por Paula Guerra
Poucas bandas conseguiram provocar as reações dos Sex Pistols. Lançaram o tiro de partida de um (novo) género musical, o punk, que tinha em si um desejo de revolta, de não deixar pedra sobre pedra (McNeil & McCain, 2006; Savage, 2002). A surpresa aumenta se pensarmos na curta história da banda entre 1975 e 1978: apenas um álbum no ativo — o famoso Never Mind the Bollocks, Here’s the Sex Pistols, editado em 27 de outubro de 1977, pela Virgin (Colegrave & Sullivan, 2002). Foi uma carreira curta e intensa, à boa maneira punk. A grande questão é saber como foi o impacto desta banda num Portugal — nos finais dos anos setenta — recentemente saído de 40 anos de ditadura? Como foi recebida pelos jovens portugueses? Quem foram os seus divulgadores? Como é que se tem perpetuado até hoje?
Portugal pós-1974: Democracia, cultura popular, modernidade e punk.
Após quatro décadas de um regime ditatorial, com uma visão autocrática, paternalista e ruralista da sociedade portuguesa, seria expectável que essa experiência influenciasse todas as áreas da vida social, e, como não podia deixar de ser, a forma como a música punk, e os Sex Pistols em particular, foi consumida e interpretada. Apesar de o 25 de abril de 1974 ter correspondido a uma completa mudança, e crescimento do panorama musical nacional, quer ao nível de bandas quer ao nível de público, a verdade é que o país se encontrava praticamente afastado do resto da Europa. Para os jovens, as viagens eram raras e dispendiosas, o conhecimento do que se ia fazendo lá fora era escasso, o que tornava, por exemplo, limitado o acesso a edições internacionais, que apenas podiam ser adquiridas por importação, por amigos que visitavam o estrangeiro e que traziam discos, ou através da rádio (sendo as músicas devidamente gravadas em cassetes).
Existiam lojas de discos (poucas) no país, mas geralmente o custo de um disco estava para além das possibilidades da grande maioria da população portuguesa, e as dinâmicas informais de um consumo peer-to-peer, assente no passa-a-palavra e em empréstimos, assumiam-se como incontornáveis. Neste último caso, era relevante o papel de jovens de estatuto socioeconómico mais elevado, que adquiriam discos – em Portugal ou em viagens pelo estrangeiro –, os quais, de seguida, além de serem furiosamente ouvidos, passavam pelo grupo de amigos e eram devidamente copiados, permitindo uma maior divulgação, paralela, dos Sex Pistols (e não só). Estes jovens de estatuto socioeconómico mais elevado possuíam assim um papel quase sagrado de divulgação – levado muito a sério –, ato este que, apesar de altruísta, não deixava de revestir alguma dose de exibicionismo, como nos revela um jovem da altura:
Todos tínhamos os mesmos três discos, porque eram os únicos disponíveis. Era Pistols, Clash e Stiff Little Fingers. A minha coleção de discos cabia [debaixo] no meu braço — e muitas vezes eu andava com eles para mostrá-los, para impressionar os outros.
Por estas e por outras razões não é possível menosprezar a importância determinante de certos indivíduos que iam divulgando as novidades musicais e que, por tal, assumiram uma posição de farol no campo musical português. Nenhum, contudo, teve o impacto de António Sérgio, que ao longo de décadas, nos seus vários programas radiofónicos, foi moldando os gostos musicais alternativos de uma camada mais jovem da população portuguesa. O seu papel, no que respeita aos Sex Pistols, foi para além da mera divulgação radiofónica: foi o responsável pela primeira edição portuguesa em que surgiam os Sex Pistols, o álbum Punk Rock 77 New Wave 77, lançado em 1978, pela editora Pirate Dream.
Imagens 1 e 2
Capa e contracapa do disco Punk rock 77 New wave 77, editado pela Pirate Dream Records, em 1978
Fonte: Arquivo KISMIF.
Apesar dos programas radiofónicos de António Sérgio, bem como de um conjunto de publicações – na revista Música & Som, no jornal Rock Week e no semanário Se7e –, nas décadas de 1970 e 1980, continuava a persistir uma certa insciência sobre o que ocorria nesse outro mundo, o do punk. A descoberta deste, contudo, não pode ser dissociada de um elemento fundamental que em muito contribuiu para a divulgação do punk em Portugal. Estamos a considerar um conjunto de bares e discotecas, como o Rock Rendez-Vous, o Gingão, e o Bar Oceano que, em paralelo ao importante papel de divulgação, assumiram-se como palco onde várias bandas punk portuguesas fizeram os seus primeiros concertos. Acima de tudo, eram locais onde as pessoas partilhavam aquilo que Goethe apelidava de ‘afinidades eletivas’, onde o apreciar da música punk se estendia para além do mero consumo individual. Eram também locais de sociabilidades, estéticas e praxis punk, contribuindo definitivamente para difundir o movimento, a cena, a diferença.
Edições dos Sex Pistols em Portugal em 1979
1. Never Mind the Bollocks Here’s the Sex Pistols (Vadeca) 2. The Great Rock and Roll Swindle (Vadeca) 3. "Silly Thing" (single) (Vadeca). Este single é considerado a ‘jóia da coroa’ das edições punk em Portugal, devido à sua edição dupla: uma era verde e outra azul.
Imagens 3 e 4
Álbum dos Sex Pistols Never Mind the Bollocks Here’s the Sex Pistols, ao lado de bonecos estilizados por Ondina Pires
Fonte: Arquivo KISMIF, através de Ondina Pires.
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Artigo sobre punk, retirado de uma revista portuguesa, com autoria de António Amaral Pais e com ilustração de Paulo Coelho, em 1978, e guardado piamente por Ondina Pires
Fonte: Arquivo KISMIF, através de Ondina Pires.
Os Sex Pistols são punk. Os Sex Pistols são “o” punk.
Como foi a receção dos Sex Pistols em Portugal? Relativamente a esta questão, podemos afirmar que a chegada desta banda a Portugal equivaleu praticamente ao surgimento de um novo conjunto de caminhos musicais, estéticos e ideológicos, ou seja, a abertura à cultura pop. Intimamente ligada ao fortalecimento da indústria musical portuguesa, esteve na origem do boom do rock português na primeira metade da década de 1980. O punk, nesta altura, era, precisamente, sinónimo de Sex Pistols. A banda é inclusivamente referida num sentido metonímico, quer dizer, os Sex Pistols são punk, mas os Sex Pistols também são “o” punk. Como refere um jovem de então:
Qualquer pessoa que veja outra com uma crista diz ‘Olha ali um punk’. E quando falas em punk dizes ‘Sex Pistols’. Isto é como a Black & Decker, quando falas de um berbequim já não dizes berbequim, dizes Black & Decker; quando preciso de comprar uma lâmina para me barbear, digo que vou comprar uma Gillette.
As caraterísticas específicas do punk estavam intimamente relacionadas com os Sex Pistols, tanto a nível musical, como estético e de atitudes. Efetivamente, a música dos Pistols pautava-se por um estilo muito simples e direto, um claro confronto ao virtuosismo técnico do rock progressivo, distinguindo-se pelo regresso às origens: para a rua ou pequenas salas de concertos, onde a interação entre público e banda deixava de estar demarcada por fronteiras. Este regresso ao básico teve o efeito de motivar os mais jovens a seguirem uma carreira musical, movidos pelo epíteto ‘se eles conseguem, eu também consigo’ (Albiez, 2006). Tudo o que passava a ser necessário era uma guitarra, um baixo, uma bateria e vontade de cantar os males sociais. Ou não… Cantar apenas sobre o que lhes apetecia:
Com os Sex Pistols toda a gente podia fazer, todos os miúdos podiam começar a pintar o cabelo, agarrar uma guitarra e começar a gritar em frente a um microfone. Esse foi o segredo deles.
Excerto da canção “Anarchy In The UK” (1977), dos Sex Pistols
Anarchy for the U.K. It's coming sometime and maybe I give a wrong time, stop a traffic line Your future dream has sure been seen through 'Cause I want to be anarchy In the city How many ways to get what you want I use the best, I use the rest I use the N.M.E. I use anarchy 'Cause I want to be anarchy Its the only way to be Is this the MPLA Or is this the UDA Or is this the IRA I thought it was the U.K. Or just another country Another council tenancy Sex Pistols - Anarchy in the UK (official video)
Os Pistols, com a sua estética (cabelos pintados, roupas com tons de cores extravagantes, gravatas cortadas, picos, alfinetes, Doc Martens), apelavam à importância da individualidade e do ser diferente, à importância de se ter opiniões e interesses próprios, de não caminharmos todos para um mesmo lado. É importante notar que os Sex Pistols (como um todo) atingiram o que Adorno apelidaria de crítica imanente e transcendental da indústria da cultura pop. Isto é, para além de mostrar o potencial transgressivo do estilo pop, os Pistols foram mais longe: exploraram e ocuparam o espaço, enquanto interstício cultural, recusando o ilusório prazer e o mito fraudulento da própria indústria cultural pop. Como nos diz um agente chave da cena punk portuguesa:
Pediam uma revolução quotidiana, não-ideológica. Principalmente da afirmação do eu, opondo-se mais uma vez à ideia de movimento. […] Daí o grito, às vezes até histérico, quer na roupa, na música, nas letras, toda a expressão desse punk seminal é um grito do eu, e isso também está bem patenteado nas letras dos primeiros discos. Um niilismo absurdo, não-cultural, não-político, só mesmo essa afirmação. […] Isto terá muito que ver com sociedades industrializadas, despersonalizadas, desfamiliarizadas – como era o caso da Inglaterra pós-industrial -, então, esse é o tal contexto socioeconómico, cultural, que levou a que esse punk pegasse como fogo na pradaria.
Imagens 6 e 7
Artigo “Rock em família – Sex Pistols” com biografia da banda, da autoria de Fernando Matos e publicado na revista Música&Som, em 1986
Fonte: Arquivo KISMIF, através de Hemeroteca Municipal de Lisboa.
Never Mind the Pistols?
Uma questão que se impõe na análise da receção dos Sex Pistols em Portugal prende-se com o facto de não estarmos a tratar de um simples efeito de mimetismo. A forma como foram apropriados em Portugal dependeu de recursos locais, muito variáveis, fazendo com que essa apropriação e reapropriação se distingam do que ocorreu em outros países. Assim, podemos falar de uma apropriação que misturou elementos globais e locais do punk, que foi bastante além de uma simples imitação.
Uma outra questão em relação aos Pistols remete-nos para o facto de esta banda estar longe de se constituir como consensual no que respeita ao gosto e admiração (Guerra & Bennett, 2015). Com efeito, apoiando-nos num conjunto de entrevistas do projeto KISMIF (vide nota), desde logo surge como relevante considerar que 77,5% dos entrevistados afirmam gostar dos Sex Pistols, enquanto apenas 22,5% assumem o contrário. Partindo desta divisão, e num esforço de categorização das atitudes em relação aos Sex Pistols, podemos considerar a existência de seis ‘tipos’ compósitos de representações sociais em Portugal sobre a banda.
Assim, em primeiro lugar surgem os admiradores assumidos (50%). O gosto pela banda advém do facto de estarmos perante uma banda diferente das demais, que trouxe algo de novo ao panorama musical. Foram os Sex Pistols quem lhes abriu a porta para aquilo que viria a ser uma longa jornada ligada ao punk, fosse enquanto fãs ou enquanto músicos (Marcus, 2000). Esse impacto, essa forte adesão, ficou a dever-se ao facto de, nessa altura, em Portugal, existirem poucas bandas, sobretudo com influências punk. Assim, quando os Sex Pistols chegam ao nosso país (e conseguem fazê-lo porque segundo os entrevistados foram uma das primeiras bandas a conseguir vender discos para todo o lado), com a sua atitude irreverente, polémica, transgressora, agressiva, chocante, conseguem alcançar bastantes fãs. A admiração pelos Sex Pistols tende a basear-se num culto em torno da sua sonoridade e em torno de alguns dos seus músicos (Sid Vicious e John Lydon) e não tanto nas suas letras.
Sendo já bastante menos expressivo, de entre os atores punk portugueses que afirmam gostar dos Sex Pistols, assoma o subgrupo os ‘conquistados’ (2,5%). Se num momento inicial, quando mais jovens, não gostavam da banda, hoje em dia, expressam um sentimento de respeito pela mesma, ao qual não é alheia a visão dos Sex Pistols como um marco no seio do movimento punk.
