Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band pertence àquela rara categoria de discos que marcam um antes e um depois. Um marco assinalando mudança. No caso dos Beatles, essa mudança estava já a anunciar-se anteriormente, quer em Rubber Soul, em que a ideia de álbum como mais que mero ajuntamento de canções surge plenamente definida, quer, principalmente, em Revolver, editado em 1966 e hoje visto por muitos como o melhor álbum da banda, aquele em que alargaram os horizontes da pop a música indiana, em que prenunciaram um futuro de electrónicas com a inigualável “Tomorrow Never Knows”, em que trouxeram dois quarteto de cordas (e nada mais) para desenhar um pungente retrato de solidão em “Eleanor Rigby”.
Sgt. Pepper, porém, é de uma dimensão simbólica diferente. Surgiu quando os Beatles, incapazes de controlar a loucura da Beatlemania, abandonaram os palcos para se refugiarem em estúdio e, nele, explorarem todas as possibilidades que se abriam às mãos de uma imaginação fértil, uma criatividade em ebulição e a disponibilidade da tecnologia mais moderna. “Strawberry Fields” e “Penny Lane” foram os primeiros sinais do que estava para chegar — a nostalgia da infância ganhava novos contornos e o psicadelismo assaltava o mainstream por responsabilidade da mais importante banda no planeta.
Quando chegou Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, edição oficial assinalada dia 1 de Junho de 1967, o mundo abriu a boca de espanto. Não só os fãs da banda, entenda-se, mas também os seus pares e, mais importante para esta história, vozes respeitadas do mundo da literatura, do cinema, do teatro e da música erudita, ou seja, figuras de universos artísticos que, na sua maior parte, haviam desdenhado até aí a música pop e rock como pobre matéria descartável. Pela ambição do gesto criativo, pelo arrojo das soluções de produção, pela forma como conjugava as mais diversas linguagens musicais num contexto pop, pelo conceito que guiou a sua criação e pelo cuidado posto na arte gráfica que o apresentava — ainda hoje a capa e as fardas que os Beatles nela vestiam são uma das mais icónicas imagens da música popular urbana —, Sgt. Pepper não lhes deu outra hipótese. Como fazê-lo perante o arrojo da intrincada “A Day in the Life”, perante o ambiente onírico de “Being for the Benefit of Mr. Kyte”, perante a verve poética e surreal que alimentava as palavras e os sons de “Lucy in the Sky with Diamonds”?
Alguém apontou um dia que o génio dos Beatles residia no facto de conseguirem ser espelho da sua época, uma banda que absorvia os sinais criativos mais interessantes que a rodeavam, e, ao mesmo, alguém que agia e transformava os tempos em que viveu. Sgt. Pepper é o álbum em que se tal se manifesta da forma mais evidente. Emanou do underground psicadélico londrino e californiano e da forma como, em ambos, se misturavam a música, as artes plásticas, o cinema, a vanguarda. Mas, no mesmo movimento, os Beatles criaram uma peça única, declaradamente obra dos quatro que a assinaram (com George Martin, o produtor, a deixar também a sua marca enquanto detentor do título não oficial de 5º Beatle).
A sua influência revelar-se-ia massiva e manifestou-se de forma múltipla. Ou seja, não devemos procurá-la apenas na descendência directa em termos sonoros. A presença de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, pensado como álbum que fosse mais que um álbum, sente-se bem além do universo do pop rock e do psicadelismo em que germinou. É dessa influência múltipla a atravessar os tempos que damos aqui conta, em oito bandas e oito canções que, de forma mais ou menos evidente, foram tocadas pelo génio do disco histórico dos Fab Four.
Caetano Veloso — Caetano Veloso
Se os Beatles eram globais, então os efeitos do que faziam sentiam-se em todo o mundo. Se Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Clube Band era inédito, inaudito, e era mesmo, então o espanto que primeiro provocou, logo se transformou mundo fora em matéria a aproveitar para novas e arrojadas criações.
Quando Sgt. Pepper chegou a terras brasileiras, alojou-se em ouvidos muito atentos. Gilberto Gil passeava pelo Nordeste, ouvindo e redescobrindo a música tradicional nordestina quando aquele novo mundo sónico lhe mostrou um caminho. Para Gil, este teria que se situar exactamente entre o arrojo vanguardista, o colorido psicadélico e a experimentação pop dos Beatles e a força da tradição brasileira e das suas novas manifestações artísticas.
