Texto: Rui Miguel Abreu | Locução: Nuno Reis | Sonoplastia: Luís Franjoso
Um disco apenas, lançado há exatamente 40 anos, bastou para que os Young Marble Giants alcançassem o que tantos outros artistas procuram por vezes durante carreiras inteiras falhando os seus mais altos propósitos: a eternidade. Colossal Youth permanece um objeto estranho até aos dias de hoje.
“Alison não é uma cantora”, exclamou, um dia, Stuart Moxham, a força motriz dos Young Marble Giants. “Ela é só alguém que canta”, complementou, desvalorizando assim o papel de Alison Statton, outra das peças-chave de uma banda que editou apenas um álbum em 1980, mas de que justificadamente teimamos em falar quatro décadas volvidas.
Colossal Youth, êxito inesperado para a independente Rough Trade de Geoff Travis, conseguiu resistir à passagem do tempo exactamente por soar, à época, completamente desligado do zeitgeist que o pós-punk traduzia. À urgente angulosidade de boa parte das bandas da era pós-punk — em 1980, os Fall editaram Grotesque (After the Gramme), os Pop Group assinaram For How Much Longer Do We Tolerate Mass Murder, The Voice of America foi o segundo álbum dos Cabaret Voltaire para a Rough Trade, e, claro, os Joy Division lançariam “Love Will Tear Us Apart” e Closer meras semanas após o trágico suicídio de Ian Curtis, em maio —, Stuart Moxham, o seu irmão Philip e Alison Statton contrapunham uma visão esparsa da pop, integrando elementos deslocados de easy listening, ecos distantes do rock and roll clássico e uma desligada inocência que não podia ser mais distante do rigoroso engajamento político em que muitas das bandas suas contemporâneas investiam claramente. No semanário Se7e, em Dezembro de 1980, Miguel Esteves Cardoso descreveu Colossal Youth como um disco “cristalino”: “como se Judy Collins virasse o miolo e quisesse transmitir a sua pureza em versão new wave. Tudo é despido, fresco, como um cotovelo de voz descansado num ribeirinho de música”.
Os Young Marble Giants nasceram em Cardiff, no País de Gales, em 1978, sendo contemporâneos dos Scritti Politti de Green Gartise, outro nativo da mesma cidade que também haveria de manter uma ligação à Rough Trade no arranque da década seguinte. A biografia oficial cita uns tais True Wheel como embrião do futuro projecto dos irmãos Moxham que se inspiraram nas Kouros, estátuas de mármore gregas antigas de jovens nobres nus e de majestosas dimensões (algumas com cerca de três metros) para criarem o seu nome e para, mais tarde, darem título ao único álbum que gravaram. Afinal de contas, a namorada de Stuart, Wendy, estudava arte e até haveria de fotografar a banda ao vivo e de criar designs para as capas dos Weekend, grupo que Alison formou logo após a extinção dos Young Marble Giants. Nada estranha, por isso mesmo, a referência directa a um remoto capítulo da história da arte. As crónicas garantem ainda que terá sido Smith a emprestar ao seu namorado Stuart o dinheiro para a aquisição da tão importante guitarra Rickenbacker 425, modelo do início dos anos 60 da icónica marca Californiana adorada por gente como os Beatles ou os Byrds.
Para lá do peculiar som que Stuart Moxham conseguia arrancar à sua guitarra — bastante processada e tocada quase sempre em modo stacatto e “muted” (uma técnica que implicava usar uma das suas mãos para abafar as vibrações das cordas), abordagem que resultava no que Simon Reynolds descreve em Rip It Up and Start Again: Postpunk 1978-1984 (Penguin, 2006) como “uma mistura estranha entre o tremolo ‘twangy’ dos riffs de Duane Eddy e a estaladiça guitarra ritmo de Steve Cropper” —, a identidade sónica dos Young Marble Giants devia igualmente uma boa parte da sua originalidade ao ondulante, melódico e bem destacado baixo do seu irmão Philip, que também tocava uma espécie de órgão de carrossel ou de velho cinema nalguns temas. Outro elemento distintivo era obtido com as bases percussivas de uma primitiva caixa de ritmos, contribuição de Peter Joyce, primo dos Moxhams que chegou a integrar a banda no início, engenheiro de telecomunicações com conhecimentos de electrónica que construiu o seu próprio sintetizador e a caixa de ritmos de onde o grupo extraía as bases que depois, em estúdio e ao vivo, eram tocadas a partir de um velho gravador mono de cassetes.
Esta teimosia dos irmãos Moxham em descartarem um baterista da sua particular fórmula — e, portanto, de se afastarem do cânone rock então vigente — valeu-lhes alguns dissabores quando em 1982 trouxeram a sua banda pós-YMG a Portugal para um concerto em Vilar de Mouros. Na altura, os Gist foram recebidos com apupos pelo público do pioneiro festival minhoto por terem em palco um gravador de bobines com bases pré-gravadas: “”Penso que alguém não gostou de algo e atirou-me uma coisa à cabeça. Fiquei muito frustrado e saí do palco. Depois voltei e continuámos o concerto”, recordou Stuart à Lusa em 2008, em vésperas de uma apresentação dos Young Marble Giants na Casa da Música no âmbito de uma pequena digressão de uma reformada versão da banda na sequência da reedição de Colossal Youth.