Os críticos (22,5%) representam o segundo subgrupo mais expressivo, congregando os atores para quem o gosto pelos Sex Pistols se situa num limiar complexo entre o amor e o ódio. Por um lado, gostam da banda e do seu trabalho musical, por outro, abominam algumas das suas condutas. E esta representação ambígua da banda é algo que se mantém desde o início, quando entraram em contacto com ela, até aos dias de hoje. Contradição, sentimento dual fortíssimo, bem ao encontro do modus operandi da banda como vemos no seguinte excerto.
Eram uma banda comercial e uma banda underground ao mesmo tempo. Foram das únicas que conseguiram isso. Quando eles apareceram tinham o movimento underground, porque foram dos primeiros a cagar para tudo o que estava à volta e a dizer a sua opinião e a ser contra o sistema, mas por outro lado foi uma fabricação do McLaren para vender a canequinha, para vender a camisinha. Eles conseguiram ter as duas coisas.
Ainda existem os admiradores envergonhados (2,5%). Partilhando sentimentos de gosto e admiração pelos Pistols, os atores que constituem o subgrupo aqui em causa diferem dos outros pelo facto de sentirem vergonha de expressar abertamente perante os amigos o seu gosto por esta banda, na medida em que esta é associada ao mainstream, ao comercial, chegando mesmo a ser questionada a sua autenticidade. E a este respeito, podemos mesmo questionar se esta vergonha em assumir que se gosta dos Sex Pistols estará relacionada com alguma espécie de receio que a autenticidade da ligação dos entrevistados ao movimento punk seja também posta em causa.
Aos amigos, se calhar, não digo que gosto por uma questão de vergonha, mas honestamente, se calhar, ainda me toca assim em fibras sensíveis. E Pistols está nesse patamar, ou seja: é uma coisa que eu acho neste momento — principalmente depois da Filthy Lucre Tour — uma coisa execrável, e que percebo que foi uma manobra de marketing mais do que uma banda genuína – mas na altura achei aquilo uma coisa do caraças.
Finalmente, de entre os entrevistados que dizem não gostar dos Sex Pistols, podemos distinguir dois posicionamentos: os detratores declarados e os faster & young. No caso dos ‘detratores declarados’ — 17,5% do total da amostra — estamos perante um posicionamento que nos conduz a verificar que o que leva alguns entrevistados a gostar de Sex Pistols, pode também levar outros a detestá-los. Assim, neste subgrupo, encontramos os entrevistados que referem que não sofreram qualquer influência advinda dos Sex Pistols e que, por isso, esta não é uma banda de que gostem muito. As razões para não gostarem de Sex Pistols relacionam-se sobretudo com o facto de se tratar de uma banda que se move pelo interesse comercial e económico, e por isso ambígua, que ‘dispara contra tudo e contra todos’, niilista, anarca, algo que é tido como punk, mas que para alguns entrevistados não é suficientemente claro. Alguns entrevistados deste subgrupo referem mesmo que o passar dos tempos fez com que inclusivamente se desiludissem mais com os Sex Pistols e com o que são hoje. Os faster & young totalizam 5% dos indivíduos, enquadrando essencialmente alguns dos entrevistados mais novos, que referem que não gostam dos Sex Pistols, uma vez que procuram coisas mais rápidas do ponto de vista sonoro. Não obstante, na maioria destes entrevistados é possível encontrar um reconhecimento por tudo aquilo que os Sex Pistols fizeram e representaram no âmbito do movimento punk. As palavras dos punks portugueses não deixam dúvidas:
Os Pistols foram um produto criado pelo manager na altura, o Malcom. O Johnny Rotten, o vocalista, foi escolhido num casting. O Sid Vicious não sabia tocar baixo. E agora reúnem-se para tocar com o objetivo declarado de ganhar dinheiro.
Sold out sell-outs?
