Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
Cães Vadios – “Cão Vadio”
As grandes proclamações políticas e a acção directa manifestada em palavras não são tudo. Há formas mais subtis de pôr o dedo na ferida e de dar corpo a um mal-estar bem definido e perfeitamente identificado. Faz-se a luz incidir sobre os fantasmas que nos atormentam ou que outros tentam esconder e a claridade que daí nasce ilumina mais do que aparenta à primeira vista. Canta-se amor e ódio na faca que corta o coração da miúda que despeitara aquele que canta – título: “O homem que matou”. Ilustra-se a solidão etílica de mais um corpo deambulando perdido pelos balcões da cidade. Ouve-se no início de “Bêbado”: “só me vêem estou quando bêbado / ninguém me vê quando tenho sede”. Deparamo-nos com a cabeça erguida e o tom ameaçador de quem não está para aturar tretas, venham de onde vierem. Gritemos: “Sou um cão vadio / e mordo quem me pisa a cauda”.
A canção é “Cão vadio” e deu rosto ao single homónimo de 1987 editado pela Ama Romanta, a grande editora independente portuguesa com os Pop Dell’Arte de João Peste no seu núcleo. A banda eram os Cães Vadios e vinha do Porto, a mesma cidade que, nos anos 1960, nos dera a mais punk das bandas yé-yé portuguesas, os Tártaros, esses fervorosos demolidores em ritmo acelerado e guitarras tremeluzentes das melodias certinhas dos Shadows. Pode-se dizer, portanto, que já havia antecedentes.
Os Cães Vadios nasceram oito anos depois do ano punk, em 1985, mas são indiscutivelmente um seu reflexo. O rock’n’roll, na sua génese rockabilly, era fermento criativo apontado sem meias-tintas. Quando ainda respondiam pelo nome Cães, a Morte e o Desejo, gravaram a canção “Elvis” para a colectânea “Divergências”, editada pela Ama Romanta em 1986, e apontavam como referência Daniel Bacelar, que fora voz, a meias com Os Conchas, da primeira edição oficial do rock português, “Os Caloiros da Canção”, EP lançado em 1960. Mas os Cães Vadios eram filhos de outro tempo. Tinham certamente ouvido as fantasmagorias dos Cramps e tinham os olhos postos no lado negro, tantas vezes escondido, da vida de todos os dias. E não, não eram nada subtis quanto a isso. Ouvindo “Cão Vadio”, é fácil chegar a uma conclusão. Perante música assim, que se lixe a subtileza.
Ficha Técnica:
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso