Philip K. Dick é um dos escritores mais influentes do século XX. Aproximou a ficção científica da filosofia e antecipou algumas das grandes questões do mundo atual. A propósito da estreia de Blade Runner 2049, a Antena 3 lança a Operação Philip K. Dick. Este é o último de três artigos que procuram traçar o perfil do autor e a forma como cinema e música aproveitam as suas ideias extraordinárias.
Blade Runner, Desafio Total e Relatório Minoritário são apenas alguns dos filmes inspirados em livros de Philip K. Dick. A lista de adaptações ao cinema é longa e estende-se à televisão.
Philip K. Dick tem sido um preferido de Hollywood, o seu imaginário conquistou o cinema pela singularidade da perspectiva filosófica e ganhou forma num número considerável de filmes que continua a crescer. Nem todos os projetos de adaptação de obras de PKD se concretizaram. Diz-se, por exemplo, que John Lennon quis comprar os direitos de Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, mas nunca houve filme. Também consta que Martin Scorsese tentou adaptar Do Androids Dream Of Electric Sheep (o livro deu origem a Blade Runner), ainda nos anos 60, mas nem esse, nem outros projectos de adaptação do livro, foram em frente. O próprio PKD escreveu um guião para um dos seus livros, Ubik, que entregou ao realizador francês Jean Pierre Gorin (protegido de Jean Luc Godard) mas nada aconteceu além da publicação do guião em livro, uns anos mais tarde. A lista que se segue não pretende ser exaustiva, mas pode funcionar como uma selecção de adaptações de PKD ao cinema e televisão e uma amostra da sua influência tentacular . Algumas são adaptações declaradas, outras colam-se ao seu universo sem precisar de se inspirar em histórias concretas, todas colocam questões pertinentes mesmo quando parecem apenas filmes de acção.
Blade Runner
Ridley Scott, 1982
O livro Do Androids Dream Of Electric Sheep foi publicado em 1968 e transformado em Blade Runner por Ridley Scott em 1982 (o título foi roubado a Alan E Norse). Apesar de não ter sido um grande sucesso de bilheteira quando estreou, acabou por transformar-se num filme de culto e tornou-se paradigma da estética do cinema de ficção científica a partir daí. O filme deixa de fora alguns elementos importantes da história original para se concentrar na questão humanos versus replicantes, colocando assim uma das grandes questões de PKD: o que é humano? Harrison Ford, Rutger Hauer, Sean Young e Darryl Hanna fizeram parte do elenco na adaptação de Ridley Scott. Blade Runner 2049, a sequela de 2017, é assinada pelo canadiano Denis Villeneuve (Sicario, Arrival) e tem Harrison Ford e Ryan Gosling nos principais papéis. A sair está também Blade Runner Blackout 2022, uma curta de animé realizada por Shinichiro Watanabe (Cowboy Bebop) com banda sonora de Flying Lotus.
Total Recall
Paul Verhoeven, 1990
Total Recall inspira-se em We Can Remember It For You Wholesale, um conto de 1966 que lida com um dos assuntos fetiche de PKD: implantes de memória. Na sua dúvida (mais ou menos metódica) PKD questionava-se muito sobre os fundamentos do real e em particular sobre a origem e veracidade das memórias. Implantar memórias, nas histórias de Dick, é sobretudo uma arma de controle do indivíduo, exercida por autoridades e corporações, muito embora neste conto comece por ser uma actividade lúdica, pelo menos para o personagem de Arnold Schwarzenegger, que só descobre quem é quando decide implantar memórias de uma ida a Marte porque não tem dinheiro para a viagem. O filme diverge bastante da história mas ganhou culto e em 2012 foi feito um remake com Colin Farell. Sharon Stone faz parte do elenco original.
Truman Show
Peter Weir, 1998
Truman Show pode não creditar Philip K. Dick mas deve muito ao seu universo, em particular a Time Out Of Joint, novela de 1959 sobre um homem que vive num mundo fictício, construído para o proteger da realidade. No caso de PKD por razões militares, no de Truman Show por negócio e entretenimento. Curiosamente, o filme de Peter Weir com Jim Carey e Ed Harris, foi lançado em 1998, ano a partir do qual é manipulada a realidade vivida pelo protagonista de Time Out Of Joint (anos 50).
Matrix
Lana Wachowsky e Lili Wachowski, 1999
Foi o próprio Philip K. Dick que em 1977, numa conferência em Metz, França, afirmou estar convencido que vivemos numa simulação criada em computador da qual só temos consciência quando alguma variável muda. Chamou-lhe Matrix World e os irmãos (agora irmãs) Wachowski nunca esconderam a sua inspiração no conceito de Dick, usando-o para desenvolver a sua saga sci-fi de hackers em luta pela libertação, com Keanu Reeves no papel de Neo.