Enquanto oposição à norma cultural, o punk encerra um constante debate entre o autêntico e o impuro. Inaugurado desde cedo pelos Sex Pistols, com a assinatura do contrato com uma major, este debate manifesta-se pelo contacto entre a subcultura e as instâncias dominantes da indústria cultural (Dunn, 2012; Osgerby, 2007). A este propósito, John Lydon diz-nos, na conferência de imprensa que lançou a tour que se seguiu à reunião da banda em 1996: ‘Ouçam, nós inventámos o punk, nós escrevemos as regras, vocês seguem’ [John Lydon, ‘Filthy Lucre’ Press Conference, 1996 Cf. http://www.sexpistolsofficial.com]. Anos mais tarde, a propósito da segunda reunião, Lydon acrescenta: ‘Vamos clarificar uma coisa. The Sex Pistols é Punk. O resto é só punk rock, é tão simples quanto isso. (…) Não houve nenhum movimento. E se formos honestos, a maior parte dos álbuns de punk foram terríveis e só queriam enganar as pessoas. Mas depois houve os Sex Pistols que eram a sério’ [John Lydon, ‘Pistols at The Palace’, 2002 Cf. http://www.sexpistolsofficial.com].
Se Lydon se assume como autêntico e como fundador do punk, no entanto, este posicionamento não parece ser unânime. Em Portugal, os Sex Pistols são vistos, como já notado, por um conjunto de indivíduos, como um produto incorporado no mainstream. Assim, a maioria dos indivíduos entrevistados (mesmo os ‘admiradores’) refere-se aos Sex Pistols como sendo uma banda do mainstream e comercial que acabou por contribuir para a banalização do punk. Alguns consideram que essa comercialização se deu desde o início da banda, sendo que para uns os Sex Pistols são uma conceção do seu manager, enquanto para outros, num entendimento mais autónomo da banda, foram os próprios Sex Pistols que “jogaram” com as editoras. Outros ainda consideram que a ligação dos Sex Pistols às editoras se tratou de uma inevitabilidade, na medida em que, naqueles anos, as editoras tinham um poder fortíssimo e qualquer banda com exposição era conglomerada por elas (até mesmo como forma de controlar as bandas mais antissistema). Outros entrevistados consideram que os Sex Pistols só se renderam à comercialização após terem assinado com a EMI ou após a morte de Sid Vicious, na medida em que não avaliam positivamente o facto de estes continuarem a fazer dinheiro com algo que, para eles, já havia terminado, e com algo que apenas lançou um álbum. Outros, porém, entendem e respeitam as razões que levaram os Sex Pistols a ligar-se à indústria musical (na medida em que toda a gente pretende ver o seu trabalho ser reconhecido), julgando inclusivamente que a ligação à editora não significou uma perda de autenticidade:
Quando os Sex Pistols ou os Clash assinam pela EMI e… acabam por se internacionalizar, acabam por dar a volta ao planeta. A partir daí, aquilo que era o punk na sua origem, poderia dizer-se que acaba por ser subvertido, também, por se tornar num produto de mercado.
Apesar de tudo, de todas as críticas que possam ser lançadas aos Sex Pistols, a maioria dos entrevistados considera que se os Sex Pistols não tivessem assinado por uma major, o punk não teria tido o rumo que teve, desde logo porque as editoras grandes têm uma capacidade de edição muito maior que as editoras pequenas, o que permitiu que os Sex Pistols chegassem a mais países (incluindo Portugal) e a mais pessoas e, consequentemente, que essas pessoas tomassem conhecimento de uma realidade alternativa. Por isso, para estes entrevistados a ligação dos Sex Pistols às majors foi crucial para o desenrolar do movimento punk.
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Excertos de artigos sobre os Sex Pistols e outras bandas punk, retirados de jornais portugueses customizados e reapropriados até ao presente por Ondina Pires
Fonte: Arquivo KISMIF, através de Hemeroteca Municipal de Lisboa.
Vida, morte, metamorfose: os Pistols como marco.
