Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
MC5 – “Kick Out The Jams”
“Quero ver os vossos cabelos aí em baixo, deixem-me ver os vossos cabelos”, exorta o mestre-de-cerimónias, qual revolucionário berrando palavras de ordem no palanque perante a excitação da multidão. “Quero ouvir um pouco da revolução aí em baixo”, continua ele. “Chegou a altura de cada um e todos vocês decidirem se serão o problema ou se serão parte da solução. Têm que escolher, irmãos e irmãs, têm que escolher”, lança ele, Brother J.C. Crawford, perante o público definitivamente excitado e preparado para o se seguirá. “Ofereço-vos um testemunho: os MC5!”, grita por fim.
Ouve-se isto e, no Grande Ballroom, em Detroit, naquelas duas noites no final de Outubro, ano 1968, já ninguém parava quieto. Não parava o público que esperava a chegada dos seus heróis insurrectos, os Motor City 5, assim baptizados porque eram cinco e porque eram filhos da cidade então capital da indústria automóvel – e muito orgulhosos dessa condição. Não parariam quietos, segundos depois, Rob Tyner, o vocalista do penteado afro imponente, os selvagens guitarristas Wayne Kramer e Fred Sonic Smith, e a libertária secção rítmica formada por Michael Davis e Dennis Thompson.
“Love is like a ramblin’ rose”, introduzem-se, transformando o rock’n’roll num furacão que nos fustiga e se afasta, acariciando e destruindo em igual medida, tudo para nosso prazer. E depois, bem, depois testemunha-se a história a acontecer: “Right now, right now, right now, it’s time to kick out the jams, motherfuckers!”. Não há espaço ou tempo para fazer prisioneiros, estão todos com eles ou melhor será saírem do caminho que eles não pararão perante nada. “Yes, I’m startin to sweat / You know my shirt’s all wet / What a feeling”, canta Tyner como James Brown em banda garage-rock, como revolucionário que conhece muito bem as capacidades transformadoras desta música, desse rock’n’roll a que pretendia devolver a urgência e a capacidade de derrubar barreiras e de alertar consciências.
O punk não existia ainda, estava ainda a uma década de distância, e os MC5 já se definiam como tal enquanto percorriam os palcos e as ruas de Detroit, com punho erguido lado a lado com os Black Panthers, com electricidade libertada sobre um e todos os que os ouvissem, com o apreço por John Coltrane, por Pharaoh Sanders e por Sun Ra a serem usados como fermento criativo absurdamente libertador – Kramer e Sonic Smith não riffavam e não solavam, faziam a música seguir o seu caminho como em solo sem guião.
Fortemente politizados e inseridos na contracultura que lutava pelos direitos civis da população afro-americana, que pregava a liberalização das drogas, que exigia o fim da guerra lá longe, no Vietname, os MC5 são, a par dos Stooges de Iggy Pop, a grande banda americana no prenunciar do punk. Tiveram vida tão breve quanto intensa, marcada por prisões, traições, momentos de glória caídos em desgraça, batalhas contra a censura, contra a polícia, contra um meio que os abraçou efusivamente para os descartar pouco depois. Talvez seja essa existência breve e vivida no fio da navalha que os tornou tão fascinantes. Viveram no palco, essencialmente no palco – era nele que ganhava corpo e alma tudo aquilo que queriam representar.
Quando decidiram lançar o primeiro álbum, na Elektra dos Doors, dos Love, dos Stooges, contratados por recomendação dos próprios MC5, sentiram que seria contraproducente perder tempo em estúdio. Eles procuravam a verdade do momento, queriam que os ouvíssemos como eles próprios queriam o seu rock’n’roll: vivo e enérgico, surpreendente e arrebatador, sem filtros.
“Kick Out The Jams” é expressão para a história, é um álbum a que muitos, tantos, todos voltariam depois, ano após ano. É um álbum ao vivo editado no ano do Maio parisiense, é o álbum que chega na ressaca do Verão do Amor, é o álbum do punk que já era e do punk por vir. “Kick out the jams, motherfuckers!”, gritaram eles, e tudo caiu com estrondo em seu redor. Não é exactamente uma canção, é uma revolução contínua e sempre em curso. Clássico absoluto. Punk uma década antes de nos dizerem que o punk existia. Como resistir? Melhor, para quê resistir? “You must choose, brothers, you must choose”. A nossa escolha está feita à muito.
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso