“A Rinconada é um local que não foi feito para ser habitado”
Depois de ter filmado Terra de Ninguém, em 2012, a realizadora Salomé Lamas descobriu outra localidade de “conflito”, onde é difícil definir “os limites”. Viajou até ao Peru, até bem próximo da fronteira com a Bolívia, depois de descobrir La Rinconada Y Cerro Lunar. Esta é considerada a cidade mais alta do mundo, a 5500 metros de altitude, onde habita uma população que trabalha nas minas de ouro. É uma cidade quase com lei própria. Com idiossincrasias muito específicas que a cineasta portuguesa desvenda neste “Eldorado XXI”, uma ficção fria e escura, que é também o espelho da própria Rinconada – uma terra de sonhos e pesadelos.
Depois de passar por vários festivais de cinema, o filme pode agora ser visto no Cinema Ideal, em Lisboa.
Como é que tiveste conhecimento desta história, daquela localidade?
Eldorado XXI foi um projeto que surgiu sensivelmente depois da longa metragem do Terra de Ninguém, que foi um filme que estreou no DocLisboa em 2012. Nós estávamos à espera da estreia internacional, em Berlim, em 2013, e o Luís Urbano, o produtor, tinha sugerido na altura, a escrita de uma curta-metragem de ficção. Eu tenho a tendência de ter vários projetos em vários estágios de desenvolvimento e acabei por apresentar um projeto documental, uma docuficção, um híbrido, centrado nesta localidade La Rinconada Y Cerro Lunar, no Peru. No fundo este filme vem como vêm uma série de outro filmes: de um aborrecimento, de uma hiperatividade e curiosidade pelo mundo. É um filme num território que reúne as características que criam um corpo de trabalho muito eclético, mas que são comuns a todos os sujeitos abordados nos filmes que tenho realizado até agora. São territórios ou personagens difíceis de precisar e de julgar porque não são só uma coisa. Todos partem do real, mas a minha ideia é projetar-me para este real. Ali sou um corpo estranho: com isto se cria uma fricção e a possibilidade de fazer um filme.
Mas como é que encontras a esta localidade?
Foi a ir à procura de um local que tenha estas características. Quando apresento este filme, pela primeira vez, à produção, é tudo um grande bluff. Tinho reunidas uma série de informações encontradas nos media. E havia poucos trabalhos realizados sobre a Rinconada. Apresentei um projeto híbrido que, à partida, seria um filme que seguia um mineiro, uma família, um argumento que seria retrabalhado com a família. Mas estamos a falar de uma localidade a 5500 metros de altitude, que existe única e exclusivamente porque existem minas de ouro. Na realidade da Rinconada, os mineiros trabalham sobre o sistema de “cachorreo” – em que trabalham 30 dias e no 31º dia podem ir à mina e o que encontram é seu. Este sistema gera grande polémica na América do Sul, mas não é incomum. Mas a Rinconada, nestas condições, ainda é mais dura: estamos a falar de minaria informal – ou ilegal – numa povoação de 80 mil habitantes, sem saneamento, que luta todos os dias para sobreviver. É um sistema de lotaria, com riscos de trabalho, com qualidade de vida para conseguir habitar aquela terra naturalmente. Os mineiros preferem este sistema de “cachorreo” porque é um trabalho perigoso, mas há muitas histórias de pessoas que conseguiram sair da miséria desta forma.
“Eu sempre afirmei que não estava a fazer um filme campanha nem um drama social: estou a expor uma realidade, mas que procura um espetador ativo, que não apresenta todas as várias dimensões do que é a Rinconada”
Há uma história que se ouve no início do filme de alguém que acredita que a mina de Rinconada traz fortuna a quem sofreu um dia. É como que este lugar tão difícil seja visto como uma oportunidade de mudar a vida. É esse o fascínio do ouro?
Vive-se nesse local nessas condições e vive-se assim, talvez no mundo inteiro, em mais duas ou três localidades. Estamos a falar de um local que não foi feito para ser habitado. Se estiveres em casa à noite e ouvires alguém a pedir por ajuda lá fora, tu não abres a tua porta. O médico atende uma comunidade flutuante de 80 mil mineiros com os problemas mais canónicos de toda a sociedade mineira: alcoolismo, prostituição e que vive numa altitude em que estamos em risco de edema pulmonar e cerebral, com crianças que nascem com deficiências respiratórias. Este médico afirma que existe uma diferença entre “urgência” e “emergência”: se fores esfaqueado – ou qualquer outra maleita – mas conseguires sobreviver até ao dia seguinte, eu não me vou levantar a meio da noite para te atender; se tiveres um parto ou uma outra situação em que seja um caso de vida ou de morte, eu atendo-te, presto-te os primeiros socorros, e envio-te numa ambulância – estrada abaixo – para o hospital mais próximo.
Que é onde?
