Celebram-se hoje, 3 de março de 2017, 25 anos desde o lançamento do disco de estreia dos Disposable Heroes of Hiphoprisy, Hypocrisy Is the Greatest Luxury. Bruno Martins recorda as origens deste trabalho sem grandes rodeios de Michael Franti e Rono Tse, bem como a forma como se introduziu num conturbado momento na história política e social nos Estados Unidos da América.
O final da década de 1980 e início da década seguinte mostrou ser, nos EUA — e consequentemente um pouco por todo o mundo ocidental — um período de tremenda agitação social e cultural. Na terra do Tio Sam vivia-se um período marcado por conflitos sociais, crises económicas, desemprego e desequilíbrio da balança entre ricos e pobres, e até um conflito bélico — ainda que tenha acontecido lá longe, no Deserto da Arábia, Iraque, recheado de ouro negro.
Como também foi sempre tradição na história da arte, todos os carnavais vêm com uma ressaca. Todas as crises despertam novos fenómenos. E o fim da década de 80 trouxe para os escaparates uma série de novos movimentos que começaram a nascer nos bairros e nas periferias das grandes cidades norte-americanas — em campos de basquetebol ou em armazéns abandonados, fosse na Costa Leste ou na Costa Oeste dos EUA. Fosse o punk, o grunge ou o hip hop, todos vinham — uns mais outros menos — com um selo de revolta e protesto, de manifestação.
No universo hip hop, o fervor punk, o espírito do it yourself agitava as águas e mexia com as mentes. Era a música urbana de protesto que apontava para as injustiças do sistema. Nomes como Beastie Boys ou Public Enemy puxaram para o rap alguns devotos do punk rock. Em 1986, em São Francisco, Michael Franti, Rono Tse e Kevin Carnes arrancavam com o projeto The Beatnigs, que reunia influências do punk hardcore, juntava-as ao hip hop e ao peso do industrial.
Os Beatnigs editaram um álbum homónimo em 1988 e, no ano seguinte, um single, ambos com o selo da Alternative Tentacles (casa de Dead Kennedys, dos discos a solo de Jello Biafra ou Butthole Surfers). A saída de Kevin Carnes da formação provocou uma mudança de nome: nasciam os Disposable Heroes of Hiphoprisy que iriam dar um outro corpo às primeiras experiências dos Beatnigs. A 3 de Março de 1992, há 25 anos, era editado o primeiro disco do grupo, Hypocrisy Is the Greatest Luxury.
Nem Rono Tse nem Michael Franti tinham um passado ligado ao hip hop. Na zona de São Francisco, ambos eram figuras reconhecidas sobretudo pelo trabalho ligado às artes performativas. Tse nasceu em Hong Kong e foi ainda em pequeno que se mudou com a família para a Chinatown de São Francisco. Foi ele o cérebro rítmico e melódico do hip hop industrial dos Disposable Heroes of Hiphoprisy, recheando as faixas com várias camadas de batidas e metais jazzísticos, explorando sonoridades mecânicas, ferrugentas, maquinais. Prático e eficaz: o espelho de um país que atravessava uma grave crise de desemprego, que via fábricas a fechar e a indústria a esmorecer.
Michael Franti era um ex-basquetebolista de 1,98m, de voz grave e colocada, abandonado em criança pelos pais biológicos e recolhido por um casal que reuniu uma família só com filhos adotivos. Morou em várias cidades do Estado da Califórnia, sempre atrás do pai que era professor universitário. Antes de terminar o liceu, Franti mudou-se para São Francisco, onde viria a conhecer Tse e começar a escrever. Tanto nos Beatnigs como nos Disposable Heroes, a poesia de Michael Franti era crua, direta, descritiva, sem “rodriguinhos” ou metáforas. Sem confusões ou mal entendidos, como um murro na mesa contra o sistema político, financeiro, contra o racismo, xenofobia ou homofobia, como se ouve em “Language of Violence”.
The first day of school was always the hardest
The first day of school, the hallways the darkest
Like a gauntlet
The voices haunted
Walking in with his thin skin, lowered chin
He knew the names that they would taunt him with
Faggot, sissy, punk, queen, queer
Although he’d never had sex in his 15 years
Há 25 anos houve quem chamasse a Michael Franti o herdeiro de Chuck D., dos Public Enemy, e de Gil Scott Heron. Não só pela voz grave, pelo flow e métricas mais próximas de um declamador de poemas, mas também por aquilo que escrevia. E este Hypocrisy is the Greatest Luxury, com temas longos, é um disco em que a palavra tem o papel principal.
