Raquel Ralha & Pedro Renato: Venha o Diabo e Escolha
Raquel Ralha e Pedro Renato são amigos e cúmplices musicais há muitos anos. Figuras centrais do movimento musical de Coimbra – nos palcos e fora deles, com Belle Chase Hotel, Wraygunn, entre muitos outros – atiraram-se às feras na criação do primeiro disco disco a dois: um trabalho de mexer em versões, que é também um trabalho de remexer em memórias. Devil’s Choice Vol1. São escolhas do demónio, daquelas que venha o diabo e escolha, explicam nesta conversa.
Uma parceria que tem na sua génese um desafio da Rádio Universidade de Coimbra, mas que acabou por seguir o caminho natural da tal cumplicidade entre ambos. Um disco cru, íntimo, em tons ferrugem-industrial que dá uma outra vida a canções dos Siouxsie and The Banshees, Pixies, David Bowie, Pink Floyd, Depeche Mode ou The Doors.
Este sábado, dia 9 de junho (22h), a dupla celebra a edição em vinil do disco com um concerto no Teatrão, em Coimbra.
Ao fim de 20 anos de cumplicidade, editam um disco de versões de músicas de que gostam muito e que marcaram o vosso crescimento. Como é que este Devil’s Choice começou a nascer?
Pedro – Antes da Raquel responder, respondo eu porque sou um bocadinho mais responsável pelo título – embora a Raquel tenha filtrado a seguir um acervo enorme de ideias que tenho, normalmente. Mas o título reflete mesmo essas Devil’s Choices, porque a certa altura havia tantas hipóteses, tantos artistas que poderíamos revisitar, tantos que foram deixados de fora… a escolha passou um bocadinho por “venha o Diabo e escolha!” Qualquer um dos outros que ficaram de fora eram tão válidos como aqueles que chegaram ao disco. Tivemos que restringir a coisa um bocado ao conceito lírico do disco, porque senão… teríamos aqui material para fazer os volumes 10 e 15…
Raquel – O Pedro, há uns tempos, tinha-me falado de podermos fazer um projeto que era mais ou menos para “festejar” os nossos vinte e tal anos de trabalho conjunto – e de amizade – e voltar a pegar em alguns pontos importantes das nossas carreiras até aos dias de hoje e revisitá-los. Mas entretanto, no meio desse processo, tivemos o convite do Rui Ferreira da Rádio Universidade de Coimbra para fazermos três versões para o programa Cover de Bruxelas. Fizemos a “Peek a Boo”, dos Siouxsie and The Banshees, “Right Now”, dos Creatures, e o “Nerves”, de Bauhaus. Ficámos contentes com o resultado, o Rui também, e decidimos revisitar a carreira de outros artistas! Fomos para estúdio começar a gravar. Depois da escolha dos temas – uma tarefa altamente penosa – lá chegámos a este alinhamento final.
Dos três temas que tocaram na RUC, só a “Peek a Boo” é que chegou a disco… Houve uma necessidade de encontrar um conceito à volta destas canções para poderem criar uma espécie de coerência nas temáticas que interpretaram?
Raquel – Sim, não só para haver coerência, mas para nós conseguirmos dar por terminada a escolha dos temas. Foi muito complicado… tínhamos listas gigantescas. Mas decidimos optar por uma temática mais negra, mais ligada a pólos que a mim me dizem muito: o Bem e o Mal. Acabámos por meter o Diabo ao barulho e focámo-nos nos temas onde havia um foco sobre essas temáticas.
Mas contem-nos lá: houve alguma vontade especial de ir mexer nestas canções, que, imagino, seja também mexer vossas memórias de adolescente e jovens adultos… porque é que estas canções são tão especiais para vocês?
Pedro – São canções que tanto eu como a Raquel ouvimos muito quando éramos mais novos. De qualquer das formas, já temos alguma experiência com versões, ao longo destes anos na carreira. Mas curiosamente, vamos buscar versões que têm mais que ver com o universo das nossas bandas, mais coisas ligadas a bandas sonoras dos anos 60, coisas ligadas ao cinema, ao easy listening, ao exótico ou a outras coisas do género. E até hoje nunca tínhamos parado para fazer essa revisitação do imaginário de quando éramos adolescentes.
“Qualquer um dos outros que ficaram de fora eram tão válidos como aqueles que chegaram ao disco. Tivemos que restringir a coisa um bocado ao conceito lírico do disco, porque senão… teríamos aqui material para fazer os volumes 10 e 15…”
Está aqui, neste disco, a vossa génese enquanto músicos? São estas as músicas e as bandas que vos levaram a querer ser músicos?
Pedro – Sem dúvida!
Raquel – Sim, como qualquer adolescente que se preze, passámos essa fase da nossa vida a lidar com esse lado mais negro. No fundo, este foi um exorcismo que fizemos ao longo de todos estes anos e agora decidimos compilar.
Pedro – Este disco acaba por ter um lado de brincadeira: “descubra o Wally musical”! Acabámos por incluir em cada tema um sample dos originais. Há alguns que estão mais camuflados do que outros, mas pronto, fica o desafio!
Mas era obrigatório escapar às sonoridades e aos instrumentos que tinham sido utilizados nos temas originais?
Pedro – Este disco deu-nos um gozo particular precisamente pela… “negligência” com que foi feito: sem grandes pressões, sem haver aquele peso de fazer um grande disco porque são as nossas músicas. O disco fluiu mesmo, sem pressões, mas claro com as preocupações em termos estéticos.
Ouvimos alguns ambientes eletrónicos, também o uso de baterias eletrónicas. Queres explicar estes recursos, Pedro?
Pedro – É o que foge um bocadinho àquilo que temos feito ao longo da carreira. Mas quisemos limitar os recursos do disco, até para agora podermos ter uma formação mais maleável ao vivo. Mas nem sempre as baterias de que falas são eletrónicas: algumas delas até fazem parte daquele “onde está o Wally”, porque foram quase sempre roubadas ao senhor Trent Reznor, dos Nine Inch Nails (risos).
Já agora, como tem sido levar estas canções para o palco?
Raquel – Ao vivo temos uma base gravada, a minha voz, a guitarra do Pedro e os teclados do Jorri ou do Sérgio Costa. No fundo é o que diz o Pedro: optámos por fazer as coisas assim, porque não é fácil levar um projeto com grandes estruturas para a estrada.
Pensaram em canções específicas de algum período do rock?
Pedro – Pensámos, mas depois desistimos (risos). Pensámos em focar-nos nos anos 1980, porque é a época com que estávamos habituados a trabalhar em termos de versões. Mas, mais uma vez, não quisemos restringir apenas a essa década e acabámos a revisitar os Doors, a Nina Simone… mas maioritariamente são coisas dos anos 1980.
Raquel – Até porque é a altura em que estávamos em plena e fervorosa adolescência, na altura em que começámos a consumir música.
Lembram-se quem escolheu o quê?
Raquel – Até te digo que já não sei bem… nem imaginas os telefonemas intermináveis a “discutir” o alinhamento possível. E há músicas que sugeri, mas acho que a maior parte foram sugeridas pelo Pedro Renato – com o meu acordo (risos)!
Pedro – E as que escolhi foram para a tua voz!
Pedro, no texto de apresentação do disco dizes que este disco é uma espécie de “podium’ com 11temas vencedores. Mas eu fico com a sensação que esse podium é meio volátil: se hoje tivessem de fazer uma escolha, iriam escolher outras canções.
Pedro – Sem dúvida! A Raquel é que costuma dizer isso: “gostas mais do papá ou da mamã?” É ingrato este processo… quem já fez discos de versões sabe perfeitamente o dilema com que se vive no processo de escolha e de gravação.
“Decidimos optar por uma temática mais negra, mais ligada a pólos que a mim me dizem muito: o Bem e o Mal. Acabámos por meter o Diabo ao barulho e focámo-nos nos temas onde havia um foco sobre essas temáticas”
Este é o primeiro volume. Acredito que haja a possibilidade de fazer um segundo ou um terceiro… o que acham?
Pedro – Está tudo em aberto, tudo é possível.
Raquel – Isto até é viciante… já temos um pequeno alinhamento para um segundo volume…
O lado ao vivo tem alimentado esse vício?
Raquel – Claro que sim. Estes são temas que me dão imenso gozo cantar!
Pedro – Tanto podemos fazer um segundo disco de versões, uma espécie de Devil’s Choice Vol.2 ou uma espécie de contraponto, um disco de originais mas em vez de versões declaradas, ir buscar samples de músicas de que gostamos e construir – ou desconstruir – a partir daí.
Vai voltar a ser uma espécie de “venha o diabo e escolha”, portanto.
Pedro – Exatamente! (risos)
Entrevista: Bruno Martins