O elemento final e, talvez, o mais decisivo para a singular identidade musical dos Young Marble Giants era a voz de Alison Statton. Por soar tão diferente de tudo o resto que se escutava então na mais avançada pop britânica, a cantora viu-se distinguida pelos leitores do New Musical Express que lhe atribuíram o oitavo lugar na lista das melhores vozes de 1980, o que terá então levado ao desabafo do seu colega de banda: “Mas a Alison não é uma cantora. Ela é só alguém que canta. A Alison canta como se estivesse na paragem de autocarro ou algo do género. Uma cantora a sério canta com mais controlo”. No livro de entrevistas que se apresenta como “companheiro essencial de Rip It Up“, Totally Wired: Post-Punk Interviews and Overviews (Faber & Faber, 2009), Simon Reynolds recorda a Alison Statton esses pouco abonatórios comentários de Stuart Moxham: “Ele parecia não ter percebido o que era tão apelativo e invulgar no seu estilo”, comenta o jornalista, “a sua natural reserva e aparente falta de estilização”. A cantora, tão elegante como a voz que recordamos dos Young Marble Giants e das suas incursões musicais subsequentes nos Weekend ou nos duos posteriores Devine & Statton e Alison Statton & Spike (este último com uma vida mais longa que se traduziu aliás na edição em 2018 de Bimini Twist, quarto álbum da dupla desde Tidal Blues, lançado em 1994), responde a Reynolds, de forma desarmantemente honesta: “Eu admiro a voz treinada de um ‘cantor ou cantora a sério’, alguém que seja capaz de dar tudo e de quem nunca se duvida ser capaz de atingir qualquer nota que queira, mas eu sempre amei a exposição de uma voz humana nua com todas as suas fragilidades e a individualidade que vem com essa exposição, essa honestidade. Acrescenta uma certa tensão, mas também me leva a sentir uma maior ligação à pessoa que canta assim. De certa forma, sempre me senti muito exposta com uma voz desprovida de treino e esse tipo de comentários foi sempre doloroso.”
No já mencionado artigo do Se7e, MEC também reservava algumas palavras para a vocalista dos Young Marble Giants: “A voz de Alison é ténue, ligeira, quase inexistente. Mas é uma inexistência encantadora”, contrapunha, “porque não se esforça para interromper a sua passividade melancólica”. De facto, logo na faixa de abertura de Colossal Youth, por cima da marcação rítmica soluçante da guitarra de Stuart dividida em duas diferentes pistas, a voz de Alison casa-se da melhor maneira com o baixo de Phil que parece funcionar como as virgulas do texto que ela debita com aparente desinteresse blasé: “Searching for Mr. Right / Waiting up half the night / Feeling like I’ll be dead / Before I’m old / Teaching myself to be / The Young Untold / How can I hope to be / Someone for you to see?”
Quando a toda poderosa Domino em boa hora relançou Colossal Youth em 2007 adornando-o com um segundo CD de precioso material extra retirado do EP Test Card e do single “Final Day”, Michael Bracewell, em crítica na Wire, argumentava que o trio de Cardiff tinha criado “música de uma austeridade enigmática e sedutora a partir de um molde de pop minimal abundantemente atmosférico”. Tudo certo. A música dos Young Marble Giants parece ter resistido ao tempo precisamente por dele se ter desligado logo na primeira instância, com o grupo a tomar as suas influências — de Brian Eno aos Velvet Underground, de David Bowie e dos Kraftwerk a Neil Young — não como entalhes na sua própria identidade, mas como pontos de partida para derivas bastante pessoais e francamente destemidas tendo em conta a (aparentemente) curta amplitude dos seus recursos técnicos e musicais. Mas quando um simples ritmo cha-cha-cha de uma caixa de ritmos primitiva e um órgão que parece ter sido gravado dentro de uma caixa de sapatos com um walkman rende o belíssimo instrumental “The Taxi”, que poderia nos anos 90 ter sido incluído num álbum dos Broadcast ou Saint Etienne ou até Stereolab, começa-se a entender o mais profundo alcance de uma música que até alcançou um considerável sucesso na época, tendo vendido algumas dezenas de milhares de cópias em Inglaterra, ajudando a cimentar a posição da Rough Trade no então nascente panorama indie britânico.
Colossal Youth mereceu também uma edição portuguesa invulgarmente síncrona com a original através da Cliché Música inaugurando assim um curto, mas impressionantemente curado catálogo que ainda registou entradas para trabalhos de Material, The Raincoats, Pigbag, David Thomas dos Pere Ubu e Telectu. Para lá da prensagem portuguesa do único álbum dos Young Marble Giants, dos já citados ecos na imprensa nacional e do concerto dos Gist em Vilar de Mouros, pode ainda referir-se a edição portuguesa de Nipped in the Bud, compilação criada pela Rough Trade em 1984 com material dos Young Marble Giants, The Gist e Weekend e que por cá obteve carimbo editorial da Fundação Atlântica de Pedro Ayres Magalhães, Ricardo Camacho e… Miguel Esteves Cardoso, uma vez mais.
Em Journals, Kurt Cobain apontou os Young Marble Giants como uma das suas bandas favoritas ao lado dos Vaselines, facto que talvez ajude a explicar que as Hole de Courtney Love tenham regravado “Credit in the Straight World”, um dos esquálidos exercícios rock do alinhamento de Colossal Youth que soa ao que uma banda de tímidos adolescentes poderia ter gravado numa garagem para alimentar delírios de fama futura. Tão inocente e tão belo quanto isso. Que gente como os Magnetic Fields, Belle & Sebastian ou Galaxie 500 também tenha abordado o curto cancioneiro do trio de Cardiff é outro claro sinal do vasto alcance desta juventude colossal que teima em resguardar a sua frescura quarenta anos mais tarde. “Think of salad days”, canta Alison em “Salad Days”, precisamente. “They were folly and fun / They were good, they were young.” E assim permanecem.