O novíssimo cinema português está de boa saúde — é só preciso ter fé…
O Curtas Vila do Conde acabou na semana passada, mas deixou a semente para o novo, o novíssimo cinema português, mesmo quando na Competição Nacional triunfa um filme todo ele francês, António, Lindo António, da luso-francesa Ana Maria Gomes. Uma semana na linda cidade do rio Ave a acompanhar as curtas nacionais dá para um itinerário fidedigno das novas tendências do cinema.
Fica uma espécie de roteiro, por Rui Pedro Tendinha.
Penúmbria, de Eduardo Brito
Uma história de uma povoação que os seus habitantes querem todos, em bloco, abandonar. Uma terra de desolação e de tristeza solene chamada Penúmbria. Uma Twilight Zone filmada em falso documentário, uma divertidíssima mentira em formato de cinema. O primeiro filme do argumentista Eduardo Brito é complementado com uma partitura musical de Joana Gama e Luís Fernandes, música inquietante perfeita para uma distopia muitíssimo bem escrita.
António, Lindo António, de Ana Maria Gomes
O grande vencedor do festival (além do prémio de melhor curta nacional, arrecadou ainda o prémio do público). Um documentário com pitadas de ficção e uma autenticidade assente na maior das simplicidades. Uma luso-francesa a filmar a sua família, neste caso um “caso familiar”: um tio da Beira Alta que saiu de Anta, aldeia cheia de antas, há cinquenta anos para o Brasil e nunca voltou. Em Portugal, a avó da cineasta (excelente personagem de cinema), a carpir mágoas; no Brasil, o António, mito português envolvido numa aura de mistério. Pode não ter sido o melhor filme do festival, mas não deixa de ser um convite para uma dança lúdica entre o real e o imaginado. Vamos ouvir falar muito de uma cineasta vinda das artes.
A Brief History of Princess X, de Gabriel Abrantes
Era um dos mais esperados filmes do festival, depois de já se ter estreado no circuito comercial inglês como complemento de Salve, César!, dos irmãos Coen. Abrantes, um dos enfants terribles do cinema português, inventa um fait divers em torno de uma obra do escultor Brancusi em que a forma fálica cria alguns mal-entendidos. A Brief History of Princess X é uma comédia com ganchos de humor insubordinados mas com uma controlo de tempo, forma e estética notáveis. Cada vez mais, o cinema de Abrantes fica iconográfico.
Setembro, de Leonor Noivo
Foi o ausente mais notado do palmarés. Uma média-metragem com uma segurança narrativa notável e precisão narrativa impressionante. Nos corredores do festival, falava-se em influências de Salaviza, mas é outra coisa. A realizadora portuguesa tem uma outra linguagem, mesmo quando entra de forma sensual nos mistérios da adolescência, neste caso de um rapaz que regressa a Portugal e sente-se abandonado pelos pais. Marta Mateus, a atriz principal, é um daqueles rostos que nos apetece ver mais em grande ecrã…
O Dia do Meu Casamento, de Anabela Moreira
Com a ajuda de João Canijo (aparece nos créditos como co-realizador), depois do registo documental em Portugal — Um Dia de Cada Vez, Anabela Moreira vira-se para a ficção com um registo de realismo extremo. A atriz-realizadora interpreta uma noiva na véspera do seu casamento: a chegada da família, as traquinices dos mais novos, as conversas desconfortáveis entre os familiares e o stress do grande dia. Trata-se de uma comédia de maneiras com a habitual rudeza de estilo de Canijo. O melhor de tudo não é o olho observador e algo satírico mas sim o mecanismo coreográfico, onde cada plano parece estar pensado com uma minúcia assustadora…
A Casa ou Máquina de Habitar, de Catarina Romano
Um documentário em animação. Tem procedimentos estilísticos experimentais, mas que são sempre acessíveis. Catarina Romano pega em vozes reais que contam histórias de como habitavam as suas casas. Um objeto curiosíssimo que por vezes fica algo preso à sua fórmula. Sente-se que o cinema de animação português está mais adulto.
Fiesta Forever, de Jorge Jácome
Outro filme vocal, outra experiência sonora onde uma série de conversas sinalizam imagens com tratamento 3D de antigas discotecas históricas entretanto em ruínas. O realizador de Plutão tem memórias para contar, afinidades geracionais e um enlevo que não se explica. Acima de tudo, é uma proposta de cinema de ensaio com uma pulsão sensual incrível. Se não fosse uma firme crença numa conceptualização demasiado engomadinha, Fiesta Forever era mais feliz no seu feitiço hipnotizante.
Cidade Pequena, de Diogo Costa Amarante
É um cineasta que de filme para filme arrisca cada vez mais, mas também é daqueles casos em que cada curta acaba por prometer mais do que cumpre. Diogo Costa Amarante tem um gesto de câmara perfeito e mil e uma ideias do arco da velha capazes de deixarem loucos qualquer cinéfilo, mas depois falta sempre um je ne sais quoi no desenvolvimento. Aqui, pega na irmã e no filho dela e inventa uma espécie de metaficção capaz de meter som de F. R. David (“Words Don’t Come Easy”) e alguma deformação do rácio do ecrã. Fascina, mas não se entranha.
Por Diabos, de Carlos Amaral
Bom gesto, este, o do Curtas: selecionar um filme de terror assente em (falso) material de arquivo para nos contar um caso sobrenatural. Um detetive tenta encontrar as causas do desaparecimento de uma mulher durante o entrudo numa aldeia montanhosa em Trás-os-Montes. Escrito com sensatez de género e uma economia narrativa quase a rondar o perfeito, Por Diabos foi o filme que mais sustos provocou neste Curtas.
Porém, a dada altura, parece que o próprio conceito do filme já está estafado.
O Caso Tigerman
Na secção Stereo, o Curtas organizou uma série de cineconcertos. Dos Tindersticks a Jay-Jay Johanson, o Teatro Municipal cruzou o dispositivo do cinema com música ao vivo das mais variadas formas.
O caso de How to Become Nothing, conceito fotográfico de Rita Lino, com música, texto e interpretação de Paulo Furtado/The Legendary Tigerman e realização de Pedro Maia, foi diferente. Tratava-se da estreia mundial ao vivo de um objeto que será uma longa-metragem, mas que em Vila do Conde nasceu como performance ao vivo. Foi simplesmente o momento do festival.
Um falso diário de um homem perdido nas estradas dos desertos americanos, uma viagem com dor poética a uma vertigem niilista que repensa toda a iconografia rock & roll americana. Mergulho no vazio? Talvez seja mais pessoal (para Tigerman) do que se imagina. É uma espécie de quebra-cabeças referencial capaz de misturar David Lynch com o vazio de Antonioni. Tudo isto num Super 8 com um rigor tão furioso como serenamente deslumbrante.
Um road movie fora de tempo narrado pelo próprio Furtado e com sentido “avariado” delicioso. Quando for longa-metragem pronta a ir para os cinemas, terá a voz-off de uma ator americano e novas cenas ainda a serem filmadas. Percebe-se sobretudo que o imaginário deste músico tem muito cinema dentro dele…
A América, ao som do “power” elétrico de Tigerman, ainda pode ser uma alucinação onírica com uma beleza poética transcendente. How to Become Nothing vai ter uma vida longa. Um festival de cinema é para isto: para dar à luz milagres destes!
Por fim, o palmarés!
Grande Prémio: From the Diary of a Wedding Photographer, de Navid Lapid
Melhor Filme Nacional: António, Lindo António, de Ana Maria Gomes
Melhor Realização: A Brief History of Princess X, de Gabriel Abrantes
Prémio do Público: António, Lindo António, de Ana Maria Gomes
Melhor Ficção Internacional: Limbo, de Konstantina Kotzmani
Melhor Filme Experimental: Bending to Earth, de Rosa Barba
(Lista completa aqui.)
Ana Maria Gomes, realizadora de António, Lindo António