Inevitavelmente, a opinião sobre os Sex Pistols foi sofrendo alterações de forma significativa. Recorrendo ao muito badalado regresso da banda, em contexto nacional, no ano de 2008, no festival de Paredes de Coura, foi possível verificar que muitos fãs recusaram-se a assistir por um receio de desilusão, já que a banda teria perdido a sua capacidade de surpreender, a sua originalidade e criatividade, consequência direta da sua relação com o mainstream. Desta forma, não há dúvida que os Sex Pistols perderam parte do seu apelo e valor. Mas nem todos sofreram desta desconfiança: a verdade é que nesse dia a afluência foi de 40.000 pessoas, em contraste com a média de frequência diária de festivaleiros nos restantes dias – 17.000. Apesar, ainda assim, do subsequente arrependimento de alguns. Como nos disse alguém:
Arrependi-me um bocadinho. Quando comprei o bilhete sabia que: ‘vai ser uma banhada’. Mas entretanto ouvi algum pessoal, nos dias a seguir, a dizer que tinha sido o concerto da vida deles.
Sex Pistols em Paredes de Coura: fotos e texto
Texto de Lia Pereira. Fotos de Miguel Puga.
31 anos é muito tempo. Tempo suficiente, pelo menos, para que o contexto de uma banda ou de um fenómeno cultural se altere significativamente. Já todos tínhamos lido mil vezes que, no primeiro regresso aos concertos, os Sex Pistols assumiram que tinham voltado pelo dinheiro, pelo “filthy lucre”. E todos sabemos que desde então – desde 1996, portanto – a motivação dos ingleses não mudou drasticamente. Johnny Rotten até já aproveitou para arranjar os dentes. Não deixa, no entanto, de causar alguma estranheza que o primeiro concerto dos Sex Pistols em Portugal aconteça num ambiente “controlado”.
O arranque do concerto não esclareceu as dúvidas de quem não sabia que Sex Pistols eram estes do Verão de 2008, mais de 30 anos volvidos sobre a pedrada no charco Never Mind The Bollocks, Here’s The Sex Pistols. “Good fucking evening”, começou por saudar Johnny Rotten, descansando todos aqueles que compraram bilhete para ver punks a sério. Mas logo a seguir completa, de mão no peito: “heart, love!”. Podia ser um hippie a falar. Alvo de todas as objetivas, inclusive da BLITZ, Johnny Rotten movimenta-se na beira do palco com movimentos mínimos, dedinhos indicadores espetados no ar como se dançasse no baile da terrinha. O cabelo continua espetado e os olhos arregalados, mas as calças vermelhas aos quadrados fazem lembrar uma das mais estranhas modas deste ano em Paredes de Coura: passear de calças de pijama. “Pretty Vacant” abre, como estava previsto, o concerto, e o coro certeiro da multidão, bem como dezenas de copos atirados ao ar em plena euforia não deixam margem para dúvidas: Paredes de Coura está com os Sex Pistols. Mas os Sex Pistols, estarão com Paredes de Coura? Desde queixas sobre o som – “your sound is fucking shit” – a monólogos repetitivos e algo absurdos, como os contínuos louvores a Alá, a postura de Johnny Rotten em palco foi desconcertante. A banda percebeu que o público não sabia muito bem o que pensar: “Somos assim tão maus?”, perguntou Rotten após uma “Submission” a meio gás. A resposta foi ambígua. Houve, é claro, momentos de natural regozijo: em “Holiday In The Sun” Rotten não se escusou a referir o sol de Portugal e a banda esmerou-se na rendição deste clássico; “No Fun” deu origem a uma das maiores sessões de mosh do festival até agora e “God Save The Queen” fez – ainda faz – todo o sentido nos seus cuspidos três minutos de raiva. Braços e cervejas no ar deram razão aos Sex Pistols, uns quantos corpos se seguiram, projetando-se no ar ao som de “no futuuure…”.
Fonte: Blitz, 2008, http://blitz.sapo.pt/principal/update/sex-pistols-em-paredes-de-coura-fotos-e-texto=f29502
Mas valeu a pena esperar por eles em Portugal? Sim. É possível encontrar, ainda hoje, elementos que provam a continuidade dos Sex Pistols enquanto referência. São uma banda ouvida por pessoas que não gostam de música punk, o que pode significar que a fronteira do punk foi ultrapassada, podendo ser considerada como uma banda marcante na história musical. O mesmo pode ser dito se observarmos a mercantilização de que foi alvo, nomeadamente na profusão de t-shirts com a sua imagem. Ainda, e mais importante, os Sex Pistols continuam a ser entendidos como uma banda mítica, uma referência para todo e qualquer neófito que queira entrar no mundo punk, que faz com que os punks mais jovens acabem por ouvir o que os punks mais velhos ouviam e que, em alguns casos, continuam a ouvir.