Relatório Minoritário
Steven Spielberg, 2002
Relatório Minoritário explora dois temas clássicos de PKD: a previsão do futuro e controle dos indivíduos e da sociedade. A história de Dick e a adaptação não correspondem exactamente mas o Precrime e os precogs (mutantes com capacidade de ver o futuro) continuam a ser o centro da acção. Esta é a adaptação de PKD com mais artifícios tecnológicos, algo que não existia propriamente na história original mas em que Spielberg investiu fortemente ao contratar uma equipa de “visionários” para imaginar gadgets do futuro (na verdade alguns deles já são hoje de uso comum como os touch screens, os scans de retina ou até os insectos robot). O filme com Tom Cruise e Max von Sidow nos papeis principais deu origem a uma série de televisão em 2015.
Pago Para Esquecer
John Woo, 2003
Baseado numa história publicada em 1953 (Paycheck), o filme de John Woo com Ben Affleck e Uma Thurman não está entre as adaptações mais amadas de Philip K. Dick, mas mantém relativamente intacto o centro da história: um engenheiro a quem é apagada a memória tem que reconstruir a sua história a partir de alguns objectos que deixou a si próprio. Como quase todos os filmes de Hollywood feitos a partir de livros de Dick, Pago Para Esquecer tem um grande investimento nas cenas de ação.
A Scanner Darkly
Richard Linklater, 2006
Esta é talvez a adaptação mais ousada, e ao mesmo tempo fiel, dos livros de PKD. A Scanner Darkly foi escrito 1977, depois da passagem por uma clínica de reabilitação, gira à volta de consumo de drogas e paranoias de vigilância e controle e retrata a contra-cultura californiana dos anos 70 em que Dick se movimentava. Richard Linklater, ao usar técnicas de animação, acabou por transportar para o ecrã muito do sentimento de estranheza e desfragmentação do real que atravessa um livro com muito de autobiográfico. Com Keanu Reeves, Robert Downey, Jr. e Wynona Rider.
The Adjustment Bureau
George Nolfi, 2011
É uma das adaptações mais recentes de Philip K. Dick e passou relativamente despercebida, apesar do cuidado estético e de Matt Damon e Emily Blunt no elenco (Jon Stewart também tem uma breve aparição enquanto ele próprio). O filme é inspirado no conto “Adjustment Team”, de 1954, mas extrapola para além dele, nomeadamente na história romântica, que no conto de Dick é superficial.
A Origem
Christopher Nolan, 2010
Não está escrito em lado nenhum que Inception / A Origem é baseado em alguma obra de PKD, mas este é um filme com muitos paralelismos com as histórias de Dick. Leonardo DiCaprio é um ladrão de sonhos e informação a quem é pedido como última missão que implante informação, em vez de a roubar. O filme em si mesmo é um exercício de efeitos especiais bastante desafiante mas o centro de tudo, o controle do subconsciente por uma entidade externa, está em sintonia com as preocupações de Philip K. Dick
Ubik
Michel Gondry, em curso
Ubik é uma das novelas mais complexas de PKD, um livro sobre realidades paralelas e poderes psíquicos que Michel Gondry estará a adaptar ao cinema. Há vários anos que o projecto existe mas ainda não há certezas sobre a sua concretização, tendo até já sido noticiado o abandono da ideia. Apesar de não ser inspirado em nenhum livro de Dick, e ser essencialmente uma história de amor, Eternal Sunshine of the Spotless Mind/ O Despertar da Mente(2004), outro filme de Michel Gondry, também tem pontos em comum com a obra do autor, nomeadamente a possibilidade da manipulação da memória. Philip Kaufman ganhou o Oscar de melhor argumento original com este filme protagonizado por Jim Carey e Kate Winslet.
The Man in the High Castle / O Homem do Castelo Alto
2015
O Homem do Castelo Alto (1962) foi a primeira novela de Philip K. Dick a ser premiada, ganhou o Prémio Hugo, um dos mais prestigiados da Ficção Científica e foi escrita com recurso ao I Ching, um oráculo milenar Chinês que também tem importância na própria narrativa. Elabora sobre um mundo alternativo em que a II Guerra Mundial foi ganha pelo Japão e Alemanha. A série da Amazon, com Ridley Scott como produtor executivo, já teve duas temporadas.
Electric Dreams
Channel 4 / Amazon Video
Estreou a 17 de setembro esta série de 10 episódios individuais inspirados em histórias de Philip K. Dick. Trata-se de uma co-produção entre britânicos e americanos e envolve atores como Bryan Cranston (Breaking Bad, aqui também com funções de produtor executivo), Steve Buscemi (Cães Danados, Fargo), Richard Madden (Guerra dos Tronos) e até Janelle Monáe. É um dos projectos de televisão que concentra mais atenções actualmente, já muito comparado a Black Mirror, talvez porque Charlie Brooker tenha explorado em Black Mirror algumas das questões fundamentais de PKD.
Texto: Isilda Sanches