Philip K. Dick é um dos escritores mais influentes do século XX. Aproximou a ficção científica da filosofia e antecipou algumas das grandes questões do mundo atual. A propósito da estreia de Blade Runner 2049, a Antena 3 lança a Operação Philip K. Dick. Este é o segundo de três artigos que procuram traçar o perfil do autor e a forma como cinema e música aproveitam as suas ideias extraordinárias.
Rock progressivo, pop eletrónica, tecno, drum’n’bass, até uma ópera. A obra de Philip K. Dick chega a todo o lado e manifesta-se em música de todos os géneros. Esta lista mostra isso mesmo.
“Parece que já estou a ver o cenário — disse Laws, sorrindo — jovens bronzeados sentados no chão do seu apartamento a actuar em teclas e interruptores, enquanto o rugido autêntico e incrível das locomotivas de mercadorias, tempestades de neve e camiões a descarregar sucata de ferro e outras excentricidades brotam de altifalantes” — Philip K. Dick, Eye In The Sky, 1957 (edição portuguesa Universos Paralelos, Edições 70, 1991)
A obra de Philip K. Dick tem influência tentacular. Há filmes de Hollywood e séries de televisão a prová-lo, livros também (toda a literatura e todo o imaginário cyberpunk devem-lhe muito, em particular autores como William Gibson, mas até Haruki Murakami, não sendo exatamente ficção científica, tem algo de PKD nas suas histórias). Philip K. Dick foi assimilado também pela ciência e filosofia, que investigam algumas das suas hipóteses mais ousadas (sobreposição espaço-tempo, a ideia de vivermos numa realidade programada em computador, etc) mas é na cultura pop que se encontram as principais marcas da sua influência, tendo a música um peso considerável no espalhar do gospel Dickiano. Isto é especialmente verdade para a música feita com instrumentos eletrónicos, talvez devido ao enquadramento sci-fi, sempre propício ao uso de sintetizadores e afins. O rock progressivo, pioneiro no uso desse tipo de instrumentos, tinha muitas referências de ficção cientifica e K. Dick era uma delas, sobretudo para bandas como Van Der Graaf Generator ou Hawkwind. Klaus Schulze por exemplo, que tocou com Tangerine Dream e Ash Ra Tempel, compôs Study for Philip K Dick em 1972.
Um ano depois de Schulze, em 1973, Brian Eno e Robert Fripp gravam uma faixa de 20 minutos chamada “Heavenly Music Corporation” que ocupa o lado A do álbum No Pussyfooting. Heavenly Music Corporation é um nome retirado de The Man In The High Castle (novela de 1962 sobre uma realidade alternativa em que Japão e Alemanha ganharam a II Guerra Mundial, deu origem a uma série de televisão da Amazon). Heavenly Music Corporation é ainda o nome de um projeto ambient de Kim Cascone.
Na citação que abre este texto, retirada de um livro de 1957 (Eye in The Sky, curiosamente também um disco de Alan Parsons Project de 1982), PKD tenta antecipar o sistema de som e a música do futuro e não falha muito na descrição do que é, de facto, a música dos últimos anos do séc XX e primeiros do XXI, sobretudo a pop eletrónica, o techno e até o industrial, feitos com máquinas e capazes de assimilar e transformar o ruído. Gary Numan cita-o, no álbum de estreia com Tubeway Army, Replicas (1979), sobretudo na canção mais conhecida do disco “Are Friends Electric?”, claramente uma alusão a Será Que Os Androides Sonham Com Carneiros Elétricos?/ Do Androids Dream of Electric Sheep? o livro que deu origem a Blade Runner, aqui evocado três anos antes da obra de Ridley Scott.
É um facto que a maioria das referências a PKD na música surgem através de samples de Blade Runner. Riuychi Sakamoto corta e cola vários diálogos do filme neste “Broadway Boogie Woogy” do álbum Futurista (1986).
Blade Runner está cheio de frases poderosas. Pop Will Eat Itself, em 1989, usam uma particularmente emblemática, dita por Leon Kowalksy, um dos replicantes, a Deckard, interpretado por Harrison Ford: “Wake Up! Time to Die”, também usada pelos Therapy? numa canção do álbum de estreia Babyteeth (1991).
No capítulo das frases famosas, Tricky usou uma das míticas, ou a mais psicanalítica, também dita por Kowalsky a um dos caçadores de replicantes, durante o teste Voigt Kampf (que determinava quem era humano e quem era máquina através da análise da dilatação da pupila): “Let me tell you about my mother” surge a meio de “Aftermath”, uma das canções de Maxinquaye, o álbum de estreia de 1994. Samples do mesmo teste (e de outras cenas de Blade Runner) tinham sido usados por Sigue Sigue Sputnik em 1986.
Claro que estamos preparados para reconhecer referências Dickianas na música feita com instrumentos eletrónicos, em toda a música que usou, ou usa, computadores e/ou programações. A banda sonora de Vangelis para o filme de Ridley Scott ajuda nesse enquadramento tecnológico e é, por si, particularmente influente. Company Flow samplaram-na, Frank Ocean também parece tê-lo feito em “Pyramids” (mas pode ser só inspiração).
O drum’n’bass, e de um modo geral a bass music, nunca foram tímidos na sua apreciação de K. Dick via Blade Runner. Dom & Roland têm uma faixa chamada “Deckard’s theme”. Jeff Mills, um dos pioneiros do techno de Detroit (género que sempre cultivou o imaginário sci-fi), lançou em 2005 um EP inspirado em Blade Runner em que um dos lados também é dedicado a Rick Deckard.
Mas um dos exemplos mais recentes do interesse por Philip K. Dick e, em particular, pelo filme de Ridley Scott vem da bass music. Zomby, em 2012, samplou o monólogo final do replicante Roy Batty (interpretado por Rutger Hauer), uma das cenas mais icónicas do filme.
Sample do mesmo monólogo tinha sido usado pela London Electricty em “Attack Ships on Fire” (2008).
“Attack Ships on Fire” é ainda o título de uma faixa de Big Sexy Land (1986), o álbum de estreia dos Revolting Cocks, banda de Al Jourgensen e uma das referências da cena industrial.
Apesar do claro domínio do filme de Ridley Scott em termos de samples e títulos de músicas, a influência de PKD não se esgota em Blade Runner. Primal Scream foram buscar, em 2002, o título de um dos livros mais autobiográficos e confusos de PKD, A Scanner Darkly, uma história de junkies, loucura e vigilância que, em 2006, foi adaptado ao cinema por Richard Linklater numa versão semi-animada.
Ainda na fação indie, é evidente que “VALIS”, dos Bloc Party, é uma canção sobre PKD e a sua predileção por epifanias, filosofia, anfetaminas, ciência, a ideia de que passado e presente se sobrepõe e que ele não era de facto ele. Está tudo na letra da canção e na biografia de K. Dick. VALIS, acrónimo para Vast Active Living Inteligence System, é um dos últimos livros de Philip K. Dick, também um dos mais impenetráveis, fala do universo como um organismo vivo, mistura autobiografia com ficção científica, filosofia, gnosticismo, fenomenologia e todos os assuntos que o atormentaram nos últimos 8 anos de vida e que deram origem a um diário de mais de 8000 páginas chamado Exegesis. VALIS é também o nome de um projeto stoner rock em que esteve envolvido o ex Screaming Trees Van Conner e de uma ópera composta por Tod Machover em 1987.
A presença dos Sonic Youth nesta lista pode não parecer das mais prováveis mas, na verdade, é das mais óbvias já que, reza a lenda, Sister (1987) foi assim nomeado em homenagem a Philip K. Dick e à irmã gémea que morreu com poucas semanas de vida. De resto os Sonic Youth colocam Philip K. Dick na lista de agradecimentos do disco e uma das faixas até se chama “Master Dick” (há um EP do mesmo ano chamado Master=Dik mas no alinhamento de Sister a última música aparece mesmo como “Master Dick” — não havendo confirmação de que seja de facto dedicada a PKD, dadas as outras referências, é o que parece…).
O levantamento das referências a Philip K. Dick , na música ou seja onde for, é um trabalho virtualmente infindável. Nova informação surge quase diariamente e é de prever que a estreia de Blade Runner 2049 motive novos interesses pelo universo do autor, também através da música. Flying Lotus, o patrão da Brainfeeder, um dos produtores e beatmakers com ideias mais avançadas, assina a banda sonora de Blade Runner 2022, animé de Shinichiro Watanabe, uma das três curtas que servem de prequela ao novo Blade Runner. Também beatmaker e ingualmente arrojado, El-P, dos Run de Jewels, revelou ter sido abordado para a banda sonora de Blade Runner 2049, mas o projeto não avançou. O multi-premiado Hans Zimmer é quem assina a banda sonora do filme de Denis Villeneuve.
Seja qual for o ponto de vista, a influência de Dick é infecciosa e não esmorece, chegou a todo o lado, até a Portugal. Os Telectu, de Jorge Lima Barreto e Vitor Rua deram títulos de livros de Philip K. Dick às faixas de Ctu Telectu, o primeiro álbum, saído em 1982, o ano da morte de K. Dick e da estreia de Blade Runner.
Vitor Rua, no seu disco mais recente, também cita Dick de forma direta no titulo Do Androids Dream Of Electric Guitars?. Outro exemplo português fora do universo pop/rock/dança, Hugo Carvalhais, contrabaixista jazz, lançou em 2015 um disco chamado Grand Valis, inspirado na trilogia de PKD (os três últimos livros editados em vida: VALIS, A Invasão Divina e A Transmigração de Timothy Archer).
Para um escritor que foi tão incompreendido no seu tempo, é notável a influência e reconhecimento que tem conseguido nos 35 anos que passaram sobre a sua morte. O mundo está cheio de dickheads.
Texto: Isilda Sanches