Cinemas fechados, plataformas a lucrar. Ou como a pandemia mudou o panorama da exibição cinematográfica. Foi disto que se falou a partir de abril, quando se percebeu que a indústria de cinema estava a acelerar a revolução digital anunciada. Agora, nunca mais nada volta a ser igual, sobretudo dentro da lógica do blockbuster que fazia o seu negócio logo no primeiro fim de semana.
Em Portugal, há cinemas a fechar, outros a sobreviver, e até existem também aqueles que ficaram com um público reforçado. Mas, num ano de viragem, o cinema feito antes do flagelo teve surpresas, revelações e grandes obras. Rui Pedro Tendinha lembra que, como os Monty Python bem cantaram, mais vale olhar para o lado luminoso das coisas…
O OVNI DO ANO: Malmkrog, de Cristi Puiu
Um tratado de filosofia russa adaptado do texto de Vladimir Solovyov. Mais de três horas filmadas com uma austeridade perfeita para um jogo de diálogos à mesa numa mansão da Transilvânia. Nada se passa, tudo se passa. O cinema da palavra pelo olhar rigoroso de um cineasta que já disse em entrevistas que quis torturar o espectador. Em Portugal, nos primeiros dias, fez apenas 18 espectadores…
O PRAZER DO ANO: Mulherzinhas, de Greta Gerwig
Dar a volta ao romance clássico com um storytelling que repensa a progressão dramática. Uma fórmula orgânica que chega para dar alegria e vida a uma história no feminino. A consagração de uma cineasta que deverá ser fundamental para o novo cinema americano, Greta Gerwig. E depois há um carinho especial por atores em estado de graça, em especial Saiorse Ronan, Florence Pugh e o indomável Timothée Chalamet.
A CELEBRAÇÃO DO ANO: David Byrne’s American Utopia, de Spike Lee
Foram o Porto/Post/Doc e o Ideal a trazerem até nós o novo de Spike Lee, um filme-concerto a partir do espetáculo homónimo de Byrne na Broadway. A sinergia entre os dois mestres é uma celebração para a alma, um momento de música que é também uma lança de esperança política por uma América melhor. Lee entra pelo palco e música adentro e capta todo o brilhantismo de uma coreografia de músicos sem fios. Um luxo!
A SURPRESA DO ANO: Sound of Metal, de Darius Marber
Só quem assina a Amazon Prime Video pôde levar com o choque que é esta obra sobre um baterista de uma banda metálica a perder a audição. O que poderia ser um filme de compaixão melodramática é um convite para entrar num novo mundo. Um mundo de silêncio e das grandes emoções. Foi talvez o objeto mais amado no Festival de Toronto de 2019 e agora é um dos favoritos para ser favorito na temporada dos prémios. É também o filme que vai colocar para sempre Riz Ahmed no mapa.
O ABALO DO ANO: Tudo Acaba Agora, de Charlie Kaufman
É preciso a coragem de uma Netflix para dar luz verde ao filme mais neurótico do ano, uma viagem de um casal para um “date” metafísico numa tarde de inverno. Um Kaufman jocoso e amargo a celebrar uma forma de cinema só sua, aqui a atingir um radicalismo extremo. I’m Thinking of Ending Things é um enorme “bonjour tristesse”, mas abala como poucos. A miséria humana filmada com todas as possibilidades de cinema.
O PORTUGUÊS DO ANO: Patrick, de Gonçalo Waddington
Foi um ano bonito do cinema português. Fomos confrontados com o realismo-choque de Ana Rocha de Sousa em Listen e atropelados pela energia nova de João Nuno Pinto no seu Mosquito, mas são as imagens de Patrick que mais furam a nossa alma. Frio e geométrico, Patrick é uma entrada de rompante num mundo de trevas, o mundo de Mário, rapaz roubado à infância e atirado a uma rede de pedofilia. Gonçalo Waddington filma com uma sabedoria de veterano.
O DESAPARECIDO DO ANO: As Ondas, de Trey Edward Shults
Desaparecido por nunca ter estreado nos cinemas e ter ido para os clubes de vídeo das operadoras sem falatório. Em Portugal, a comunidade cinéfila esqueceu-se de reparar num dos mais assinaláveis dramas dos últimos anos, a história de uma família afro-americana a desintegrar-se depois de um crime numa noite de excessos. Trey Edward Shults confirma tudo de bom que tinha feito antes e assina uma obra onde a câmara torna tudo atmosférico, tudo “gravitas”. Sai-se esmagado desta nova obra-prima.
O ACONTECIMENTO DO ANO: Small Axe, de Steve McQueen
Televisão ou cinema? Uma coisa é certa: não são cinema-televisão nem telefilmes. São cinema-cinema, por muito que a HBO não os queira levar aos Óscares e prefira os Emmys. São cinco filmes de Steve McQueen sobre a herança dos jamaicanos em Londres durante os anos 60, 70 e 80. Histórias com um peso de denúncia histórica e com um olhar punitivo perante o racismo inglês. Com um carácter evocativo, Mangrove; Lovers Rock; Red, White and Blue; Alex Wheatle; e Education são filmes para serem sentidos. Cannes 2020 fez muito bem em colocar o seu carimbo aqui.