Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk que eclodiu em Inglaterra, mas também descobrir lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical. Um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
The Misfits – “Bullet”
Quando George Romero, o lendário realizador que a morte levou em Julho, realizou em 1968 “A Noite dos Mortos Vivos”, o filme que ofereceu à cultura popular essas figuras maravilhosamente horrendas a que se chamou zombies, pôs mortos vivos a caminhar sobre a Terra com toda a pompa, horror e passo lento. Quando o fez, porém, não estava simplesmente a acrescentar uma nova categoria de horrores a uma arte que já tinha posto em tela vampiros, frankensteins, morcegos demoníacos e monstros da lagoa negra. “A Noite dos Mortos Vivos”, como Romero explicou, ele que não gostava nem um bocadinho da glorificação dos zombies como estrelas pop, representavam uma nação às voltas com pesadelos e farrapos humanos bem reais, criados pela guerra do Vietname e pelos conflitos sociais que, naquele tempo, rebentavam por todo o lado nos Estados Unidos.
Os Misfits, a banda nascida em 1977 em New Jersey, enclave operário às portas de Nova Iorque, não tinham o nome que tinham por acaso. Os Misftis, ou seja, “Os Inadapatados”. Os Misfits, ou seja, a banda que atravessou o portal para outra dimensão, a do imaginário do cinema de terror, a da precaridade iluminada da série-B, a das pranchas da BD mais aterrorizadora, a das histórias de voodoo saídas de Nova Orleães, a das feitiçarias de Screaming Jay Hawkins, que gritava “I put a spell on you” enquanto músicos bêbados tocavam alucinados a melodia da imortal canção.
O punk vestido a negro foi providencial para os Misfits. Na Nova Iorque a viver a explosão criativa em volta do CBGBs, a banda fundada por Glenn Danzig, o pequeno grande vocalista de 1m60cm, encaixou sem encaixar. Eram filhos do rock’n’roll como música demoníaca, eram bastardos do punk procurando novas soluções estéticas e legitimação artística. Pintavam caveiras no rosto, tocavam surf-rock para praias pós-apocalípticas, eram ferozes e divertidos, eram iconoclastas sem freio que, na verdade, só nos queriam pôr a dançar.
No início de 1978, Glenn Danzig, o guitarrista Franché Coma, o baixista Jerry Only e o baterista Mr. Jim entraram em estúdio para gravar aquilo que seria o primeiro álbum da banda. Quando saíram do estúdio tinham 14 canções prontas para edição mas nenhuma editora interessada em editá-las. Resolveu-se tudo em modo do it yourself. Danzig criou a editora Plan 9 Records, baptizada em homenagem a “Plan 9 From Outer Space”, o filme de ficção científica do grande herói da série B, Ed Wood, seleccionou quatro das catorze canções e, no Verão de 1978, foi editado o “Bullet EP”.
Eram quatro canções sem tempo a perder, três delas abaixo dos dois minutos de duração. Na capa, víamos um John Kennedy ainda sorridente, um milésimo de segundo antes de ser atingido pela primeira das balas que o vitimou. América feliz, América doente, América mortífera. “Kennedy’s shattered head hits concrete / Ride, Johnny ride”, canta Danzig, gloriosamente perverso.
Pois, esta não é uma história de zombies.É a história dos Misfits, rosto de caveira armado de guitarras punk a oferecer um negativo do sonho americano. Dançava-se muito bem. “Ride, Johnny ride”, não é? Pois bem, assim faremos.
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso