(Imagem: Marta Ren)
Joaquim Paulo, o homem da Matéria Prima, apresenta-nos as novas vozes do funk, no especial Funk XXI.
Ficha Técnica:
Realização e Texto: Joaquim Paulo
Voz: Nuno Reis
Sonoplastia: Gualter Santos
Funk XXI
Sharon Jones, Charles Bradley e Lee Fields partilham a mesma história de sobrevivência, luta e conquista de um sonho. Num mundo em que o consumo de música é voraz e descartável, uns quantos resistentes não deixam que um dos grandes capítulos da história música morra: o Funk.
Miss Jones passou décadas a tentar a sua sorte, actuando em bandas de casamentos enquanto trabalhava de dia como guarda na prisão de Rikers Island. Jones tinha 40 anos quando finalmente conheceu Gabriel Roth , natural de Brooklyn, grande responsável pelo revivalismo da soul clássica, e patrão da editora Daptone,. A luta de Sharon foi uma luta de aceitação de anos e anos, quando a industria da música batia-lhe com a porta com o argumento de que era “oo short, too fat, too black and too old”. Foi Gabriel que abriu entusiasticamente a porta da sua editora e que transformou Sharon Jones num fenómeno que culminaria com a atribuição de um prémio Grammy, ou com Prince a entrar em palco num show em Paris, surpreendendo a cantora. Foi a vitória de uma grande música, mas também do grande sonho americano – uma cantora de meia-idade, contra todas as expectativas, em que a luta e o talento venceu qualquer artifício. Viveu até aos 60 anos para provar e viver o seu momento de triunfo, até que um cancro a matou.
O seu companheiro de editora Charles Bradley teve um percurso de vida marcado pela pobreza e pela precariedade. E tal como Sharon, a sua entrada na música deu-se tardiamente depois de Gabriel Roth o ter descoberto numa actuação como “Black Velvet”, onde imitava James Brown, o seu herói. Bradley editou o seu primeiro disco, No time for dreaming aos 63 anos. Hoje com 67 anos luta contra um cancro no estômago.
Lee Fields , vive agora uma segunda vida musical. Gravou um disco fundamental em 1979, e ao longo dos anos 90 esteve entregue a maus produtores e agentes gananciosos que o atiraram para uma carreira musical digna de esquecimento. Aos 50 anos teve o reconhecimento merecido, depois de ter sido resgatado pelo omnipresente Gabriel Roth.
O Funk é uma alma antiga. Música sem artifícios, rude, crua, poderosa e intemporal. É um amor do qual nunca se esquece. E a provar que o Funk continua vivo, uma nova geração entrega-se de alma e coração a um dos grandes capítulos da música negra.
Estes são alguns dos novos “guardiões” do Funk.
1. The Budos Band
Fieis praticantes do denominado “Staten-Island Afro-Soul”, a Budos Band é um colectivo que pratica um Funk intenso recheado de influências africanas. A sua sonoridade é um desafio, numa tentativa de descrição, já que interiorizaram influências tão dispares como a Cairo Jazz Band, Mulatu Astakte, Black Sabbath ou JB’s.
Nasceram em pleno Brooklyn, mas desde sempre a visão do colectivo é global. Grupo estritamente instrumental, levam à letra as canções de 3 minutos, curtas, incisivas. A poderosa secção rítmica assegura que esses 3 minutos contenham todo o suor e ritmo do Funk. São um colectivo de 8 músicos e gravaram 5 discos fundamentais sendo que o mais recente, Burnt offering, poderá ser descrito como “se os Black Sabbath um dia gravassem um disco de Funk”.
2. Myron & E
Myron & E são um grupo vocal que despertou a atenção da notável editora Stones Throw, dos produtores Peanut Butter Wolf e Egon. Myron (Myron Glasper) nasceu e foi criado em South Central, Los Angeles. Fez o tradicional percurso por coros de igreja e como pianista. Nos anos 90, deu nas vistas como dançarino e actor no lendário show televisivo In Living Colour. Durante esses anos, as ruas de South Central não eram o melhor local para poder desenvolver a sua criatividade. Mudou-se de armas e bagagens para a Bay californiana e aí conhece E (Eric “E da Boss” Cooke), um nativo de Newark ,que desenvolveu o seu gosto musical como colecionador de discos e DJ no Music Factory e Rock and Soul em Nova Iorque.
Editou independentemente um disco, como E da Boss, mas o momento definidor da sua carreira aconteceu quando esteve em tournée na Finlândia, onde conheceu os The Soul Investigators, que habitualmente trabalham com a cantora Nicole Willis. Desse encontro saíram umas quantas jam sessions e demo tapes que o músico guardou. De regresso aos Estados Unidos, recrutou Myron como cantor e parceiro de composição e, em 2013, gravaram Broadway, o disco de estreia para a Stones Throw , recheado de Soul clássica e canções de veludo.
3. Quantic
Will Holland, que conhecemos pelo nome de guerra Quantic, é um dos mais interessantes músicos e produtores britânicos da última década. É o músico que melhor incorporou a recuperação da Soul e do Funk em território inglês. Quantic é um estudioso de toda a música que faz o corpo mexer (seja ela a Soul, Funk, os ritmos da América do sul).
Quantic é um viciado no ritmo e, por isso, já conseguiu recuperar para os nossos dias a soul de uma cantora esquecida, como Spanky Wilson, fundou a Quantic Soul Orchestra ou, em Cali, onde viveu, o Combo Bárbaro. Will Holland é um músico incansável a vagabundear pelo mundo.
4. The New Mastersounds
No final dos anos 90, o guitarrista e produtor Eddie Roberts era proprietário de um clube em Leeds chamado The Cooker, que rapidamente foi transformado numa sala de espetáculos. Simon Allen e Eddie já tocavam juntos há algum tempo como The Mastersounds e o mais lógico seria começarem a actuar na sala.
Com a entrada de novos músicos, o grupo passou a chamar-se The New Mastersounds e, com eles, uma nova sonoridade mais próxima do Boogaloo, deixando para trás uma sonoridade mais dura e crua. Passados 15 anos, os The New Mastersound continuam no ativo e têm no currículo mais de 24 singles, 9 discos de estúdio e 2 gravados ao vivo. Mas, acima de tudo, continuam a fazer o que mais prazer lhes dá, que é tocar vivo sem parar, por todo o mundo.
5. Speedometer
Mais uma banda que já anda na estrada há mais de 10 anos a espalhar Funk pelos 4 cantos. Longe dos tempos iniciais, em que animavam pequenos clubes com as suas versões de clássicos dos The Meters. Ao longo dos anos, estes ingleses têm trazido, para junto da banda, uma série de cantores que têm contribuído para uma renovação.
Em 2012, convidaram a irmã de James Brown, Martha High, para o disco Soul Overdue, e as últimas gravações contaram com a presença de James Junior, que assentou que nem uma luva na sonoridade dos Speedometer.
6. Saun & Starr
Apesar de Saundra Williams e Starr Duncan terem crescido separadas por poucos quarteirões, no Bronx, foi preciso esperar até 1986 para se encontrarem. Imediatamente, iniciaram uma amizade que, ao longo dos anos, se transformou numa parceria de trabalho. E tiveram de trabalhar no duro até 2008, ano em que Sharon Jones & The Dap Kings editou Ilearned the Hard Way e onde as duas amigas iriam assumir o suporte vocal de Miss Jones.
Assim nasciam as The Dapettes, que iriam ser as inseparáveis cantoras de Sharon Jones. Em 2013, começaram a trabalhar no disco da dupla Saun & Starr na House of Soul, a casa da editora Daptone. O resultado foi um disco produzido por Gabriel Roth e mais um capítulo importante na história recente do Funk.
7. Leon Bridges
A elegância aveludada da voz de Leon Bridges remete-nos para Sam Cooke no seu melhor. No entanto, a sua voz não engana e está repleta de modernidade, talvez resultado das suas audições enquanto adolescente em Forth Worth, Texas, muito antes da descoberta da soul clássica de Cooke ou dos The Temptations.
O disco de estreia é também, assumidamente, uma fantasia. E para sermos exactos, uma fantasia musical algures em 1963, o ano do nascimento da mãe de Leon Bridges. ’63 não foi só o ano em que Sam Cooke atingiu o pico da sua popularidade, mas o ano dos Beach Boys, dos grupos vocais femininos, ou das harmonias dos Fifth Dimension .
Coming Home apresenta Leon Bridges e os seus companheiros de banda nesse crucial ano na história da música, que é também a possível homenagem à mãe de Bridges, elemento fundamental como elo de ligação a uma época que o cantor tenta honrar. Leon é um “millennial” educado musicalmente por escutas online e nunca sujou os dedos em pilhas de discos (apesar de os sujar em lojas de roupa vintage).
8. Sugarman 3
Os Sugarman 3 são uma máquina de produzir soul music. Fundada pelo saxofonista Neal Sugarman, como uma banda praticante de boogaloo, rapidamente o grupo definiu a sua sonoridade tipicamente como soul-jazz, focados nos elementos mais funk e deixando cair por terra os clichés de que o jazz não é dançável.
Nasceram em 1997, em Nova Iorque, depois do regresso de New Orleans do saxofonista e após ter acompanhado lendas do jazz-funk como Eddie Henderson ou Mike Longo. Sugarman juntou ao bando o organista Adam Scone e Rudy Alvin, baterista de longa data de Jack Mcduff.
Inspirados pela sonoridade vintage do soul-jazz dos anos 60, editaram na primavera de 2001 o disco Soul Donkey, que abriu portas a toda uma geração apaixonada pela soul de contornos mais retro.
9. El Michels Affair
Numa sociedade ligada em rede e numa era digital, o regresso a um romantismo, na prática de gravação analógica e na pesquisa de velhos equipamentos e instrumentos, parece uma bizarria. A crescente descoberta e interesse pela sonoridade nostálgica do funk, soul, afro beat, bandas sonoras e outras aventuras musicais analógicas dos anos 60 e 70, foi apoiada por uma série de editoras aventureiras. Pioneiros como a Truth & Soul, Daptone, Freestyle Records ou Ubiquity abriram portas para que novos grupos pudessem gravar livremente sem as imposições formatadas das majors.
El Michels Affair são um dos principais grupos saídos desta fornada, com músicos oriundos de projectos como The Dap kings, Antibalas ou Budos Band. Tinham para oferecer uma abordagem sonora de experimentação inspirados nas bandas sonoras dos anos 60 e 70… uma soul cinematográfica.
A história dos El Michels Affair está intimamente ligada ao universo dos Wu- Tang Clan. O convite deste grupo lendário do hip hop americano foi no sentido de reproduzirem ao vivo as versões instrumentais de músicas e acompanhados pelos MCs do grupo. O resultado está condensado nas 15 faixas hipnóticas de Enter the 37th Chambers.
10. Alice Russell
Alice Russel é uma rapariga inglesa nascida e criada no campo em Suffolk, com treino musical clássico, mas que trocou os estudos de piano quando se apaixonou, irremediavelmente, pelo gospel e pela soul. É uma cantora poderosa que tanto pode estar em palco num festival, como o de Montreux, acompanhada por uma banda de 16 elementos, como num pequeno clube ao lado de Roy Ayers, bem como colecionar fãs declarados como Gilles Peterson, David Byrne, Dennis Coffey ou Daddy G dos Massive Attack.
Desde a sua estreia, em 2008 com o disco Pot of Gold, Alice Russell tem conseguido rodear-se dos melhores e mais inventivos produtores da nova geração tais como Mr Scruff, Quantic, DJ Yoda e os Nostalgia 77 com quem assinou uma demolidora versão para “Seven Nation Army” dos White Stripes.
11. Osaka Monaurail
O Japão é a meca para todos os colecionadores de discos e isso deve-se não só ao número absurdo de lojas de discos, como ao profundo conhecimento e respeito que os japoneses têm pela música ocidental. Nunca o jazz foi tão amado como no Japão, nunca a soul e o funk foram tão venerados. É um facto.
Os Osaka Monaurail fazem questão de mostrar com todo o rigor esse imenso amor pelo funk. São 9 músicos em palco, vestidos a rigor e inspirados no melhor dos anos 60, com metais ao alto e o frontman Nakata a mostrar como se canta e dança, tal qual o soulbrother James Brown.
12. Marta Ren
Marta Ren tem todos os motivos para encher de orgulho uma tradição, que passa por cantoras como Marva Whithney ou Lyn Collins. Uma “miúda” franzina do Porto com uma voz tão intensa, visceral e poderosa como nunca se ouviu em Portugal. Adepta desde sempre do Funk mais duro e sujo, gravou o ano passado um disco que é puro dinamite.
Stop, Look, Listen foi gravado em aparelhos analógicos numa Ampex de 8 pistas, de forma a garantir que o som cru e rude que Marta Ren e os seus The Groovelvets apresentam em palco, não se perdesse nos truques de um estúdio moderno.
13. Lady Wray
Lady Wray é um caso excepcional de mudança de rumo e orientação musical. Em tempos conhecida do universo R&B como Nicole Wray, onde alcançou sucesso ao lado de gente como Missy Elliot ou Timbaland, trocou os holofotes das charts R&B/Hip Hop para abraçar o seu primeiro amor: o funk e a soul tradicional. Esta reviravolta, ou um regresso às origens, teve como mentores os notáveis rappers Mos Def e RZA e, por estranho que pareça, os Black Keys, com quem Linda chegou a colaborar como cantora em múltiplas gravações.
Em 2013, juntou-se a Terri Walker e, sob a designação LADY, gravaram um disco inspirado na tradição soul dos anos 60/70. Já este ano gravou o surpreendente disco a solo Queen alone, com os mesmos músicos e ainda Leon Michaels, figura de proa de todo este revivalismo.
Joaquim Paulo