Em 1988, ainda enquanto The Beatnigs, Franti e Tse já tinham composto uma versão de um dos temas mais conhecidos dos Disposable Heroes. “Television, The Drug of The Nation” já tinha sido editado em 1989 como single — seria o último registo físico dos Beatings. Três anos depois, os compositores voltariam a pegar neste poema e a musicá-lo, desta vez com uma batida mais boom bap, próxima daquilo que o fim dos anos 80 trouxeram ao hip hop, a tal sonoridade que se tornou clássica levada a jogo por nomes como Public Enemy ou os NWA.
“Television, The Drug of The Nation”, um tema com quase sete minutos, que servia como alerta para o consumo das massas, para o efeito hipnotizador da televisão. Há 25 anos, quando em Portugal ainda só havia três canais, Michael Franti já escrevia sobre os efeitos procrastinadores do zapping televisivo.
150 channels 24 hours a day
You can flip through all of them
And still there’s nothing worth watching
T.V. is the reason why less than 10 per cent of our
Nation reads books daily
Why most people think Central America
Means Kansas
Socialism means un-American
And Apartheid is a new headache remedy
Apesar desta aproximação ao género rap que tinha florescido na década anterior, os Disposable Heroes não quiseram desligar-se, por completo, da sua ligação ao punk e ao hardcore. A penúltima música deste disco de estreia chama-se “California Über Alles” e trata-se de uma versão do tema dos Dead Kennedys (colegas de editora dos Beatnigs) editada em 1979.
Em 1979, os Dead Kennedys tinham escrito este tema em forma de protesto e sátira ao governador da Califórnia, Jerry Brown — pondo-o a gritar “Califórnia acima de tudo”, tal como se cantava na Alemanha, até 1945, “Deutchland Über Alles”. Em 1992, Franti e Tse desconstroem o tema dos Dead Kennedys, deixam ficar os gritos de Biafra e alguns samples das guitarras, e falam do governador republicano do Estado da Califórnia Pete Wilson, entre 1991 e 1999, que ficou conhecido por uma política de perseguição aos imigrantes e seu posicionamento anti serviços públicos.
Um dos nomes convidados deste Hypocrisy Is the Greatest Luxury foi o guitarrista Charlie Hunter. Foi ele que ajudou a trazer um universo mais funky ao disco para uma letra sonhadora. Só com guitarra, Franti disserta como seria a sua vida se não passasse grande parte dela a pensar em música e na política. O texto de um homem — na altura com 26 anos — com um pensamento político Socialista e de Esquerda nos Estados Unidos divididos entre Republicanos e Democratas — onde ainda se pensava em comunistas como “aqueles que comiam crianças ao pequeno-almoço” — refletindo sobre a forma como a política se intromete nas suas relações.
Hypocrisy Is the Greatest Luxury foi um dos grandes álbuns de hip hop editados em 1992. A título de exemplo, a revista Wire elegeu-o como sendo o quarto melhor disco desse ano — que teria no primeiro lugar 3 Years, 5 Months and 2 Days in the Life of… (de que daremos conta aqui na Antena 3 lá mais para o fim do mês de Março com uma entrevista exclusiva com o MC Speech). Na mesma lista está ainda Check Your Head, dos Beastie Boys. Há 25 anos seriam ainda lançados álbuns fundamentais de Dr Dre, House of Pain ou EPMD. Cada um com a sua estética, cada um com a sua forma de narrar, mas cada um deles a desenhar um país em campanha eleitoral — Bill Clinton derrotaria George H. W. Bush nas eleições presidenciais — que convivia com graves tumultos raciais: em abril desse mesmo ano, e depois de o tribunal de Simi Valley, na Califórnia, considerar inocentes quatro polícias no caso do espancamento de Rodney King, eclodiram os tumultos de Los Angeles que provocaram 53 mortos e mais de mil milhões de dólares de prejuízo.
O álbum viria a tornar-se, com o passar dos anos, num clássico da década de 1990, apesar do pouco airplay que teve nas rádios. Os Disposable Heroes iriam lançar mais um disco, o último, logo no ano seguinte: Spare Ass Annie and Other Tales foi um trabalho de spoken word feito com a colaboração do escritor norte-americano, e figura da geração Beat, William S. Burroughs.
Bruno Martins