explorado e quiseram ir à procura?
CR — Não… acho que não. (risos) As ideias foram aparecendo e depois fomos começando a juntar as peças, a trabalhar nelas. Ao fim de algum tempo começámos a tomar decisões. Do género: “era fixe termos isto no disco, porque já temos uma dose daquilo”; ou “há ideias fixes, mas que já é chover no molhado e por isso podemos encostar à box”. Explorámos muitas estruturas diferentes daquelas que temos feito: compassos diferentes, com tempos e BPMs diferentes… o processo começou em agosto de 2015. Até essa altura tínhamos feito dois ou três “ensaiozitos” só mesmo para desenferrujar, porque já não tocávamos há muito tempo juntos. Depois disso fomos para o estúdio do Zé Nando [Pimenta] em Famalicão e estivemos lá uma semana fechadinhos, a gravar ideias e a fazer uma primeira pré-produção. E ficámos com uma ideia do que podia vir aí, até porque nessa altura gravámos umas sete ou oito coisas que acabaram por ficar no álbum.
Não espanta então que quatro ou cinco meses depois dessa primeira semana já tivessem o tal concerto do CCB marcado…
CR — E entretanto houve outra fase e o Fred deve ter marcado esse concerto pouco depois de agosto…
Continua a ser o Fred o “malandro” que vos marca os concertos. Já foi assim no vosso primeiro concerto de sempre, no Musicbox, em 2010, não foi?
CR — Sim, é sempre ele o gajo que põe os horários na cena. Voltámos para Lisboa, estivemos a escolher coisas e fizemos a segunda fase de gravações. Foi aí que ficámos com o grosso do repertório para escolher e para trabalhar para o concerto — porque há coisas que não são fáceis de tocar ao vivo, sobretudo neste disco com a quantidade de arranjos. Mas de certa forma isso também contribui para uma outra fase de produção do disco…
“Há sempre um caminho. É a mesma coisa que me perguntares a mim: “Samuel, já fizeste tantos beats… o que é que vais fazer agora?” Olha, vou fazer mais um beat (risos)” — Sam The Kid
Depois desse concerto do CCB decidiram continuar a tocar: fizeram festivais, concertos, para ir experimentando todo o material que tinham em mão?
STK — Sim, mas não foi nenhuma decisão de “continuar a tocar”. Às vezes essa palavra, “decisão”, funciona mais ao contrário: só quando decidimos parar. A tocar estamos sempre! Não foi para nós um problema continuar a levantar o véu: também é bom para ver como estamos a trabalhar, porque nem sempre estamos juntos e esse é o momento em que conseguimos estar e ver o que é que resulta para nós.
Os Orelha Negra apareceram, em 2010, de certa forma, de surpresa. Uma espécie de pedrada no charco. Alguma vez ficaram a pensar naquilo que têm hoje entre mãos? Já se sentiram encurralados ou pressionados, sem saber para onde seguir ou sentiram sempre que havia um caminho a seguir?
STK — Sim, há sempre um caminho. É a mesma coisa que me perguntares a mim: “Samuel, já fizeste tantos beats… o que é que vais fazer agora?” Olha, vou fazer mais um beat (risos). E é por aí. Naqueles dias em que decidimos criar o repertório houve um sentimento de urgência e pressão de criar 20 ou mais ideias para depois escolher as melhores. Costumo ser eu a apresentar o esboço inicial, uma textura que pode ser manipulável em tons e ritmos, mas aqui houve a diferença de eu não ir tanto ao meu arquivo… foi, literalmente, uma busca tanto de samples meus como também de muito diggin do Cruz [DJ Cruzfader], o João [Gomes] também fez… e depois criar as texturas e esboços a pensar em Orelha Negra. Em discos anteriores, as ideias vinham de coisas que eu já tinha e que podiam ou não ser para Orelha Negra.
Cruzfader, quando foram para o estúdio do Zé Nando Pimenta, em Famalicão, que discos e samples é que levaste já a pensar neste disco?
Cruzfader — Nessa altura fiz o contrário daquilo que fiz nos dois primeiros discos, em que chegava lá com pouca coisa e ia improvisando. Para este fiz um trabalho de casa: estive a fazer uma pesquisa de vozes, por já ter uma ideia das sonoridades que iríamos trabalhar. E levei uma carrada de vozes, de todos os estilos possíveis, depois no estúdio ia disparando a ver o que gostávamos mais. Mas foi um grande trabalho de casa, para não ficar tão limitado.
No primeiro disco trabalharam muito com a raiz mais pura do hip hop norte-americano com a mistura de vozes e samples portugueses. No segundo disco fiquei com a sensação de que entraram também por territórios brasileiros, meio psicadéliscos e tropicalistas. Este terceiro disco, e tentando eu dar-lhe uma localização geográfica, pode dizer-se que é um regresso ao território norte-americano?
STK — Deixamos à leitura de cada um. É subjetivo. Mas eu nem olho para a cena assim… vejo mais a explorar mais outros ritmos, outras fontes, mas que são fontes que também já tinham estado presentes nos outros álbuns. Por exemplo, o prog rock já existia no segundo disco, principalmente. Ou seja: não há nada de chocante neste disco. Se houver algo funk, de anos 1980, também já tinha havido: por exemplo, fizemos a “Round 4 Round” e aqui tens a”Sky Lab”. Mas ao mesmo tempo não é o mesmo tipo de boogie, é outra vibe.
CR — Nós nunca tivemos a preocupação, em nenhum disco, de fazer as coisas de forma faseada: primeiro os singles, depois os álbuns… E neste álbum também não houve isso. Mas só depois de termos os temas todos e o disco todo feito cheguei a uma outra conclusão: esta é uma das nossas três viagens em disco (risos), e esta parece-me que esta é um bocado mais interior e introspetiva. Pelo menos é assim que, nesta fase, ouço o disco. Essas viagens de que falas eu encontro-as em vários momentos de todos os discos, mas o encadeamento é que pode ser diferente. Estou a lembrar-me de um ou dois temas que não incluímos no disco e que podiam levar este disco para esses lados que dizes, só que talvez tenha sido por isso não os incluímos. Para as coisas ficarem diferentes.
JG — Acho que a principal diferença tem a ver com as fontes a que fomos buscar — principalmente o Samuel e o Cruz na altura dos samples. Acho que apanharam partes diferentes, mais intrincadas, menos previsíveis de samplar. Depois nós [bateria, baixo e teclas], na nossa forma de trabalhar, também acabamos por ter uma abordagem em que se reflete sempre o sample original. Há loops como o do “Soul2” ou “Apollo 70”, “Santa Ela”, com synths e linhas de baixo muito estranhas, mas que, hoje em dia, nos fazem ir atrás. No início não as sublinhávamos tanto e procurávamos mais fazer coisas que contrabalançassem. Hoje já estamos mais à vontade para fazer coisas mais complexas.
“Para este fiz um trabalho de casa: uma pesquisa de vozes, por já ter uma ideia das sonoridades que iríamos trabalhar. E levei uma carrada de vozes [para estúdio], de todos os estilos possíveis” — DJ Cruzfader
Os Orelha Negra soam cada vez mais a uma banda, a um grupo, a tocar cada vez mais em conjunto, a acompanharem-se uns aos outros e não a criarem espaços para serem disparados samples. Isso funcionou bem nos dois primeiros discos, mas agora já se nota mais essa união. O que acham?
CR — Isso é uma consequência de estarmos juntos a tocar há este tempo todo. Eu o João e o Fred temos hoje um entendimento diferente da forma como o Sam e o Cruz trabalham os samples e as vozes. Nós, de certa forma, aprendemos a tocar como samples, mas também o contrário: a contrapor com arranjos que não partem dos samples. Neste disco aprimorámos isso bastante.
Também já acontece o Sam ou o Cruz samplarem os vossos instrumentos?
STK — Ao vivo, principalmente. Quer dizer…
JG — Em estúdio às vezes passamos coisas para a MPC.
CR — Por exemplo, no “Soul2” isso aconteceu… houve baixos que ficaram logo samplados de raiz. São coisas que às vezes acontecem: aquilo a que chamamos os impossíveis que se tornam possíveis. É a vantagem de trabalhar com samples (risos).
“Não há nada de chocante neste disco. Se houver algo funk, de anos 1980, também já tinha havido noutros: por exemplo, fizemos a “Round 4 Round” e aqui tens a”Sky Lab”. Mas ao mesmo tempo não é o mesmo tipo de boogie, é outra vibe” — Sam The Kid
Mas é cada vez menos perceptível quais os momentos em que estão o Sam e o Cruz a disparar samples e o que está a ser tocado ao vivo…
CR — É um bocado o nosso segredo (risos). Nós também nos divertimos a fazer isso e a pensar que as pessoas não vão perceber o que é que cada um está a fazer.
JG — Nesta gravação chegou a haver momentos em que estivemos a tocar tudo o que a MPC ou os samples tinham. Nessa altura se fizéssemos mute às máquinas quase não se iria notar a diferença.
CR — E isso dá espaço para que o Samuel ou o Cruz se libertem da sequência e tenham os seus momentos.
STK — O sample às vezes pode ser o ponto de partida, mas depois acrescentam-se os vários instrumentos. E ficamos a ouvir tudo, sem o sample e muitas vezes deixamos ficar assim porque sentimos que está mesmo bonito! Houve muitas coisas que se descobriram assim e que foram guardadas para alguns finais.
Três discos, três álbuns com o mesmo nome. Já percebemos que preferem ficar com esse formato. Mas e nas musicas? Como é que é a altura de dar nomes às canções?
CR — É um inferno.
STK — Não temos muito jeito para isso. Tentamos ir a votos na carrinha…
CR — Ao fim de três discos já conseguimos demorar só um mês a decidi-las.
Quando participaram no programa “No Ar”, em que estrearam alguns destes temas, reparei que os títulos dos temas eram horas.
CR — Havia uma questão complicada: o concerto no CCB foi gravado e emitido e por questões de direitos autorais é necessário dar um título às canções. Só que não queríamos mostrá-las com os títulos provisórios. Então fomos aos timecodes do concerto e tirámos a hora de cada tema! E ficou assim… Só depois é que saiu o primeiro single, “A Sombra”, depois a “Parte de Mim”, mas ainda hoje não sei… tenho que trazer uma cábula com o “nome de guerra” e o título definitivo!
STK — Olha, a “Ready” foi o único que ficou com o “nome de guerra”!
CR — Não foi fácil. Mas ficou bastante mais fácil fechar os títulos depois da capa feita…
Porquê?
CR — Porque a capa remeteu para um universo e deu aqui uma unidade…
STK — É a cena meio espacial. Ou seja: ele, o Rui Vieira [autor] ouviu o álbum e fez esta capa que tem a ver com a sonoridade do disco. Nós adoptámos títulos com duplos significados: “Apolo 70”, em que estávamos a pensar em cinemas antigos, mas também nas viagens do espaço. “Skylab” baseámo-nos na ideia de uma discoteca, mas que tem a ideia de céu. “Fenix”… tudo coisas que se conseguirem aplicar numa vertente de viagem ou espacial.
Mas já se tinham apercebido do lado espacial do disco?
STK — Não. Não era uma intenção inicial.
CR — Esse lado espacial é uma espécie de conclusão que só tiramos quando juntamos as peças todas. Quando começamos a ouvir o álbum inteiro. A visão que nós temos disto tudo é um bocado diferente da das outras pessoas, porque o disco passa por muitas fases. E se calhar por isso é que, se calhar, demorou muito tempo, para deixar isto respirar. Eu só quando paro de tocar e gravar, e quando ouço as misturas, é que me ponho a pensar. A capa ajudou veio ajudar na escolha do alinhamento final, que é a outra parte complicada: o que é que faz sentido a abrir e depois fechar. Mas isso é tudo uma narrativa do momento.
“Há loops como o do “Soul2” ou “Apollo 70”, “Santa Ela”, com synths e linhas de baixo muito estranhas, mas que, hoje em dia, nos fazem ir atrás. No início não as sublinhávamos tanto e procurávamos mais fazer coisas que contrabalançassem” — João Gomes
Tendo em conta a importância que a imagem e o design ganhou na construção do disco, estão a preparar alguma coisa especial para apresentar este Orelha Negra 2017?
STK — Para já ainda não…
JG — Mas, quer dizer, desde o CCB que há um lado visual novo que tem vindo a ser trabalhado e que tem que tem tudo a ver com isto: bolas de cristal, espelhos…
STK — O que vai acontecer agora, em termos de sons, é um upgrade: primeiro apresentámos as coisa cruas, depois acrescentámos em disco coisas diferentes. E agora é altura de irem para o lado ao vivo também.
E o que está previsto para breve?
CR — Não queremos que vejam a nossa atuação no Festival Iminente [15 de setembro] como um concerto de apresentação do disco, até porque já foi apresentado. Depois no dia seguinte vamos para Paredes e até ao final do ano vamos seguir a agenda. Talvez no próximo ano, e à medida que vamos integrando as coisas novas, possamos fazer coisas um bocadinho diferentes… e faz sentido até porque já estamos há quase um ano e meio com este espetáculo.
João, nos últimos anos, além dos Orelha Negra, tens tocado com mais uma série de músicos que tocam muito pelo estrangeiro. Também tens vontade de fazer isso com Orelha Negra?
JG — Da minha parte existe alguma vontade… Da nossa [da banda], nem por isso (risos). Nunca trabalhámos com isso em mente e não temos isso como ambição. Claro que há muitos mais palcos fora de Portugal, e que podíamos estar a tocar noutros sítios, mas também sei que é preciso ter uma disponibilidade que nem sempre temos. Se acontecer naturalmente, sendo convidados, claro que teremos o prazer de tocar em qualquer lado. Mas não vamos estar a mudar as nossas vidas todas para isso!
Entrevista: Bruno Martins