Foto: Luís Espinheira
“A música de dança também está ligada ao rock e ao punk”
João Vieira voltou, este ano, aos discos a solo. Esperou por setembro para editar um dos trabalhos que irá, certamente, figurar naquelas enumerações das listas dos melhores álbuns do ano. Desenhado e criado com uma mistura de intuição e razão, Modern Dancing é marca o regresso do alter-ego de Vieira, White Haus, às composições originais com álbum que abraça os múltiplos géneros musicais que são a referência pessoal e criativa do músico. E no dia 18 de novembro apresenta Modern Dancing ao vivo no Passos Manuel, no Porto.
Como é que este disco começa a ser pensado? Aproveitaste o ritmo que trazias do primeiro disco?
Foi feito em duas fases muito diferentes: primeiro os dois singles, “This Is Heaven” e “Greatest Hits”, que são duas canções muito complexas e demoraram muitos meses até ficarem fechadas. Mas foram o ponto de partida para o trabalho. A minha ideia inicial até foi ir para estúdio gravar um outro EP, porque achei que o primeiro EP tinha corrido muito bem e que o disco, The White Haus Album (2014), não tinha tudo o mesmo impacto. Quando resolvi ir para estúdio, fiquei com a certeza de que ia querer gravar em condições e fazer crescer um bocadinho até para escapar ao registo assumidamente lo-fi. Quis ir gravar com músicos e neste trabalhei com o André Simão, com a Graciela Coelho e com o Gil Costa. A verdade é que a escrever e percebi que estavam a sair muitos temas que eu achava que eram bons. Quando falei com o Zé Nando Pimenta, nos estúdios da Meifumado, ele disse-me que ia sair dali e que vinha para Lisboa, por isso, provavelmente, seria o último disco que gravaria naquele estúdio. Já que íamos estar lá a gravar a sério, então por que não fazer um álbum?
Se o primeiro disco trazia um registo mais lo-fi, Modern Dancing traz um disco maior, mais complexo em termos instrumentais e pensado de raiz para banda?
Quando fiz o primeiro disco nem sequer tinha banda e nem sabia qual o formato que ia utilizar ao vivo. Tive que me adaptar para tocar ao vivo. Agora já tenho uma banda mais consistente, com quem tenho ensaiado e tocado. Acho que já se conseguem notar diferenças e a primeira é que em termos de produção, sou hoje muito mais produtor. O The White Haus Album tinha sido uma experiência para deitar cá para fora todas as ideias que tinha e queria fazer, por isso nota-se uma espécie de inocência. Este já é um trabalho muito mais bem produzido.
Queres dar-nos exemplos práticos?
O tema “Greatest Hits” demorou quase um ano a ser feito. É uma música muito complexa em termos de pormenores, mas todos os sons são pensados e muito trabalhados. Por outro lado, deixei as coisas repousar durante muito tempo para poder voltar a elas com outra frescura. Ao mesmo tempo, também tenho temas feitos numa tarde de rajada e que funcionam de uma forma incrível. Fui à procura de um equilíbrio entre o lado mais cerebral, mas ao mesmo tempo espontâneo.
“Quando resolvi ir para estúdio, fiquei com a certeza de que ia querer gravar em condições e fazer crescer um bocadinho até para escapar ao registo assumidamente lo-fi. Quis ir gravar com músicos”
A diversidade denotada logo nos dois singles, “This is Heaven” e “Greatest Hits”, são também um espelho daquilo que és enquanto criador e artista?
Não. Eu tenho quase 20 anos de DJ e de muitas referências musicais. Desde os primórdios do electro, passando pelo hip hop dos dias de hoje até techno. São referências muito abrangentes e não gosto de me fechar num só género musical.
E sem soar a estranho.
Pois, acho que não. Até porque os instrumentistas aqui são os mesmos, a cabeça que pensa também é a mesma. As letras, que é uma coisa muito importante neste disco, são também mais cuidadas.
Em que sentido?
Quis que tivessem mais humor. O disco tem coisas muito engraçadas e divertidas, meio disparatadas, mas que também são o meu universo. Mais de metade do disco tem um lado cómico. Os temas “Work” e “City Girls” são feitas com drum machine e sintetizadores, num universo completamente maluco, que adoro explorar.
“Fui à procura de um equilíbrio entre o lado mais cerebral, mas ao mesmo tempo espontâneo”
No primeiro disco levaste-te um bocadinho mais a sério?
O primeiro disco foi feito durante o período mais negro da minha vida até hoje. Não sei se isso se refletiu no disco, mas até nas fotos apareço com uma t-shirt preta um fundo cinzento. O próprio vídeo do single “Far From Everything” é de alguma nostalgia. Aqui houve um clique qualquer na minha cabeça que me fez querer explorar o lado divertido da coisa. São fases que se passam na vida! Eu sou uma pessoa muito inconstante (ri-se).
A sétima arte também influencia o teu trabalho? Os vídeos que tens apresentado para White Haus parecem denotar isso.
Eu trabalho sempre com o [realizador] Vasco Mendes. Às vezes quando estou a criar as músicas e estou a imaginar um vídeo para aquela música. Sei que não tenho budget para todos, mas se pudesse fazia um vídeo para cada música. Também tenho alguma cultura cinematográfica, vi muitos filmes e tenho realizadores que me influenciam imenso – caso do Noah Baumbach e do Woody Allen, que são os meus realizadores favoritos de gerações diferentes, com muita coisa em comum, como o lado de comédia no dia a dia de coisas mundanas. E o disco também é muito sobre o mundano: sem grandes histórias em hotéis e viagens porque essa não é a minha vida. Filmes como Frances Ah, do Noah, ou Annie Hall – o meu filme favorito de sempre – têm o lado do humor, mas também um lado triste e sentimental de uma relação que acaba. Eu vivo muito essas coisas: já tenho alguma vivência e tive muitas experiências e às vezes é bom recordar e falar delas, não de uma forma nostálgica, mas com coisas que aconteceram ao longo da vida. Hoje a minha vida é simples demais e por isso tenho que ir buscar outros mundos.
Queres explicar-nos o título do disco? O que é Modern Dancing?
Há uma letra de uma música chamada “Fight Fear”, a penúltima do álbum, que tem essa frase. Eu faço as letras de uma forma muito descontraída: escrevo, canto, faço melodias, tudo quase em simultâneo. E “Modern Dancing” faz-me recordar as bandas de new wave dos anos 80, como os Talking Heads ou os B52. É um nome divertido, que liga à new wave e à eletrónica. Eu costumo dizer que é um disco moderno, para dançar.
“Hoje em dia, quando vou a um festival, já costumo ir mais ver coisas mais ligadas à eletrónica – acabei por perder o gosto pelas bandas de guitarra”
Acho que foi o James Murphy, dos LCD Soundsystem, que disse que todos os DJs deviam passar um período da vida a tocar com uma banda de punk. E o jornalista do Públio, João Bonifácio, numa crítica a um concerto teu na última edição do Bons Sons, escreveu que é normal que os quarentões que cresceram com o punk acabem por se apaixonar pela música de dança. Concordas com estas ideias?
Completamente. Apaixonei-me pela música de dança quando ainda estava nos meus “vintes”. Comecei pelo rock, pelo punk, o indie e alternativa. Nos finais da década de 1990, início do milénio, passei para a música de dança. Hoje em dia, quando vou a um festival, já costumo ir mais ver coisas mais ligadas à eletrónica – acabei por perder o gosto pelas bandas de guitarra. Não sei se acontece isso com mais gente, só que como vi durante anos e anos concertos de guitarras, parece-me um conceito já esgotado. Mas a música de dança também está ligada ao rock e ao punk: no caso do pós-punk, com os Gang of Four ou Clash, o universo da 99 Records, os ESG, o Arthur Russell, Talking Heads, Blondie… há uma ligação entre o punk e a música de dança, tudo misturado. Os LCD Soundsystem, a DFA que vai buscar todos esses elementos. Há música que é muito dançável e transmite emoções, mas sem ser com os refrões e letras.
No teu Facebook descreves White House com uma frase: “Starts with a beat, ends with a bang”.
Porque é assim que eu crio. Começo com um beat e, normalmente, crio uma linha de baixo por cima – ou sintetizador. As músicas quase todas começam com um beat. O “bang” simboliza o terminar de forma explosiva. As músicas, normalmente, têm um crescendo, a começar mais suave a explodir no fim. Vou viajando, tentando desconstruir as regras e deixar-me levar para outros sítios. Mas a acabar de forma estrondosa.
Entrevista: Bruno Martins