Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
Richard Hell & The Voidoids – “Blank Generation”
São insondáveis os caminhos do mundo. Richard Hell chegou a Nova Iorque em 1966 com o objectivo de ser poeta ou, pelo menos, de viver da escrita. Conseguiu-o, chegando às páginas de várias publicações, incluindo a então recém-criada Rolling Stone. Não é, porém, pela escrita impressa que aqui falamos dele. Richard Hell não estava sozinho em Nova Iorque. À sua volta tinha um velho amigo de Delaware, Tom Miller, e tinha toda uma efervescência criativa de músicos, escritores, cineastas, argumentistas, fotógrafos, que criariam a influente cena punk da cidade. Richard Hell, o poeta, sabe tudo isso muito bem. Afinal, ele estava lá, bem no centro do furacão.
Tom Miller trocou o Miller por Verlaine, em honra do poeta francês, e com Richard Hell, formou os Television, uma das primeiras bandas a fazer o nome do CBGB’s. Enquanto isso, nas ruas de Nova Iorque e no palco do clube, Richard Hell inventava o corpo punk por vir. Espetou o cabelo no ar – “era assim que o usava Rimbaud”, o seu poeta preferido, justificou -, rasgou t-shirts, prendeu alfinetes de ama na roupa. Malcolm McLaren, futuro manager dos Sex Pistols, prestou atenção e, quando chegou a Inglaterra, não demorou a descrever o que vira a um entusiasmado Johnny Rotten.
Do alinhamento dos Television já fazia parte uma canção de Hell, “Blank generation”, poderosa ode pela libertação individual e contra qualquer tipo de conformismo. Mas Richard Hell não se demorou nos Television – divergências criativas. Também não se demorou muito nos Heartbreakers do incontrolável Johnny Thunders, a banda que co-fundou a seguir. O homem que chegara a Nova Iorque para ser poeta tinha uma visão e precisava de tomar as rédeas do seu destino para a concretizar. No início de 1976, chamou a si os guitarristas Ivan Julian e Robert Quine, que ouviríamos ao lado de Lou Reed, Brian Eno ou Tom Waits, e o baterista Marc Bell, que pouco depois se transformaria num certo Marky Ramone. Hell ficou com o baixo e com o microfone e, com a sua verve existencialista literata, fez o diagnóstico da alma punk prestes a anunciar-se. Nasciam Richard Hell & The Voidoids.
Em 1976, a canção que compusera e tocara com os Television e com os Heartbreakers, tornou-se single. Em 1977 tornou-se também título de álbum com dimensão de manifesto. Na capa, Hell em pose de desafio no casaco aberto a mostrar o peito nu, onde se lia “You make me”, seguido de um espaço para preencher como bem se entendesse. Riff à Stooges, balanço Bowie, o blues revolvido para cabaret rock’n’roll gloriosamente decadente, e atitude 100 por cento Richard Hell. “I was sayin’ let me outta here even before I was born”, anunciava-se.
A “Blank generation”, a sua, não era a geração do vazio. Era a geração que tinha perante em si um espaço em branco por preencher. E não havia dúvidas que não demoraria a decidir o escrever nele. Richard Hell criou o hino e ajudou a dar o tiro de partida. A Inglaterra de Sex Pistols, Clash ou Buzzcocks, inspirada por ele, não demorou a juntar-se à corrida em passo veloz. A blank generation tinha mesmo nome.
Ficha Técnica:
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso