Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
The Saints – “I’m Stranded”
Não era fácil a vida de um músico na Austrália. O conservadorismo era castrador e a moralidade cristã seguida rigidamente na vida pública. Nos anos 1960, a invasão rock’n’roll protagonizada pelos The Who e pelos Small Face começou com Pete Townshend a esmurrar um jornalista no aeroporto, continuou com voos interrompidos, destruições de quartos de hotel e detenções na esquadra, e acabou com o primeiro-ministro australiano a escrever um telegrama a Pete Townshend, dizendo-lhe que nunca mais pusesse os pés no país.
Mas, como sempre acontece, as grandes bolsas de conservadorismo originam o nascimento de pequenas bolsas de forte resistência. A Austrália podia banir o rock’n’roll dos The Who e dos Small Faces, mas não podia fazer nada quanto ao que acontecia dentro de portas. E, dentro de portas, o rock’n’roll florescia. Um rock’n’roll peculiar, devoto das raízes do género, directo ao assunto e sem floreados. Como é o que o punk não havia de se manifestar ali?
Os The Saints nascem enquanto banda a percorrer os bares de Brisbane. Tocavam Elvis, Del Shannon, Ike & Tine Turner. Ou melhor, vergavam as canções de Elvis, Del Shannon e Ike & Tina Turner aos seus propósitos, auxiliados no propósito pela discografia de Stooges e MC5 que ouviam em casa. Diziam que não era nada disso, que só tocavam as canções muito rápido por estarem muito nervosos em palco – claro, claro. Realmente, era nervo o que tinham, mas não era coisa de atadinhos. Era a nuvem conservadora que os envolvia, era a polícia que lhes interrompia os concertos e levava membros da banda e público a bater com os costados na cadeia. Era aquilo que se pressentia, mas que ainda não se sabia definir com exactidão – os Saints estavam a acelerar o rock’n’roll em Brisbane, tal como os Ramones em Nova Iorque, tal como os Sex Pistols em Londres.
Chris Bailey tinha voz de Mick Jagger muito zangado, sem estrelato à vista, Ed Kuepper, o guitarrista, tocava acordes serrados e solos furiosos como se apertasse uma faca entre os dentes e a secção rítmica seguia-o com empenho igual. Costuma dizer-se que a insatisfação e o tédio são um grande fermento criativo. O caso dos The Saints parece confirmá-lo.
Não pararam de tocar quando a polícia começou a chateá-los demais – transformaram a casa onde viviam em clube rock’n’roll. Não desistiram quando nenhuma editora mostrou interesse na sua música – fundaram a sua própria editora, a Fatal Records. Foi nela que se anunciaram a toda a Austrália e ao mundo, em Setembro de 1976, com a canção que resumia todo um estado de espírito. “I’m stranded”, ou seja, “estou encalhado”. Estavam, mas aquele single foi um sinal. Era o grito de libertação.
Ficha Técnica:
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso