O baterista que gosta de pôr a bateria a falar
Ricardo Martins não é um baterista convencional. Nele encontramos uma sensibilidade musical e uma linguagem muito próprias que o transformam num músico com o talento raro de criar as suas próprias composições. Já o ouvimos em Adorno, Lobster ou Cangarra; também como baterista de Jibóia e até fez um (brilhante) disco a meias com Filho da Mãe (Tormenta), Mas Ricardo Martins nunca se limita a ser a base para canções: ele desafia-se e vai sempre à procura de, com as baquetas, tarolas, bombos e timbalões, ter uma voz ativa na criação.
Em 2016, o Ricardo Martins voltou a desafiar-se. Pediu ajuda a Bernardo Barata, produtor e músico (Diabo na Cruz, Oioai), para a construção de um disco a solo de bateria. Um trabalho meio experimental, reativo, de muita liberdade criativa, ao mesmo tempo que foi também de pressão. A ideia foi gravar uma canção todos os meses para depois ser publicada no Soundcloud da editora londrina Jeff. O álbum foi crescendo: de “Janeiro” até “Dezembro” são 12 meses e são também 12 canções — isso mesmo, canções, não experiências sonoras — que podem ser ouvidas — e quase enotadas — online e que, daqui a um par de semanas, vão conhecer uma edição física em vinil.
Fomos ter ao estúdio com Ricardo Martins e com Bernardo Barata, lá para os lados de Alvalade, no dia em que se preparavam para registar a derradeira faixa do projeto. O baterista estava ainda meio atordoado com o jet leg da viagem de muitas horas que tinha feito entre Luanda e Lisboa com várias e longas escalas. Artista que é artista abraça as sensações e isso não foi um impeditivo de nada — às tantas até pode ter sido um bocadinho de jindungo para apimentar a gravação do último tema do álbum.
Ricardo, a aventura de fazer uma música por mês durante um ano está a chegar ao fim. Como é que se sente nesta altura: será como um pai à espera de ver o filho a nascer?
Ricardo Martins (RM) — É estranho, porque parece que já nasceu! Chego mais ao final do ano a pensar no que posso fazer já a seguir e a não querer estar tanto tempo parado. Acho que em 2017, o desafio não vai ser mensal, para poder mudar as regras do jogo, mas fico com a vontade de prolongar já o trabalho. Mas estou super ansioso de ter o disco! Vou ouvindo a playlist que a [editora] Jeff faz, mas agora com o Bernardo ainda falta fazer o trabalho de mistura a pensar em disco.
Explica-nos lá esta ideia de fazer este disco: fazer uma música por mês. Mas tinhas alguma previsão de como é que este trabalho poderia vir a soar?
RM — Eu já tinha tocado a solo, com pedais [de loops] há uns quatro ou cinco anos. Como estou sempre a pensar em música e quero sempre fazer várias coisas, houve um período em que queria fazer muito mais música do que aquela que estava a fazer com as bandas. Foi uma fase em que comecei a ouvir os discos do Max Roach, a consumir tudo o que conseguia encontrar dele, e tropecei num ensemble dele, chamado M’Boom, e fiquei a pensar que queria fazer algo só com bateria, sem me proteger atrás de delays.
Mas arrancaste sem teres nada definido em termos estéticos?
RM — Eu já tinha gravado duas músicas com o Bernardo, que acabaram por ficar guardadas em “Pastas Temporárias” — que até estão no SoundCloud. Tínhamos gravado com o Bernardo como Cangarra e foi muito bom. Na altura falámos logo que seria fixe gravar qualquer coisa de bateria. E quando pensei em avançar para o disco, falei com o Bernardo e tivemos esta ideia de ser uma gravação mensal, para eu me obrigar a fazer uma música todos os meses. Na altura, se calhar, fui um pouco ingénuo: pensei em fazer uma música que refletisse o meu mês.
Isso é impossível?
RM — É completamente impossível. Se refletir alguma coisa é aquele dia da gravação.
Bernardo Barata (BB) — Mas não sei se não houve alguns meses que não tiveram mesmo a ver com o mês em si. Às vezes chegavas aqui com uma ideia, que era, basicamente, um ritmo — ou um loop base — que se calhar vinha de alguma coisa que andaste a fazer.
RM — Nessa dimensão sim, mas eu pensava numa dimensão mais romântica: se for um mês mais depressivo a música vai sair super-down!
BB — (Risos)
“O Ricardo vê a bateria de uma forma um bocado especial. A bateria pode ser apenas um elemento de uma canção, com um papel muito definido, mas também pode ser algo radicalmente diferente e é aí que o Ricardo brilha” — Bernardo Barata
No SoundCloud da Jeff podemos também ver as capas que foram feitas para cada faixa. E curioso que começam por ser capas azuis e as cores depois vão aquecendo ao longo do alinhamento até chegarmos ao laranja e vermelho do fim do ano.
RM — Isso foi um bocado a minha cabeça de designer a trabalhar! Houve uma relação na minha cabeça com a escala de Beaufort, que classifica a intensidade dos ventos, desde a leve brisa até ao furacão. Os símbolos que aparecem nas capas também são correspondentes a essa escala, a cada um desses níveis.
Achas que essa escala de intensidade de ventos se reflete na sonoridade deste disco?
RM — Acho que não. Acho que é outra dimensão. A minha ideia era mais criar a rotina de ir compondo coisas em estúdio, de aprender os nossos pequenos truques aqui em estúdio para adensar as canções. Mas essa intensidade da escala de Beaufort é a um nível mais pessoal, porque quando ponho a tocar a “Março” ou a “Outubro, a nível musical não se traduzem, propriamente, como sendo uma faixa calma ou muito caótica. Seguir esse princípio, na verdade, ia tornar o disco muito rígido.
Começou por ser um disco teu, só contigo a tocar, mas tornou-se num processo muito mais colaborativo ao longo dos meses. O que foi passando de azul, para vermelho e depois para laranja foi a relação entre ti e o Bernardo, enquanto músico e produtor. Tu na bateria e ele na régie. Como é que o Bernardo entra neste processo?
RM — O disco de Cangarra foi gravado há já bastante tempo — mais de dois anos, talvez. E adorei trabalhar com o Bernardo e fazia todo o sentido esta cena a solo passar por este pingue-pongue que vamos fazendo. Foi-se tornando, cada vez mais, num diálogo. Às vezes tenho uma ideia sónica, digo duas ou três palavras meio vagas, e ele faz uma tradução incrível e vai buscar o som!
“Foram 12 músicas e até certa altura, a meio do ano, até me punha a pensar no que é que podia fazer mais! Mas depois acabou por nunca ser um problema: de mês a mês surgem coisas que até podem ser simples, como um microfone novo que o Bernardo pode comprar e com que vamos brincando” — Ricardo Martins
Bernardo, nunca tinhas feito um projeto como este, até porque discos como este não são assim tão comuns.
BB — Pois, não são. Nunca tinha feito nada deste género, a não ser uma experiência com um violinista — que era a reação a um filme, tocada à frente de um ecrã. Eu gostei logo muito do Ricardo e é uma coisa pessoal que vai para lá da música, mas por outro lado, por poder “disparatar” sonicamente tem-me vindo a dar um gozo do caraças, porque é o que me falta, em grande parte, nas outras coisas em que estou envolvido, que são mais rígidas, onde não dá para fazer isso.
Enquanto produtor e técnico de som, também foi um desafio criar um disco de bateria?
BB — É engraçado: foi bastante natural! Quando explico este trabalho que estou a fazer com o Ricardo a pessoas que não estão bem a par, uma boa parte delas ficam a estranhar e pensam que é uma grande seca! Mas depois quando as ponho a ouvir o disco percebem que não é bem assim. O Ricardo vê a bateria de uma forma um bocado especial. A bateria pode ser apenas um elemento de uma canção, com um papel muito definido, mas também pode ser algo radicalmente diferente e é aí que o Ricardo brilha, porque tira sons, porque inventa, porque não se segue pela lógica do elemento bateria como a base de uma canção. Até tem sido fácil, caso contrário não conseguíamos fazer isto num dia, que foi o que nos propusemos.
Ricardo, como é que começaste a ver a bateria desta forma?
RM — A certa altura comecei a perceber que ligava muito mais à componente melódica da bateria e que, para mim, é superimportante de explorar. Criei as ideias das frases musical. Por acaso toco bateria, mas podia tocar qualquer coisa qualquer. Houve uma série de discos em que fui tropeçando e tudo o que me atraia nesses álbuns e nos bateristas era a característica de estarem a “falar”. Os discos do Max Roach, do Han Bennink, o Milford Graves foram-me dando pistas… de resto sou eu a tocar, muitas vezes sozinho, no meu mundo.
“A intensidade da escala de Beaufort é a um nível mais pessoal, porque quando ponho a tocar a ‘Março’ ou a ‘Outubro’, a nível musical não se traduzem, propriamente, como sendo uma faixa calma ou muito caótica. Seguir esse princípio, na verdade, ia tornar o disco muito rígido” — Ricardo Martins
Já vêm para estúdio com as ideias definidas antes de cada sessão, Ricardo? Já sabes o que vais gravar hoje?
RM — Eu cheguei há dois dias de espetáculos de teatro em Luanda com a Companhia João Garcia Miguel e dei um par de workshops. Estive montes de tempos a tocar e surgiram duas ou três coisas que gravei no meu telemóvel em formato-chunga, para não me esquecer, e essa faixa de “Dezembro” vai passar por aí, bem como uma série de ritmos mais ligados a Angola que me atraíram bastante.
Hoje vais tentar fugir ao que fizeste em novembro?
RM — Não. Eu tento sempre não esquecer o que fiz o mês passado, a pensar já no disco.
Pelo que vi na bateria que está montada ali na sala, nesta última faixa não vais usar pratos. É uma marca da tal experiência em Angola, de teres absorvido se calhar mais o batuque e os ritmos de Luanda? São essas experiências que marcam a identidade das faixas?
RM — Acho que nunca é tão linear. Mas sei que quero usar uma ideia que existe quase do reco-reco, que existe na música angolana dos anos 1970, e que eu gosto bastante. Não usar pratos é ir aos poucos gerar novidade. Foram 12 músicas e até certa altura, a meio do ano, até me punha a pensar no que é que podia fazer mais! Mas depois acabou por nunca ser um problema: de mês a mês surgem coisas que até podem ser simples, como um microfone novo que o Bernardo pode comprar e com que vamos brincando.
Este projeto está a chegar ao fim, mas fica uma grande amizade os dois. Está previsto esta colaboração entre músico e produtor continuar a desenvolver-se?
BB — Já estamos a falar nisso!
RM — Ainda está muito na nuvem (risos), mas há um desejo muito grande de fazer uma residência fora, numa ilha, e em duas semanas compor e fazer um disco lá com os dois. Fazermos coisas que nem tenham nada que ver com este projeto a solo. Falou-se no Bernardo levar também instrumentos.
BB — Eu fiquei com vontade de pôr o Ricardo a cantar!
RM — Já houve uma experiência no mês de novembro e a coisa, surpreendentemente, até soou bem! Mas cantar é superestranho para mim!