Houve uma altura em que a minha filha começou a usar um colar que é uma corrente com um cadeado como o Sid Vicious e começou a ouvir Sex Pistols.
É de realçar, por seu turno, que na década de 1970, aqueles que ouviam Sex Pistols devem ter sentido que estavam a presenciar a História ou um momento histórico; aqueles que os ouvem hoje sentem que estão a ouvir uma parte da história.
Acho que os veem [os mais jovens] como uma banda de referência. Não da mesma forma como vivi, porque lembro-me de, na altura, não parar de ouvir a cassete dos Sex Pistols.
O que é inegável, para concluir, é que mesmo num pequeno país afastado dos grandes centros musicais, e saído de uma longa ditadura, os Sex Pistols, entendidos como representação máxima do punk, provocaram enormes alterações na música popular e nas relações sociais a si subjacentes. Estiveram na origem de inúmeras bandas e projetos de bandas. Inauguraram uma ética do-it-yourself, crucial num país de baixos recursos, que rompeu com todo um modelo económico e que continua pujante. Foram um símbolo de um cosmopolitismo que os jovens procuravam interiorizar e desejavam transmitir num país fechado e tristonho. Talvez a morte do punk tenha sido declarada prematuramente. A verdade é que a lebre lançada pelos Sex Pistols ainda não parou de correr. Nem parece que vá parar tão cedo.
As mais de 200 entrevistas que estão na base desta abordagem foram realizadas entre janeiro de 2013 e dezembro de 2014, no âmbito do projeto KISMIF – Keep it Simple, Make it Fast!. O KISMIF é um projeto de investigação, de cariz sociológico, desenvolvido no Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (IS-UP), em parceria com o Griffith Centre for Cultural Research (GCCR), a Universitat de Lleida (UdL), a Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEP), a Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), a Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto (FPCE) e as Bibliotecas Municipais de Lisboa (BLX). Tendo por objetivo analisar as manifestações punk em Portugal desde o seu surgimento até à atualidade, a abordagem do KISMIF é transdisciplinar (antropologia, história, psicologia, comunicação, jornalismo e sociologia) e articula tempos e espaços diversos, de forma sincrónica e diacrónica, de modo a levantar o véu que oculta um objeto de estudo manifestamente complexo e socialmente pouco visível. http://www.punk.pt/projeto-3/
Referências || Para Saber Mais
ALBIEZ, Sean (2006) – Print the truth, not the legend. The Sex Pistols: Lesser Free Trade Hall, Manchester, June 4, 1976. INGLIS, Ian (ed.) – Performance and popular music: history, place and time. Hampshire: Ashgate Publishing, pp. 92-106.
COLEGRAVE, Stephen; SULLIVAN, Chris (2002) – Punk. Hors Limites. Paris: Éditions du Seuil.
DUNN, Kevin C. (2012) – Never Mind the Bollocks: The punk rock politics of global communication. Review of International Studies, vol. 34, pp. 193-210.
GARNETT, Robert (1999) – Too Low to Be Low: Art Pop and the Sex Pistols. Sabin, Roger (ed.) – Punk Rock: So What?: The Cultural Legacy of Punk. Nova Iorque: Routledge, pp. 17-30.
GUERRA, Paula; BENNETT, Andy (2015) – Never Mind the Pistols? The Legacy and Authenticity of the Sex Pistols in Portugal. Popular Music and Society. Vol. 38, n.º 4, pp. 500-521.
MARCUS, Greil (2000) – Marcas de Báton. Uma história secreta do século vinte. Lisboa: Frenesi.
MCNEIL, Legs; MCCAIN, Gillian (2006) – Please Kill Me. L’histoire non censure du punk racontée par ses acteurs. Paris: Éditions Allia.
OSGERBY, William (2008) – He Filth and the Fury: The development and impact of British punk rock. Groniek: Historisch Tijdschrift, vol. 179 (2008), pp. 173-87.
SAVAGE, Jon (2002) – England’s dreaming: Les Sex Pistols et le punk. Paris: Éditions Allia.