Rui Pedro Tendinha dá-nos uma visão da sua passagem pelo International Film Festival Rotterdam. O palmarés não pendeu para Portugal, mas o nosso cinema foi o ai-jesus de um festival que prefere tertúlias e rock’n’roll aos deveres das estreias de Hollywood ou o frufru do red carpet.
Em Roterdão, há uma regra, apenas uma: cinema livre e livre acesso ao diálogo com os cineastas. Lá fora, na zona do De Goelen faz sempre um frio de rachar na cidade holandesa. Apesar da maioria dos filmes serem experimentais e produções do mais puro cinema de arte & ensaio há sempre filas ou lotações esgotadas. Mais do que Berlim, Locarno ou Cannes, Roterdão é a capital do cinema de risco. Apostam-se em cineastas de futuro, cinematografias mais distantes e em propostas mais marginais.
Laboratório de registos e de tendências, é em Roterdão que se pode tomar o pulso a novas vias e linguagens do cinema independente internacional. As más-línguas dizem que o International Film Festiva Rotterdam já perdeu o gás que antes tinha e que sofre com a simultaneidade com Sundance, na América, mas, na verdade, continua a ser um bastião do cinema incapaz de fazer concessões a Hollywood ou a uma ideia mercantil. Nem tudo é perfeito, claro. Nota-se que certos filmes a concorrer para o Tiger são rejeitados de Berlim, é a vida… Mas poucos festivais têm tantos cinéfilos que acompanham com paixão um festival. Gente que sabe animar Q&A’s com cineastas que podem ser aves-raras. Gente que depois à noite bebe copos com os artistas no delicioso Worm.
E talvez seja nessa corrente de encontros que o festival marque pontos. Esses tais fervorosos cinéfilos pagam para ter acesso a masterclasses de gente como Bong Joon-ho, o cineasta sul-coreano que venceu aqui o prémio do público com Parasitas, versão a preto & branco, ou Pedro Costa, recebido nesta cidade jovem como uma pop star. Quem espreitou a conferência do português ouviu-o a dizer “os festivais são locais corruptos”. Costa, em período de promoção de Vitalina Varela, sabe ser um showman. O mesmo se pode dizer do catalão Albert Serra, cineasta que foi ao Pathé para apresentar Liberté, o seu novo filme, obra a partir de um cruzamento de imaginários sádicos onde se faz a apologia da libertinagem.
Aqui, não há red carpets mas os cineastas do cinema de qualidade são mesmo tratados como estrelas pop e atraem multidões. Pois bem, este ano consta que os números cresceram. A organização terá contado 340 mil bilhetes para quase 500 filmes, 21 instalações e 13 performances, com mais de 2691 convidados. Sinais de vitalidade de um IFFR que pela primeira vez viu um filme português ter honras de abertura. Mosquito, produção portuguesa de Paulo Branco dirigida por João Nuno Pinto teve esse privilégio. Um filme de guerra que se baseia nas memórias do avô do realizador, um jovem de 17 anos que em 1917 se vê perdido no mato de Moçambique em plena Primeira Grande Guerra. Sem o seu pelotão, este menino chamado Zacarias enceta uma odisseia que o leva ao limite. Alucinações, fome e febre deparam-se no seu caminho.
Mosquito é um filme sob influência, uma experiência quase física para o espetador. Uma câmara nervosa e orgânica que é pródiga em refletir o caos de uma guerra que para os portuguesas parecia uma entidade invisível.
O Festival de Roterdão começou bem e melhor continuou com Ar Condicionado, pequena grande pérola angolana da autoria de Fradique. Sem nem um tostão português e feito com engenho e um bom senso cinematográfico notável, Ar Condicionado é uma espécie de comédia surreal sobre um fenómeno em Luanda: a revolta dos aparelhos de ar condicionado. De repente, parecem cair com vontade própria dos prédios da cidade. Um conto urbano filmado ao ritmo do jazz e com uma sensualidade provocante. Cinema de grande qualidade já entretanto selecionado para o Festival Red Sea, na Arábia Saudita.
Falando de pérolas, importante não esquecer Desterro, de Maria Clara Escobar, a história de uma mulher que abandona a sua família e causa um epicentro de tragédia entre o Brasil e a Argentina. Mete música pimba portuguesa, atitude punk, mal-estar familiar e um universo de melodrama absolutamente inovador. Emoldurado com raiva e mágoa, Desterro é uma co-produção entre Portugal e o Brasil, tal como Um Animal Amarelo, de Felipe Bragança, com Catarina Wallenstein e Adriano Luz. Co-escrito por João Nicolau, é uma obra cujo pessimismo consegue ser tão elegante como exuberante. Já tem garantida a estreia em Portugal pela distribuidora Desforra Apache.
Quem espreitou cinema francês em estreia internacional talvez se terá dado bem com Énorme , de Sophie Letorneur, uma das sensações deste IFFR. A história de uma gravidez mais ou menos não planeada de uma pianista de renome mundial. Um filme sobre como fintar o papel do homem na altura da gravidez. Uma comédia anti-clichês que é mais tocante do que se julgava.
Mas o Brasil foi sempre presença constante, nem que seja numa mostra em torno do cinema de Leonardo Mouramateus, cineasta brasileiro mais ou menos radicado em Portugal. Roterdão viu ainda o seu novo A Chuva Acalenta a Dor, uma curta criada algo a meias com o seu ator, um espantoso Mauro Mateus, um ator português que é uma espécie de musa deste cineasta. Por vezes, cai num certo exercício de pose…
About Endlessness, do mestre sueco Roy Anderson, foi também exibido numa secção paralela, a Voices, que consagra espaço a filmes que vieram de outros festivais. Este veio de Veneza e encena vários quadros sobre um mal-estar sueco. Quadros que contemplam a fragilidade humana. Como sempre, há uma secura neste absurdo que faz parte do típico ensaio artístico deste autor. Mais do mesmo? Sim, mas sem problemas…
Nas médias-metragens, Portugal chegou com Armour, de Sandro Aguilar, 45 minutos de paisagens do Quebec. O produtor e realizador português não está a ensaiar, está a sentir uma realidade de uma possibilidade de ficção contada através de legendas. Um filme mistério que nos guia através de um desenho de som tão espantoso como hipnotizador.
Por fim, referência ao belíssimo Ruby, de Mariana Gaivão, história de uma floresta queimada e de uma jovem à procura do seu cão. O filme já tinha tido a sua estreia mundial no Curtas Vila de Conde e é uma lufada de ar fresco no registo do “coming of age”, a passagem da adolescência à idade adulta. Uma obra que nos deixa uma certeza: Mariana Gaivão vai ser cineasta de culto.
PALMARÉS
Tigre
The Cloud in Her Room, de Zheng Lu Xinyuan
Tigre Prémio Especial do Júri
Beasts Clawing at Straws, de Kim Yonghoon
Competição Bright Future
Moving On, de Yoon Dan-bi
Prémio do Público
Parasitas, de Bong Joon-ho (versão preto&branco)