Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
Devo – “Mongoloid”
Quando, dia 4 de Maio de 1970, a Guarda Nacional americana disparou sobre os estudantes da Universidade de Kent State, no Ohio, que se manifestavam contra a guerra do Vietname, assassinando quatro e deixando um quinto paralisado para o resto da vida, Neil Young, horrorrizado, escreveu a pungente “Ohio”, folk-rock de dedo acusador bem espetado, gravado no seio dos Crosby, Stills, Nash & Young. Quando uns jovens estudantes de arte, daquela mesma universidade, testemunharam o crime que as forças do Estado acabavam de cometer, chegaram à conclusão que, a partir dali, as coisas tornavam-se sérias. Tão sérias que uma banda nasceria e nasceria precisamente como reflexo daquele acontecimento. Tão sérias e imaginadas de forma tão inteligente pelos estudantes músicos, que a banda que nasceu seria incompreendida durante grande parte da sua vida.
Os Crosby, Stills, Nash & Young responderam com as suas armas, com a sua voz, com música perfeitamente adequada ao cenário de final da década de 1960 que eles mesmo tinham ajudado a criar. Gerald Casale, Bob Lewis e Mark Mothersbaugh, mais novos, reagiram de olhos postos no futuro. Há algum tempo que falavam entre si da ideia de “d-evolution”, qualquer coisa como “in-volução”, ou seja, defendiam que a Humanidade não estava a evoluir, pelo contrário.
Aburguesada e conformada pela insaciável sociedade de consumo, alienada por tanta distracção a tentar os sentidos a toda a hora, joguete nas mãos de estruturas de poder que desejavam que todos ficassem muito quietinhos no seu cantinho, sem levantar ondas, a Humanidade, defendiam os Devo, não estava a evoluir mas a regredir – o assassinato de quatro colegas de universidade às mãos da polícia estatal surgiu como a prova definitiva. Foi esse estado de coisas que, no final dos anos 1970, pretenderam denunciar com humor sarcástico, música retro-futurista, fatos alucinados e vídeos mais alucinados ainda.
A música da banda, feita de guitarras cruas e angulares, unidas a sintetizadores e secção rítmica robótica, está distante da definição clássica de punk-rock. Mas se o punk chegou como erupção de imaginação e desejo de reinvenção, aliada a uma vontade de comentar e agir directamente no presente, então os Devo eram verdadeiros punks – punks de galeria de arte a destruir alegremente a dita galeria enquanto vestiam fatos de um filme sci-fi por inventar.
Em 1977, David Bowie ficou tão entusiasmado quando ouviu uma maquete que se apressou a entrar em contacto com a banda. Um ano depois, produzido por Brian Eno com apoio de Bowie, chegava o primeiro álbum, “Are We Not Men? We Are Devo”. Não eram realmente homens e não eram exactamente máquinas. Eram uns sátiros a atirarem-se de cabeça aos podres da sociedade ocidental. Eram cinco tipos a revolver as entranhas do rock e a adaptá-lo à era tecnológica – ouça-se o ritmo mecânico que deram à versão de “Satisfaction”, o original dos Rolling Stones, e fica tudo explicado. Eram os Devo, ou seja, Mark e Bob Mothersbaugh, Gerald e Bob Casale, Alan Myers e Bob Lewis, que entretanto passara de músico a manager. Parte da imprensa musical considerou-os uma piada – a Rolling Stone, que não percebeu nada, chegou ao cúmulo de lhes chamar fascistas -, outra parte elogiou a audácia da música e da mensagem. O pessoal, bem, o pessoal ouviu, dançou, riu e reflectiu.
“A mongoloid, he was a mongoloid, happier than you and me”. Palavras fortes, politicamente incorrectas. A deficiência está no olhar de quem aponta o dedo, diziam os Devo. Deixem-nos ser exactamente o que somos, insistiam eles, e desamparem a loja. Punks de ficção científica, punks de coração, punks completamente fora da norma – precisamente como o punk deve ser.
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso