Cinco filmes que deixaram de coração ao alto o crítico Rui Pedro Tendinha durante uma quinzena de cinema de autor sem medo da liberdade. A melhor notícia é que as obras aqui eleitas já têm distribuição em Portugal.
Parasite, de Bong Joon-ho
(Alambique)
Se há dois anos Okja era o patinho feio do festival (também por ser produção Netflix), este ano Bong Joon-ho regressou e tornou-se no cineasta coqueluche. O Joon-ho de Parasite é o Joon-ho genial de The Host — A Criatura e Expresso do Amanhã, um visionário que aqui conta uma história de miséria humana em que os pobres de Seul passam à reconquista do lugar dos ricos.
O cineasta coreano filma a afetação da luta de classes e aí choca com o cheiro da classe baixa e com a imoralidade dos bem-instalados. A meio, tem um twist que é um prazer torrencial para o espetador e, de alguma forma, fica filme de género. Dir-se-ia: filme de terror psicológico ou viagem aos nossos piores pesadelos com um travo de Park Chan-wook.
Palma de Ouro merecida.
Era Uma Vez em… Hollywood, de Quentin Tarantino
(Big, 8 de agosto)
Parasite foi a Palma merecida, sim. Mas não foi merecidíssima: o novo de Tarantino também dava uma bela Palma, precisamente 25 anos depois de Pulp Fiction.
Era Uma Vez em… Hollywood é o cineasta americano a “voltar a casa”: a filmar por dentro as suas grandes paixões, ou seja, as memórias de uma época na Hollywood pela qual se apaixonou, das séries western dos anos 50 aos filmes do final dos anos 60, passando pelos western spaghetti. Através do percurso de um ator galã em decadência e do seu duplo, evoca uma era, mas também aquele momento em que a nova Hollywood entra em cena. Em tudo isso, há uma tristeza melancólica que parece nova no seu cinema. Mas Tarantino continua a filmar ação de forma galvanizante, e os diálogos não deixam de atingir uma métrica muito próxima da perfeição.
Sai do festival sem palmarés, mas com grande parte da crítica a aclamá-lo.
Dor e Glória, de Pedro Almodóvar
(Pris, 5 de setembro)
Regresso bonito de Almodóvar ao festival que nunca lhe deu a Palma. Desta vez, Dor e Glória chegou para dar o prémio de interpretação, neste caso a Antonio Banderas, sereno e meticuloso como nunca. Um Banderas que é afinal uma projeção de Almodóvar, aqui um tal de Salvador, cineasta com o mesmo penteado e uma talvez ficcional dependência com drogas duras e sonhos sobre a infância.
Filme que deambula entre a memória do primeiro desejo e o canto do cisne sexual, Dor e Glória é um “almodrama” em “souplesse”. Feito com os tempos certos e com uma maturidade tocante.
Sorry We Missed You, de Ken Loach
(NOS Audiovisuais)
O júri comandado por Iñarritu fez de propósito: evitar consagrar aqueles que já foram consagrados (só transgrediu com os irmãos Dardenne). Foi uma declaração de intenções, supõe-se. Mas, dê por onde der, é criminoso deixar fora do palmarés Sorry We Missed You, porventura o derradeiro filme de Ken Loach, aqui a filmar o desespero de uma família de Newcastle apanhada numa crise financeira que obriga pai e mãe a trabalhar em turnos suplementares diariamente. A nova escravidão humana num filme de denúncia operado com procedimentos de cinema absolutamente dilacerantes. Filme que se vê com o credo na boca, autêntica bomba social para refletirmos sobre os caminhos do capitalismo no final desta década.
Sorry We Missed You não tem paninhos quentes: vai direto ao inferno humano, sem nunca deixar de ser humanista. Nova obra-prima para este veterano que já tem duas Palmas de Ouro.
Frankie, de Ira Sachs
(Midas Filmes)
E como a Praia das Maçãs pode fazer lembrar certos contos de Rohmer… Ou como a neblina no bosque da serra de Sintra pode ser cenografia para um conto de fadas plácido. Frankie tem estas e muitas mais preposições de cinema. Como se a astúcia de um cineasta fosse uma espécie de jogo de duplos e múltiplos sentidos. O cineasta é o revigorante Ira Sachs, e a protagonista é a Sintra pejada de turistas, mas também de silêncios sobre o mar. Tudo se passa numas férias de família de uma atriz famosa que junta marido, filhos, amigos e o ex-marido para a sua despedida: está a morrer de cancro.
Masterclass de subtileza, Frankie é uma peça rara de relojoaria que vai crescendo em nós.
Depois, a luz de Rui Poças faz maravilhas íntimas com a dor de Isabelle Huppert ou a crueza de Marisa Tomei.
Frágil como o mundo, esteve longe de receber consensos no tribunal da Croisette. Vai ganhar com o tempo.
Menções muito honrosas:
Young Ahmed, dos manos Dardenne
Les Misérables, de Ladj Ly
Sibyl, de Justine Triet
The Specials, de Oliver Nakache e Éric Toledano (Fora de Competição)
Tommaso, de Abel Ferrara (sessão especial)
Beanpole, de Kantemir Balagov (Un Certain Regard)
The Lighthouse, de Robert Eggers (Quinzena dos Realizadores)
Rêves de Jeunesse, de Alain Raoust (ACID)