Gilberto Gil chegou do Nordeste com o plano na cabeça e correu a apresentá-lo à sua comunidade de amigos músicos e artistas. Entre eles, estava Caetano Veloso. Caetano Veloso percebeu tudo. Percebeu imediatamente. Percebeu que imitar Sgt. Pepper resultaria numa fraca cópia do original. Sgt. Pepper mostrara que a imaginação é uma arma muito poderosa e que a tecnologia deve ser usada para inventar o futuro, mas não contra a tradição. Pelo contrário, a favor dela.
Tudo isto ficou muito explícito no seu primeiro álbum a solo, editado em 1968. O vermelho da capa era semelhante ao que dominava a capa de Sgt. Pepper, mas nele estava inscrita a sensualidade dos corpos e a luxuriante vegetação tropical. No disco ele mesmo, tínhamos o reflexo brasileiro do inglesíssimo disco dos Beatles. Não havia vaudeville ou music-hall vestido de psicadelismo, mas havia guitarras eléctricas pingando acidez psicadélica sobre sambas, ritmos rock em balanço latino, orquestrações arrojadas e órgãos fervilhantes servindo o doce sotaque com que Caetano cantou a vida correndo rápida nas grandes metrópoles brasileiras, a vida de que se fugia nas pequenas vilas pobres e esquecidas e também a história que antecedeu tudo isso.
Sgt. Pepper anunciou uma refundação da música pop. Caetano Veloso ouviu-o e arrancou o seu primeiro álbum a solo com a leitura de um excerto da carta com que Pero Vaz de Caminha anunciou a D. Manuel a chegada ao Brasil. Impulsionado pelo disco dos Beatles, Caetano Veloso construía um novo país. Era feito de “Tropicalia”, de “Clarice”, de “Alegria, Alegria”. “Soy loco por ti, América”, dizia ele. “Superbacana” esse novo país.
Capitão Fausto — Capitão Fausto Têm os Dias Contados
A devoção pela obra dos Fab Four é conhecida e não falamos do baixo Hofner, popularizado por Paul McCartney, que Domingos Coimbra leva para palco — isso é apenas manifestação visível de algo que se revela de forma mais profunda. Os Capitão Fausto conhecem muito bem os caminhos que pisam, sabem exactamente para onde virar nas estradas abertas por aqueles que vieram antes deles. Falamos afinal, de uma banda que consegue tocar de cabeça canções dos Gentle Giant se lhes atirarmos um título ao calhas da discografia daquela banda de culto dos anos 1970. Mas, por trás de tudo isso, do prog e do rock, dos Buffalo Springfield de ontem e dos Tame Impala de hoje, da música clássica de Manuel Palha ou do Dylan e Syd Barrett de Tomás Wallenstein, estará sempre a sombra tutelar dos Beatles, origem de tanta coisa que apercebemos na sua música.
Em 1967, os Beatles enfiaram-se em estúdio para inventar um novo futuro, mexendo em todos os botões da maquinaria disponível no estúdio e pedindo a George Martin e aos técnicos de Abbey Road que arranjassem soluções técnicas para aquilo que desejavam para as suas canções. Foram, como sabemos e como se foi dizendo uma e outra vez nos últimos 50 anos, um espelho do presente apontado para o futuro. Fizeram-no, porém, sem que perdessem o norte de algo que carregavam consigo desde a infância, o apego às formas de canção mais transparentes.
A revolução fez-se sem matar o passado e com as memórias, por exemplo, do music-hall que ouviam os seus pais e avós transportadas para experiências vanguardistas em estúdio moderno. Os Capitão Fausto apreenderam muito bem essa ideia, devidamente adaptada, como é obrigatório, à era que habitam e ao muito que aconteceu desde 1967.
Têm os Dias Contados, o terceiro álbum do quinteto lisboeta, tem em si a história de um lugar (Lisboa, Portugal), de um tempo (a segunda década do século XXI), e de uma geraçã (a dos músicos que compõem a banda, nos seus vintes como nos seus vintes estavam os Beatles de Sgt. Pepper).
Têm os Dias Contados é um retrato deste tempo e dessa geração e podemos dizer que é, no limite, álbum conceptual sem conceito escancarado. É também um álbum em que, como nunca antes no percurso da banda, o estúdio surge como elemento criativo indispensável na definição da forma das canções. E depois, mergulhamos na música que nos oferecem e descobrimos, sem surpresa, que na base de tudo está um apreço bem alimentado pelo formato canção, redondo e intemporal.
Não, não precisávamos de ver o baixo Hofner nos concertos para perceber que os Beatles têm alguma coisa a ver com isto. Como não precisamos de lhes perguntar por Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Sabemos que a discoteca caseira dos Capitão Fausto é muito vasta, mas, quer dizer, há coisas que saltam à vista.
Frank Zappa — We’re Only in It for the Money
A capa não engana quanto ao que a inspirou. Temos a banda em primeiro plano, em frente de uma vasta galeria de personagens que preenche o plano atrás dela. Temos o bombo em cuja pele está inscrito o título do álbum, e um arranjo natural onde se desenha o nome da banda. Mas, aqui, a banda surge em modo travesti e o arranjo natural não é um canteiro cuidado com flores formando a palavra Beatles, antes um amontoado mal-amanhado de melancias, cenouras e outros vegetais desenhando as letras que compõem a palavra Mothers. Aqui, todas as personagens em pose têm uma tira preta sobre o rosto, como não fosse recomendável que conhecêssemos a sua identidade — há algumas excepções, como Jimi Hendrix, que surge à direita na capa e que era amigo do responsável por tudo isto. O seu nome era Frank Zappa e o álbum, lia-se no bombo, We’re Only in It for the Money.
Editado em 1968, era um álbum de resposta a Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. É, na verdade, um álbum contra Sgt. Pepper — só por essa razão, já é possível afirmar que não existiria caso os Beatles não tivessem gravado o seu histórico disco de 1967. Mas não só por isso.
Em We’re Only in It for the Money, o iconoclasta Frank Zappa não deixava pedra sobre pedra. Atirava-se à contracultura hippie, que retratava como um bando de hipócritas cabeças de vento, e atirava-se igualmente aos conservadores que se lhes opunham, igualmente hipócritas, pecadores perversos sempre prontos a evocar a palavra de Deus. Destratava a polícia que abusava do seu poder, gozava com o circo rock e com a “american way of life”. Era até capaz de, no espaço de uma canção, denunciar a misoginia latente enquanto satirizava a vacuidade da mulher típica da classe média americana. Frank Zappa fazia tudo isto, fiel aos seus métodos e aos seus princípios, num mundo sob a influência de Sgt. Pepper. E mesmo ele, que o satirizou, não lhe escapava.
We’re Only in It for the Money é um álbum de canções muito diversas interligadas por interlúdios delirantes. É um álbum onde estruturas pop são esventradas com prazer, onde os wah-wahs psicadélicos convivem com doo-wop de carrossel, onde sons são manipulados e colagens abstractas pontuam o seu avanço. É psicadelismo anti-psicadélico gravado por um homem com intenções muito sérias e humor corrosivo. Com We’re Only in It for the Money, Frank Zappa conseguiu um feito peculiar. Denunciou Sgt. Pepper como fraude enquanto, no mesmo movimento, lhe prestava homenagem. Um feito, de facto.
Miles Davis — Bitches Brew
Miles Davis já mostrara antes a sua admiração, ao defender que havia sofisticação artística e talento melódico suficiente na música dos Beatles para que músicos sérios lhe prestassem atenção. Mostrou também admiração depois, se acreditarmos na carta que, em 1969, co-assinou com Jimi Hendrix e outra lenda do jazz, o baterista Tony Williams, pedindo a Paul McCartney que se lhes juntasse em Nova Iorque para sessões de gravação conjuntas. O supergrupo, infelizmente, nunca chegou a reunir-se — a agenda de McCartney não permitiu corresponder imediatamente ao pedido no telegrama e, no ano seguinte, Hendrix morreria com tragicamente curtos 27 anos de idade. Mas só a hipótese de poder ter existido é testemunho da forma como o impacto dos Beatles chegou aos mais diversos quadrantes.
Na segunda metade dos anos 1960, o trompetista já era aclamado, graças a um percurso que já contava duas décadas, iniciado ao lado de Charlie Parker e que passaria pela suave revolução cool jazz, que avançaria pelo mais tumultuoso hard-bop, que faria Miles cruzar caminhos com Charlie Parker ou John Coltrane. Em 1970, seria tempo de outra revolução num outro tempo. Tempos eléctricos, tempos de novas tecnologias e outras ambições — tempos psicadélicos também. Em 1970, Miles Davis surpreendeu o mundo do jazz e revelou-se aos rockers que, de jazz, pouco ou nada ouviam, com a edição de Bitches Brew, portento de criatividade em que, acompanhado por músicos como Wayne Shorter, John McLaughlin, Chick Corea ou Jack DeJohnette, estilhaçou as fronteiras entre o jazz, o funk, o rock, a vanguarda.
Bitches Brew é, essencialmente, uma criação de estúdio, alinhado e montado a partir das horas de gravações extraídas das sessões comandadas por Miles. Alguns músicos chegaram até elas carregados de preconceitos — a pop, o rock, o funk, eram expressões pobres e descartáveis, pensavam. Mas depois davam com Miles a ouvir Jimi Hendrix, Sly & The Family ou, claro, os Beatles e Sgt. Pepper. O mundo mudara e Miles, progressista e sempre atento, tomava notas.
Os Beatles tinham George Martin, Miles Davis tinha o apoio do produtor Teo Macero. Retalhando sons, combinando excertos de sessões diferentes, montando e remontando, Davis e Macero criaram em conjunto um novo mundo sónico, vibrante e colorido, com todo um outro swing, um outro groove, que abriu caminho para novas expressões musicais na década de 1970, no jazz e para além dele. É certo que Miles Davis, génio absoluto, não precisava de Sgt. Pepper. É certo, também, que encontrou nele rastilho para começar a desenhar um novo mundo da sua criação. Bitches Brew foi o seu nome.
Quarteto 1111 — Quarteto 1111
O lado inovador, fundador, de Sgt. Pepper nasceu da visão e imaginação dos seus autores, num processo em que tiveram precioso auxílio no acesso livre às mais avançadas tecnologias de gravação e produção existentes em 1967. Porém, parece indiscutível que a tecnologia se limitou a auxiliar na descoberta de um caminho. A visão generosa e a imaginação fértil, essas sim, foram as componentes decisivas. Era isso, mais que o resto, que se tornava tão inspirador nos Beatles de Sgt. Pepper.
Em Portugal, uma banda chamada Quarteto 1111, liderada por José Cid e onde encontrávamos, em 1970, Michel Silveira, Jorge Moniz Pereira e Mário Rui Terra, mostrou até onde poderia conduzir a ambição criativa, associada à visão clara do rumo que se pretendia seguir. Os sinais tinham chegado antes. Tinham chegado, por exemplo, em 1968, um ano depois de Sgt. Pepper, num single formado por “Génese” e “Monstros Sagrados”. Nele, o Quarteto abraçava o psicadelismo como grito libertador num país a viver sob ditadura — vozes distorcidas, guitarras ácidas, baterias de som adulterado, tudo conjugado para criar uma experiência sónica que nos transportasse para um mundo pintado com cores, muitas cores e muito diferentes dos tons de cinzento do Estado Novo.
Seria com o álbum homónimo editado em 1970 que o Quarteto 1111 floresceria definitivamente — com os Beatles, claro, e em particular os Beatles de Sgt. Pepper, como impulso determinante. Tal como antes, as condições técnicas disponíveis eram rudimentares em comparação com as dos Fab Four. Mas isso não iria deter a mais fulgurante banda portuguesa do período.
Álbum bi-conceptual, dedicado à emigração massiva dos portugueses fugindo à repressão e à miséria, e à violência indesculpável do racismo e do colonialismo, inclui experiências de música concreta criada com o que havia à mão — um gravador apontado a uns pés em movimento, por exemplo —, folk revista e actualizada, com flauta a recriar ambiente bucólico, teclados que pareciam transformar-se em cítaras (ou seriam cravos?), corte e cola de fita como modo de composição, vozes e guitarras distorcidas, enfim, toda a procura metódica de um som que, escapando a convenções, representasse exactamente aquilo que os seus autores imaginavam para o obra.
