Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk que eclodiu em Inglaterra, mas também descobrir lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical. Um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
Punk 1977 – 2017: Crass – “So What”
E lá estava ele, Penny Rimbaud, a receber um prémio das mãos de John Lennon no célebre programa televisivo “Ready, Steady, Go”.
O ano era 1964 e Rimbaud vencera o concurso para a elaboração do melhor trabalho artístico dedicado a “I wanna hold your hand”, dos Beatles. Esse fora o passado de Penny Rimbaud, já o presente de que aqui falamos é outro.
Ele foi o porta-voz e o homem das baquetas, vulgo baterista, dos Crass, banda tão pouco popular quanto influente. Dificilmente encontraremos outra que fosse tão íntegra e sincera na sua entrega à causa. Eram banda punk, sem dúvida, totalmente. Eram banda que se tornou banda porque existia uma ideologia por trás – e a música pareceu a melhor forma de dar conteúdo às ideias que fervilhavam.
Nasceram numa comuna e promoveram a ocupação de casas devolutas, transformando-as em centros criativos. Espalharam graffiti pelo metro de Londres com mensagens pacifistas, antimilitaristas, obscenas e anti-religiosas. Criaram fanzines para espalhar a mensagem e distribuíram panfletos anarquistas durantes os concertos, para que a força da música conduzisse a acção política subversiva. Vendiam os seus discos na editora independente que criaram ao preço que consideravam justo, e que era cerca de metade do habitual naquele final da década de 1970.
Receberam visitas pouco simpáticas da Scotland Yard, que os tinha debaixo de olho pela profanidade das letras e pelas acção política considerada perigosa para a manutenção da ordem pública. Vivíamos os anos Thatcher, a greve dos mineiros, a guerra nas Malvinas que opôs a Inglaterra à Argentina. Chegaram até a ser tema de discussão entre Thatcher e Ronald Reagan, o presidente americano, quando puseram a circular anonimamente uma suposta conversa telefónica entre os dois líderes, em que estes abordavam a guerra britânica na América do Sul e o medo nuclear em tempos de Guerra Fria. E os líderes não saíam bem na conversa que, na verdade, não era conversa real, antes uma montagem feita pelos Crass a partir de declarações de Reagan e Thatcher.
Estes eram então os Crass, a banda que pensou o punk como música e acção política, a banda que, vamos lá corrigir esta ideia, pensou o punk como indistinto de acção política. Só essa postura justificaria que fossem incluídos na história do movimento. Mas depois há a música, e a música, apesar de poucos a terem ouvido à época, era impossível de ignorar.
Aos riffs crus e à rapidez da batida juntavam-se as vozes cuspidas ao microfone. A estas reuniam-se as manipulações de ruído e as colagens sonoras que haviam aprendido a ouvir compositores como Stockhausen. Subiam a palco vestindo integralmente de negro, fardas escolhidas para que nenhum membro se destacasse dos demais. Cantavam a favor dos mineiros, da ecologia e do anarquismo. Cantavam contra a religião organizada, contra o capitalismo feroz, contra a misoginia e contra o racismo. Denunciavam a divisão do punk em grupos e sub-grupos combatendo entre si em vez de lutarem contra o inimigo comum.
Não eram exactamente uma banda, eram um colectivo. Ouvia-se Steve Ignorant, o vocalista, mas também as vozes de Joy de Vivre e de Eve Libertine. Seguíamos as guitarras de Phil Free e N. A. Palmer e o baixo de Pete Wright, enquanto Penny Rimbaud, o anarquista que vinha dos tempos dos Beatles e que fazia a ponte entre duas gerações, tocava bateria, cantava algumas canções e manipulava sons rádio.
Via-se Gee Vaucher, cúmplice criativa de Rimbaud desde a década de 1960, nas capas e demais arte gráfica que criava para a banda.
Víamos e ouvíamos, ouvíamos e víamos. Não podíamos ignorar. Em 1978 editaram o primeiro álbum, “The Feeding of the 5000 Thousand”. 18 canções em 32 minutos. Nem um grama a mais, tudo no sítio certo. Entre “They’ve got a bomb”, “Punk is dead” ou “Fight war, not wars”, estava “So what?”. Pose de confronto e sem papas na língua. A moral judaico-cristã? E então, que temos nós com isso? “So what if Jesus died on the cross / So what about the fucker, I don’t give a toss / So what if the master walked on the water? / I don’t see him trying to stop the slaugther”.
Os Crass nasceram com fim determinado. Tinham escolhido 1984, o da obra de George Orwell, como o ano da despedida. Chegou 1984 e disseram adeus. Gente íntegra estes Crass. Punks à séria, até às últimas consequências. Não eram uma banda, eram uma ideia impossível de ignorar.
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso