Desilusões, algumas surpresas e as novas tendências do cinema de autor. Foi assim a 70ª edição do Festival de Cinema de Cannes, o maior festival de cinema do mundo com uma competição algo mediana. Ainda assim, The Square, do sueco Ruben Östlund (na foto) foi realmente o melhor filme. O prazer de ver um cineasta a acreditar no humor cruel nórdico. O filme coloca-nos na zona de desconforto moral e é uma sátira ácida ao mundo da arte. O júri presidido por Pedro Almodóvar não foi cínico e escolheu bem, mesmo contra a vontade de uma certa crítica fossilizada mais interessada em experiências repetitivas vindas do Leste.
Cannes 2017 também teve cinema americano de qualidade. Wonderstuck, de Todd Haynes, o sucessor de Carol, foi uma espécie de conto encantado passado no século passado em dois períodos diferentes. Uma história de duas crianças mudas à procura do seu lugar no mundo. Uma das histórias é em formato de cinema mudo e a preto e branco. Ficamos com a sensação que Haynes está com um prazer de filmar tremendo. Um cineasta em busca de uma magia que se poderá descrever como única. O seu único pecado é que a dada altura começa a ficar muito, demasiado parecido com a estilização de Wes Anderson. O júri não ficou apaixonado.
Da Hungria veio um ovni , Lua de Jupiter, do encenador e realizador Kornel Mundruczo. Uma fábula sobre um imigrante ilegal em Budapeste que, ao ser baleado pela polícia, ganha super-poderes e consegue voar. Trata-se de um thriller cheio de anotações sobre a situação dos refugiados e tem um realismo mágico que não aquece nem arrefece. Will Smith, membro do júri, confessou que foi o único a gostar. O ator americano está com gostos avariados (veja-se as suas últimas escolhas de papéis…)
Wind River, de Taylor Sheridan, com as estrelas de Hollywood Elizabeth Olsen e Jeremy Renner, venceu o Prémio de Realização no Un Certain Regard, depois de já ter tido a estreia mundial em Park City no Festival Sundance. Não se pode dizer que seja uma obra-prima mas é a última palavra no que diz respeito a thrillers realistas. Trata-se de uma história verdadeira sobre um massacre numa comunidade de índios em pleno inverno. Sheridan, que era conhecido como o argumentista de Hell or High Water- Custe o Que Custar, de David Mackenzie, sabe filmar tiroteios à Sam Peckinpah e consegue uma boa dose de tensão.
O melhor que se viu do cinema francês foi o novo filme de Robin Campillo, 120 Battements par Minute, incrivelmente potente e enérgico. Uma visão sobre a SIDA nos anos 90 em Paris, que segue precisamente a linha realista de A Turma, de Laurent Cantet (filme cujo argumentista era Campillo). Aqui filma-se a Act Up Paris, organização ativista contra a sida, com uma pujança que é rara no cinema francês. Venceu o Grand Prix e o prémio da crítica internacional.
Mosh na matiné de Palais foi coisa que sucedeu quando fora de competição John Cameron Mitchell trouxe How To Talk to Girls At Parties, um manifesto punk adorável. Nicole Kidman e Elle Fanning são as atrizes de um filme de ficção científica com taradice sexual assumida e homenagem à Londres punk de 1977. Uma produção do escritor Neil Gaman que deixou a croisette em êxtase. Tem estreia garantida em breve em Portugal.
Quanto a Happy End, de Michael Haneke é daqueles filmes que marca um festival. Tem imagens que não nos saem da cabeça : uma menina a filmar com o telefone a banalidade da sua mãe depressiva ou um Jean-Louis Trintignant numa cadeira de rodas em Calais sozinho na rua. Happy End é um filme incómodo, mais fechado do que Caché, mais enigmático que os sucessos que lhe deram Palmas de Ouro. Um recital de niilismo que inexplicavelmente acabou por ficar de mãos a abanar no palmarés.
Na Quinzena dos realizadores, chegou uma surpresa para respirar de alívio: Ôtez-moi d’Un Doute, de Carine Tardieu, com Francois Damien e Cécile de France, uma comédia sobre coincidências em que um quarentão descobre num belo dia que afinal o seu pai não é o seu pai biológico. Simples e com atores em estado de graça, é o tipo de proposta de humor que não costuma chegar às paragens de Cannes. É bom perceber que os programadores da Quinzena não têm nada contra salas a rir à gargalhada. Outro dos filmes da Quinzena que foi comprado para Portugal, tal como o pesado The Florida Project, de Sean Baker, um dos melhores desta safra.
Noutra das secções paralelas, a Semana da Crítica, passou com grande sucesso uma curta portuguesa, Coelho Mau, de Carlos Conceição, uma história de dois irmãos a descobrirem os seus corpos. Um imenso conto gótico erótico a clamar imaginários góticos. Conceição vai ser um dos nossos grandes cineastas.
No que toca a mediocridade, apenas um filme terá merecido mesmo a vaia com que foi brindado, Em Direção à Luz, de Naomi Kawase, uma história de luto disfarçada de romance entre um fotógrafo a ficar cego e uma jovem que narra cinema para invisuais. Uma obra cheia de clichés e, pior do que isso, poesia avariada. Esta cineasta de Nara já fez bem melhor…
O maior crowdpleaser do festival terá vindo da Quinzena. A secção paralela selecionou Patti Cake$, uma comédia que já tinha vindo de Sundance com boa fama e um contrato milionário com a Fox. Exemplo de um cinema indie americano que quer ser mainstream. Mas Patti Cake$ tem mesmo qualidade e apresenta em modo de fairytale realista a queda e ascensão, sim, queda e ascensão de uma rapper de New Jersey. O filme é verdadeiramente tocante e com hip-hop irresistível. Nasceu um êxito em Cannes.
Sofia Coppola e o seu remake de Ritual de Guerra, filme de 1971 com Clint Eastwood e dirigido por Don Siegel. Desta vez, é Colin Farrell a fazer de ianque ameaçado por um grupo feminino sulista.O filme é cinema feminista, com certeza, e com o requinte habitual de Sofia. Estas ninfas da Virgínia lembram as manas de As Virgens Suicidas. Mas de Sofia espera-se sempre mais. The Beguiled, longe de ser um mau filme, é outra das deceções do festival, mesmo com presença no palmarés (venceu a melhor realização e Nicole Kidman também venceu o prémio especial 70ª aniversário – de recordar que a atriz esteve em quatro produções na seleção oficial…).
No Un Certain Regard destaque também para La Cordillera, de Santiago Mitre, um thriller místico vindo da Argentina que imagina o lado B da vida de um presidente da república. Neste caso, um presidente da Argentina que lembra o nosso professor Marcelo. A prova de que o cinema narrativo argentino continua com uma pujança tremenda.
Good Time, dos irmãos Safdie com Jennifer Jason Leigh e o britânico Robert Pattinson foi dos mais aplaudidos. A história de dois irmãos em fuga após um assalto ao banco. O cinema dos Safdie está emulado de uma carga trágica muito bonita. Pena que no final o guião se limite a andar às voltas. Fica a curiosidade de Josh Safdie ter confessado à imprensa que está ansioso por voltar a Portugal.
Os seus filmes anteriores já foram premiados no Indielisboa e no Lisbon & Sintra Film Festival.
De A Fábrica de Nada, de Pedro Pinho, já se falou muito e é bom lembrar que foi o grande vencedor da FIPRESCI, a associação dos críticos. Aclamado com veemência na Quinzena dos Realizadores, trata-se de um olhar sobre uma fábrica portuguesa e os seus operários que resistem a uma administração corrupta. Um neo-neo realismo que mete laivos de documentário sociológico, musical e retrato de geração. São três horas muito ambiciosas que dão um prazer incomensurável ao espetador.
Da Alemanha chegou também o novo de Fatih Akin, o realizador de A Noiva Turca. Chama-se In The Fade e é uma história de um ataque terrorista numa cidade alemã e a reação de um mãe que perde o marido e o seu pequeno filho. De todos os filmes na competição foi o que soube melhor contar uma história com uma mise-en-scéne clássica e escorreita. Não é obra para Palma de Ouro mas Diane Kruger, a protagonista , venceu sem espinhas o prémio para melhor atriz.
Depois de Cannes, aguarda-se agora a leva de Locarno, um festival que é neste momento uma alternativa mais exploradora e bravia a Cannes. Vamos torcer que Fátima, de João Canijo ou Ramiro, de Manuel Mozos, possam estar presentes.
Texto: Rui Tendinha