Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk que eclodiu em Inglaterra, mas também descobrir lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical. Um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
Motörhead – “Ace of Spades”
Olhem só para eles na capa de “Ace of Spades”. Olhem a sério. Lemmy Kilmister, Phil “Philthy
Animal” Talyor e Fast Eddie Clarke. Três pistoleiros do inferno, chapéu de cowboy na cabeça e
negro quase integral, não fosse o poncho de cor clara ao ombro de Fast Eddie. Olhem a sério que é impossível não olhar demoradamente. Têm cinturão de balas, farripas a pender do casaco e a pose de malfeitores preparados para limpar o sebo a quem quer que se lhes atravesse pelo caminho. E isso, se acreditarmos no olhar ameaçador do trio, inclui o famoso “Blondie” encarnado por Clint Eastwood em “O Bom, o Mau e o Vilão”. O bom Clint limpava o sebo a toda a gente no filme de Sergio Leone, mas mesmo ele não seria temerário o suficiente para se meter com este pessoal. Além de que há aqui uma questão geográfica a ter em conta. A foto muito western, muito americana, foi tirada na terra de ninguém que é Barnet, nos subúrbios de Londres. Aqueles três, os Motörhead, só podiam achar piada à incongruência.
Portanto, estamos a falar de cowboys do inferno muito cabeludos à solta em Inglaterra. Estamos a falar de um power-trio que nunca desdenhava um bom solo, bem ruidoso e estrepitoso, que cantava sobre os prazeres do jogo e do sexo quanto mais pecaminoso melhor, de uma banda que se diz ter sido influência marcante para o speed metal e para o thrash. Não parece muito punk, pois não? Oh, pobres inocentes… Não pedimos para repararem bem na imagem que foi capa de “Ace of Spades”, quarto álbum e um dos clássicos da banda, editado em 1980? Reparem na foto e lembrem-se de Lemmy Kilmister, homem maior que a vida, ex-roadie de Jimi Hendrix – “era mais o correio de droga que roadie”, esclareceu anos depois -, ex-membro dos Hawkwind que foi despedido dos arautos desalinhados do space rock por, alegadamente, tomar as drogas erradas.
Dificilmente existirá alguém mais puramente punk que Lemmy Kilmister. Não por corresponder ao estereótipo, mas por ter feito sempre o que quis, como quis, alimentado por uma vontade férrea de viver exactamente como soava a música que lhe serviu de guia desde que acordou a sério para o mundo – ou seja, rápida e intensa, sem cedências aos ventos estéticos e intocada por impurezas de modas ou comércio que a diminuíssem.
A música que os Motörhead criavam era crua e directa. Descendia directamente dos MC5, vestia o manto diabólico dos Black Sabbath e acelerava bem acima do limite legal na autoestrada de um road movie que, em princípio, não ia acabar bem – e que, por isso mesmo, era um grande filme.
Para Lemmy, era muito simples. Aquilo que tocava tinha um nome, rock’n’roll, nem mais, nem
menos que isso, e o rock’n’roll tinha um propósito: mostrar-nos que a vida é para viver no limite, tão intensamente quanto possível, sem patranhas e hipocrisias, alimentados por sonhos razoavelmente loucos de uma adolescência que se prolongará até ao fim. Uma loucura saudável, digamos, um delicioso niilismo – que outra coisa podia ser, de resto, três tipos armados em cowboys do inferno lá para os lados de Barnet?
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso