Séries como The Eddy e I Know This Much Is True trazem grandes cineastas para o streaming. Rui Pedro Tendinha ensaia uma reflexão de como estamos a assistir à reprodução das regras do cinema de autor na ficção televisiva.
Há cinema no âmago das séries que deixam milhões viciados nos cardápios da plataformas de streaming? A pergunta não oferece resposta consensual, pois nem todos os recentes exemplos apropriam uma linguagem eminentemente cinematográfica. Contudo, nestes últimos meses, quem se aventure nas minisséries da HBO e da Netflix talvez pressinta um olhar e uma escala de cinema. Séries como I Know This Much Is True, Mrs. America e The Eddy são exemplos de uma reivindicação absolutamente ancorada na mais sólida herança dos processos de cinema, sobretudo porque são feitas por nomes da Sétima Arte. Por outro lado, há quem não reclame esse estilo. A estética de uma White Lines, de Alex Pina, o criador de La Casa de Papel, é pura ficção televisiva, não só no agrupamento da segmentação de cada episódio e sua evolução narrativa, como nas sugestões “novelescas”, para dizer o mínimo. Também a própria génese de Hollywood, série de Ryan Murphy, segue uma lógica televisiva assumida, mesmo quando lida com a história do cinema. Hollywood é a prova de que a velocidade de uma série tem de conter outros ritmos e espaçamentos de storytelling. Se é verdade que Ryan Murphy não é virgem no cinema, o seu know-how de criação ficcional está precisamente no conteúdo das séries e do seu fascínio. O que é possivelmente excitante é o facto de ambas estas linhas de execução permitirem ao espetador uma relação de fascínio com aquilo que vêem. Nesse sentido, o binge-watching é tão válido numa White Lines, mesmo com algum prazer culpado, como em I Know This Much Is True. Aliás, esta série, que nos dá Mark Ruffalo no papel de gémeos, poderá funcionar como uma possibilidade de um filme épico de longa duração.
Mas o cinema, no caso de I Know This Much Is True, está escarrapachado como um possível manifesto de “teimosia”, como se Derek Cianfrance, o seu criador e realizador, estivesse numa espécie de provocação: não mexer no formato de cinema e dinamitar as regras da aceleração em televisão. Como se o desplante fosse no sentido de nos propor timings dramáticos com uma respiração realista e naturalista que só o cinema costuma poder dar. Afinal, em televisão, não é proibido ser mais lento ou reencenar o espaço de tragédia íntima. I Know This Much Is True, pérola da HBO, é sobre a infelicidade no seu estado mais depurado: dois gémeos com vidas diferentes são afetados por uma praga de família em torno das ações vis do seu avô. Crónica de miséria humana, o argumento de Cianfrance assume-se como um estudo de personagem que sublinha a força do amor fraterno incondicional. O próprio acting de Ruffalo sublinha, em dose dupla, um espaço singular das subtilezas dramáticas, seja como o irmão esquizofrénico, seja como o irmão lutador e traumatizado da classe trabalhadora. E o que é verdadeiramente cinematográfico é o trabalho do close-up de Derek Cianfrance perante o rosto de Ruffalo. De forma brutal e “lenta”, o zoom eleva-se aos limites da proximidade física das personagens. Maior gesto cinematográfico não se encontra no que se viu nas últimas propostas televisivas.
Também da HBO, Mrs. America, de Ryan Fleck e Anna Boden, cineastas do excelente Half Nelson — Encurraldos mas também do menor Captain Marvel (Capitão Marvel), proclama alguma dimensão cinematográfica, mesmo que a sua ordem narrativa partilhe uma generalização “televisiva” no descrever da luta das feministas na América de Nixon, focando-se na resistência de um grupo de ativistas conservadoras que se opuseram perante a Emenda dos Direitos de Igualdade de Sexo. O guião da série tem uma perspicácia avassaladora e um ritmo evocativo sempre firme, mas a sua aproximação ao cinema seguramente só se pressente pelo cuidado e pelo tempo disponibilizados nas personagens, todas elas humanas e não apenas “representações” de tópicos. Nesse capítulo, a interpretação de Cate Blanchett é de uma minúcia assustadora, como se todo o figurino televisivo ficasse suspenso nas suas expressões, nas suas palavras. Mesmo sem querer ser uma “obra de arte”, Mrs. America é aquilo a que se pode convencionar de entretenimento televisivo com relevância social forte e as melhores intenções. Bem mais arriscado é The Eddy, a criação de Damien Chazelle sobre o mito do clube de jazz e as histórias dos seus bastidores.
A série de oito episódios é sobre um clube de jazz parisiense chamado The Eddy e mostra-nos como Elliot, um pianista de jazz com fama de recluso tenta reinventar-se após a morte de um filho, acontecimento que o fez jurar nunca mais tocar e fugir de Nova Iorque para abrir em Paris o tal The Eddy, clube de jazz que tem a sua banda como cabeça de cartaz. Mas a máfia da noite ataca, e o clube é ameaçado por um esquema fraudulento de dinheiro falso capaz de causar a morte ao seu sócio principal. Nestes oito episódios, que por vezes ultrapassam a duração de uma hora, Elliot tem de lidar com as ameaças do crime organizado, uma investigação policial hostil e o regresso da sua filha adolescente, que prefere agora viver em Paris. Temas como responsabilidade parental e amor ao jazz e à noite são tratados num estilo solto e desembaraçado que tenta fazer algumas rimas com um certo cinema autoral francês. Chazelle, nos dois primeiros episódios, filma tudo com uma espontaneidade cheia de grão na imagem, câmara ao ombro e respeito escrupuloso pelos tempos das atuações musicais no clube, em especial pelo poder vocal de Joanna Kullig, a protagonista, atriz e cantora que já tinha deslumbrado em Cold War — Guerra Fria. De certa maneira, o realizador de La La Land: Melodia de Amor volta à “vibe” de Whiplash — Nos Limites, ainda que com uma outra liberdade e uma fixação num movimento que permite que o espetador se sinta literalmente dentro do clube — é raro o momento em que não haja um traveling. A própria opção do formato de 16 mm é como se fosse uma declaração de intenções. O resultado é uma série que parece um filme de culto realista, em que as personagens misturam o francês e o inglês e o jazz torna-se o verdadeiro espírito e protagonista cinematográfico. Apenas não terá sido filme porque era preciso tempo para contar a evolução de uma banda de jazz na Paris dos nossos dias. No atual panorama da Netflix, faz figura de objeto raro.
Nos próximos tempos, é provável que The Undoing, aposta da HBO com Nicole Kidman, seja mais uma das séries em streaming com os valores e a lógica do cinema. O espetador cinéfilo agradece, e o fosso entre produto televisivo e produto de cinema acaba por se ir diluindo…