Completam-se agora 20 anos sobre a edição de Homework, o álbum de estreia dos Daft Punk. Pretexto para evocarmos o french touch e os primórdios de um dos projectos referência da musica de dança.
Por Isilda Sanches
1997 foi um ano grande para a pop, ou melhor, para a música de dança se afirmar no universo pop. Isso é, aliás, válido para a toda ultima década do séc XX, mas sobretudo para a segunda metade dos anos 90, quando a club culture saiu das festas mais caóticas e das salas mais escuras e alastrou como uma epidemia. 1997 foi o ano em que saíram Dig Your Own Hole dos Chemical Brothers e Fat Of The Land dos Prodigy, dois discos que quebraram preconceitos e conquistaram adeptos junto dos rockers habitualmente avessos a soltar-se numa pista de dança, mas também o ano em que Roni Size, estrela do drum’n’bass (o género mais “perigoso” da musica de dança da altura) ganhou o Mercury Prize com New Forms, disco que assinou como Reprazent.
1997 foi ainda o ano em que saiu Homework, álbum de estreia de dois franceses com pouco mais de 20 anos que assinavam como Daft Punk.
Guy Manuel de Homem Christo (com adn Portugues) e Thomas Bangalter, filho de Daniel Vangarde, ou Daniel Bangalter, produtor de disco sound nos anos 70, chegaram a editar como Darlin’, mas a banda não vingou e, alegadamente depois de terem ido a uma rave na Eurodisney, em 1993, acabaram por se reinventar como dupla adoptando como nome uma expressão usada por um jornalista numa crítica aos Darlin: Daft Punk, qualquer coisa como “punk parvo” ou “punk imbecil”.
Os primeiros singles deixaram algumas marcas, as suficientes para que Homeworkfosse recebido com expectativa por quem não tinha consumido os primeiros lançamentos mas começava a ser contaminado pelo french touch – a corrente de house francesa que revelou nomes como Motorbass, St Germain, Étienne de Crécy, Stardust, Dimitri From Paris ou Bob Sinclar, e que seria uma dos grandes fenómenos da musica electrónica da ultima fase do século passado (e também deste, se pensarmos que Justice, por exemplo, são descendentes directos do french touch e em particular da dupla Christo/Bangalter). Os Daft Punk faziam parte da família house francesa mas na verdade já ocupavam um território só deles e, mesmo que na altura ainda não tivesse desenvolvido toda a parte conceptual que iria ser a sua imagem de marca, nomeadamente o uso dos capacetes, já pareciam ter um plano. Recorrendo aos instrumentos clássicos da musica que ouviam nos clubes que frequentavam como publico e Djs, os sintetizadores, caixas de ritmos, sequenciadores e outras máquinas que os produtores de techno de Detroit e house de Chicago começaram a usar uma década antes, misturando isso com a memória da música de dança, nomeadamente o disco sound, possibilitada pelas técnicas de sampling entretanto tornadas acessíveis, os Daft Punk criaram uma fórmula própria – poderíamos dizer mesmo que criaram um monstro!
Os Daft Punk de hoje têm um nível de sofisticação e estratégia a milhas do que tinham há 20 anos. Mais do que uma dupla de produtores de referência, parecem ter-se tornado em ícones culturais com poder para definir o que é cool ou não (atitude que têm desempenhado com refinada ironia). Seja como for, Homework continua a ser um disco espantoso na espontaneidade e eficácia com que incendeia as pistas de dança. Um disco que realmente fez e continua a fazer diferença.
As Canções
“Teachers”
“Around The World”
“Da Funk”
“Burnin”
“Revolution 909”
“Rollin and Scratchin”
Muitos antes da edm, da nu rave, do maximal, até dos 2manyDjs, os Daft Punk mostraram que era possível ser agressivo e pop ao mesmo tempo – muito embora “Rollin and Scratchin” não seja propriamente pop (nem sequer teve direito a video promocional) mas também não é exactamente agressivo, tem apenas extra músculo, é aquilo que costuma chamar-se um banger que sabe usar distorção e crescendo a seu favor. “Rollin and Scratchin” é pura energia mecânica, o tipo de musica que funcionava nas raves mais hardcore. Tornou-se também num assunto controverso no que diz respeito à forma como foi feito. No documentário Unchained, diz-se que Thomas Bangalter teria improvisado o som distorcido numa actuação ao vivo, brincando com a ligação dos auscultadores, mas os fãs mais geek garantem que esse som foi afinal feito com um sintetizador Juno 106 distorcido. Naturalmente os Daft Punk não esclarecem. Continua a ser dos momentos altos das raras actuações ao vivo de Daft Punk
“High Fidelity”
“High Fidelity” não é das musicas mais conhecidas de Homework mas é das mais french touch do álbum de estreia dos Daft Punk, no sentido em que tem todos os elementos que caracterizaram a cena house francesa dos anos 90 e da qual faziam também parte nomes como St Germain, Dimitri From Paris ou ètienne de Crécy. Em “High Fidelity” os Daft Punk brincam despudoradamente com as técnicas de sampling, esmigalham uma balada de Billy Joel e usam os destroços para fazer um hit de pista de dança.
A canção de Billy Joel é “Just The Way You Are” mas está irreconhecível depois do tratamento especial dos Daft Punk.
“Indo Silver Club”
“Indo Silver Club” foi lançado como single de duas partes antes da saída de Homework, mas a parte 2 foi recuperada no álbum. Há quem diga que é um tributo a um clube que existiu em Paris no início dos anos 90 chamado Silver Club, que daria origem ao Rex Club, uma das salas míticas do french touch e local onde os Daft Punk fizeram as primeiras apresentações, mas não há certezas disso. Certeza tem-se sobre o uso de um sample de “Hot Shot“, hit disco de Karen Young em 1978, cuja guitarra serve de base a “Indo Silver Club”, mais uma das faixas de Homework que se entrega sem pudor à pista de dança ancorado-se na musica dos anos 70. Muito antes de se falar em nu disco, os Daft Punk já procuravam matéria prima na musica de dança que o rock tinha decretado como desprezível em 1979, com a queima publica de discos de disco sound no Cominsky Park, um estádio de Baseball em Chicago… por causa disso, o disco foi um género maldito durante bastante tempo, mas os Daft Punk, como outros paralelamente e depois deles, pensaram de forma diferente e preferiram alimentar a chama da pista de dança a dar azo ao preconceito.