O Quarteto 1111 não tinha os estúdios de Abbey Road, mas tinha ouvido Sgt. Pepper. E tinha o rasgo para perceber como transformar essas limitações em virtudes. O resultado? Uma das obras-primas da música criada em Portugal nos últimos 50 anos.
The Chemical Brothers — Dig Your Own Hole
Os Beatles foram os seus grandes mentores e os Chemical Brothers disseram-no claramente. Souberam exactamente o que queriam fazer, explicavam, ao seguir a pista deixada pelos Fab Four em “Tomorrow Never Knows”. O ritmo 4×4 quebrado no final da frase por Ringo, reunido ao loop de sons montados em fita, reunidos à voz toda ela eco de John Lennon, reunidos à linha de baixo infatigável, sempre na mesma nota, tudo isso era 1966 a avisar, sem que ninguém soubesse ainda, de raves e festas electrónicas por vir, dançadas à luz da lua ou sob as luzes piscando em flash. Nos anos 1990, os Chemical Brothers pegaram na deixa e anunciaram que o seu mentor não era uma banda ou um produtor, mas uma canção, “Tomorrow Never Knows” — a última de Revolver, álbum de 1966 e antecessor de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, onde se concretizaria a ideia de manipulação de som em estúdio, de forma a gravar música impossível de recriar ao vivo no que era então o formato clássico de banda.
Os Chemical Brothers tinham-se anunciado em 1995 com um álbum, Exit Planet Dust que, tal como Sgt. Pepper, podia perfeitamente arrancar com os versos “It was twenty years today” — a capa, afinal, mostrava uma imagem resgatada aos anos 1970, com um casal caminhando estrada fora, muito livre, muito hippie. Mas, tal como Sgt. Pepper abria com rock’n’roll ácido às voltas com orquestrações de filarmónica, conjugando de forma inesperada dois tempos e linguagens distantes entre si — não, aqueles não eram, decididamente, os anos 1940 —, também os Chemical Brothers, na sua electrónica carregada de energia rock’n’roll e no seu groove funk robótico, estavam distantes dos anos 1970 sugeridos na capa. Ligava-os isso: o anacronismo como marca estética. Ligava-os mais: os Chemical Brothers pressentiram na perfeição os sinais do seu tempo e expuseram perante um público mais vasto aquilo que borbulhava no underground — o psicadelismo, no caso dos Beatles, a electrónica como arma pop, essa a que chamaram big beat, no caso dos Chemical Brothers.
Em Exit Planet Dust, expuseram o seu plano de acção. Dois anos depois, com Dig Your Own Hole, aprimoraram-no e exploraram mais — techno, kraut, funk, rock ou acid conjugados num novo ser. Em 1967, o mundo tornou-se psicadélico. Exactamente 20 anos depois, o mundo ouviu “Block Rockin’ Beats”, ouviu as batidas secas, as reverberações e os zumbidos. Ouviu aquela banda que, com o arrojo dos Beatles como rastilho, os homenageava em “Setting Sun”, inspirada pilhagem da canção que começara tudo, “Tomorrow Never Knows”. Em 1997, tal como 20 anos antes, o mundo tornou-se psicadélico. Mas na pista de dança. “It was twenty years ago today”, podemos nós dizer agora, sem margem de erro.
The Flaming Lips — The Soft Bulletin
Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band começou a ser imaginado enquanto álbum conceptual, ou seja, com história para ser contada com princípio meio e fim. Seria a história do famoso Sargento Pimenta, aportuguesemos a coisa, da sua banda e do romantismo de outros tempos que a animava. Assim começaram os Beatles a imaginá-lo. Quando acabaram, não havia qualquer história com princípio, meio e fim. Havia “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, a primeira canção, e havia “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (Reprise)”, a penúltima antes do encerramento triunfal do álbum com “A Day in the Life”. O conceito perdeu a narrativa, mas ficou a ideia de unidade, a de um ciclo de canções comunicando entre si de uma forma que pedia que o ouvíssemos sem interrupções, sem destacar singles ou canções avulso. Essa marca, aliada à utilização criativa das novas tecnologias da época e à ideia de fusão de sons e estilos musicais numa mesma canção, manteve-se e continuaria a ser aproveitada como lição décadas depois.
Em 1999, os Flaming Lips, que conhecemos enquanto combo de rock sónico e de delírio psicadélico alimentado pela mente do vocalista Wayne Coyne, surpreenderam-nos. The Soft Bulletin, o álbum que editaram na recta final do século XXI, não se parecia com quase nada do que tinham feito antes. Continuava a tentação psicadélica e sobressaía uma nova veia pop, mas o psicadelismo tinha ares de conto de ficção científica e reflexão existencialista, e a pop era estranha e brilhava como centenas de cometas a atravessar o céu em simultâneo.
Havia um conceito vago a unir todas as canções — pergunta intemporal: que raio andamos a fazer no mundo? Existe um propósito para isto a que chamamos vida? —, mas aquilo que o tornava tão apelativo e o que o transformou num dos acontecimentos desse ano e no grande marco da carreira da banda americana era a forma como esta usava uma diversidade de elementos para atingir um som novo — ouviam-se baterias registadas em velhinho gravador de cassetes e sintetizadores topo de gama, cruzavam-se ritmos electrónicos com guitarras espaciais, theremins de som extraterrestre e a sonoridade de séculos antigos do glockenspiel. Tudo diferente, tudo emanando do mesmo centro. Eram os Flaming Lips a mostrar que, 22 anos depois, a influência de Sgt. Pepper ainda se fazia sentir.
Para que não restassem dúvidas quanto a isso, reincidiram e editaram em 2014 With a Little Help from My Fwends, tributo em que recriaram o álbum dos Beatles canção a canção, com a ajuda de convidados como My Morning Jacket, Moby, Foxygen, Julianna Barwick ou Miley Cyrus. Foi a sua forma de dizerem: atenção, que a história de Sgt. Pepper está longe de ter acabado.
The Rolling Stones — Their Satanic Majesties Request
A imprensa podia inventar uma batalha entre duas bandas opostas, os fãs de uma podiam posicionar-se no mundo afirmando-se contra a outra, mas isso, na verdade, eram coisas da imprensa e dos fãs. Os Beatles e os Rolling Stones observavam-se atentamente, conversavam, saíam juntos, admiravam-se. Em 1963, Lennon e McCartney tinham oferecido aos Stones um dos seus primeiros sucessos, “I Wanna Be Your Man”. Quatro anos depois, a proximidade mantinha-se.
Enquanto os Beatles, depois de abandonarem as digressões para se concentrarem no estúdio, trabalhavam nas intrincadas composições de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band em Abbey Road, os Rolling Stones iam prestando atenção e tomando notas. Também eles seriam psicadélicos como nunca haviam sido, arrojados de uma forma completamente distinta do arrojo que lhes conhecíamos antes.
Três meses depois de os Beatles começarem a gravar Sgt. Pepper, os Stones entravam também em estúdio. O título do novo trabalho, Their Satanic Majesties Request, mostrava que, mesmo sob a influência dos Beatles, os “bad boys” continuavam “bad boys”. Havia canções cantadas com voz distorcida, contos de ficção científica transformados em rock da idade do espaço, histórias medievais ganhando vida entre as quatro paredes de um estúdio com a tecnologia mais moderna ou música marroquina transformada em psicadelismo para a swinging London. Ali estavam eles, os Rolling Stones, “2000 light years from home”. Nunca os víramos assim. Ali estavam eles na capa do seu próprio Sgt. Pepper, reverso negro do original, vestidos como magos de origem incerta que nos encaravam com rosto misterioso.
Quatro meses depois dos Beatles, os Rolling Stones mostravam onde os havia conduzido a viagem de Sgt. Pepper. Fizeram-no porque era impossível escapar-lhe, porque a sua profundidade criativa parecia irrecusável. Todos tinham que beber da fonte e sofrer os efeitos. À época da edição, Their Satanic Majesties Request foi desconsiderado como pálida imitação do álbum que o inspirara. O tempo, porém, viria a fazer-lhe justiça e é hoje visto como um elemento único e imprescindível da discografia da banda. Os Rolling Stones, ainda assim, não mais arriscariam navegar aquelas águas. O rock’n’roll regressaria logo a seguir. A obra estava feita.
Textos: Mário Lopes