Depende: estamos a lidar com estradas de montanha. Eu acho que fica a cinco horas de caminho, dependendo das condições, mas o médico também te diz que nessa situação de emergência o mais provável é falecer pelo caminho. Nós tínhamos dois motoristas, contratados pela produção local, que passado uma semana de filmagens afirmaram que o trabalho é demasiado perigoso. Não nos era permitido pernoitar na Rinconada, então fazíamos, diariamente, um percurso de duas horas de ida e de volta, mas não era só a estrada ser perigosa, por ser de montanha: são também as histórias e uma cultura de violência numa cidade sem lei. Tive que aceitar filmar à noite com polícias atrás de mim, com duas armas de um tamanho que eu nunca vi. E eu dizia: “Eu quero ir por ali” e eles diziam: “Vai, mas não vamos contigo”.
“Tive que aceitar filmar à noite com polícias atrás de mim, com duas armas de um tamanho que eu nunca vi. E eu dizia: ‘Eu quero ir por ali’ e eles diziam: ‘Vai, mas não vamos contigo’”
Tiveste de criar uma empatia grande com a população de Rinconada ao ponto para conseguires fazer um trabalho tão por dentro.
Sim e não. A Rinconada é um local que é gerido por códigos que não são os de uma sociedade contemporânea. Ou se calhar são os mesmos, mas expostos de uma forma radicalmente diferente: se vais a casa de um amigo e oferece-te o jantar e tu, hipoteticamente, levas uma cerveja. Há coisas que são trocas, mas que não exigem uma remuneração. Tudo na Rinconada exige uma remuneração, ou seja, eu não sei se a palavra “amigo” não existe ou se a palavra “amigo” é apenas mais explícita e nós, aqui, é que somos mais cínicos na medida em que é tudo uma relação de poder. As nossas amizades também são relações de interesse, poder e de favores. Mas ali existe, muito claramente, uma moeda de câmbio.
O que é que é um “amigo” na Rinconada?
Normalmente são pessoas que vêm da mesma origem geográfica e as pessoas tentam unir-se dessa forma. E eu não sei até que ponto essa questão teria que ser colocada àquelas pessoas, mas é muito comum ouvires que não é possível confiar em ninguém. Ninguém ouviu nada e ninguém sabe de nada. Só sabes de ti próprio: estás ali o mínimo de tempo possível. Vais com a ideia de ficar uma semana e de repente uma semana transformam-se em 20 anos. É uma vida muito estranha.
Ficaste com amigos na Rinconada?
Ficámos. Tivemos um casal que se foi despedir de nós em Juliaca, ao aeroporto. Um dia gostaria de voltar à Rinconada, mas não gostaria de reencontrar lá aquelas pessoas. Gostava de as reencontrar noutros locais do Peru, porque ninguém quer estar ali.
Quanto tempo passaste lá?
Estivemos lá, na réperage, em 2014, para perceber se o filme era possível, durante dez dias. E na rodagem foram cinco semanas.
Como é a passagem do tempo nesta mina? Quanto tempo sentiste que passou nessas cinco semanas?
Essas cinco semanas saturaram a equipa que estava à procura de um filme. A saturação deve-se ao local, mas também à indefinição do filme que estávamos a fazer.
Não sabias naquilo em que é que o filme iria tornar-se?
Sabia, mas todos os dias o filme era diferente. Todos os dias o filme que eu idealizava não era possível. Toda a gente sabia que o projeto era um bocadinho atípico, mas ninguém estava à espera que o plano de rodagem mudasse tanto. Ninguém estava à espera que fosse tanto sem chão, sem rede. Então tens uma equipa que vai deitar-se, todos os dias, sem saber o que vai acontecer no dia seguinte – e que a viagem de quase três horas até à Rinconada poderia ser em vão.
Foi preciso saber fazer uma grande gestão emocional da equipa?
Sim. A equipa acabou de rastos. As refeições já eram feitas em equipa, mas ninguém falava com ninguém. Mas mal chegámos a Lima, as pessoas voltaram a abrir-se. Foram situações complicadas de rodagem, mas nada se compara à vida daquelas pessoas dali. Essa questão de estarmos a viver todos os dias com aquela comunidade e os elos de amizade que se iam estabelecendo também colocavam as nossas mágoas e a nossa personalidade – mais ou menos mimada – em cheque e em perspetiva. O tempo na Rinconada foi sempre um tempo de luta, procura e ansiedade: o tempo pesava, mas também parecia escapar ao filme. E era preciso fazer o melhor filme, o mais justo: estamos numa comunidade muito estigmatizada pelos media, em que há quase uma alergia face aos jornalistas que vão ali e retratam o pior da comunidade.
Sentiste a necessidade de encontrar um sentido de justiça no filme?
O cinema de não-ficção é um trabalho sujo que alguém tem que fazer, mas que deve ser um trabalho que procura um equilíbrio de poder. Quando fui a Lima apresentar o filme, foi extremamente gratificante ter um professor de engenharia mineira a querer comprar os direitos educativos do filme e a ter uma cópia para poder mostrar nas aulas. Eu sempre afirmei que não estava a fazer um filme campanha nem um drama social: estou a expor uma realidade, mas que procura um espetador ativo, que não apresenta todas as várias dimensões do que é a Rinconada. Em Lima, a produção local contou-me que o National Geographic queria filmar a Rinconada, mas o que lhes foi pedido foi “get me a pregnant payequera”. Não bastava mostrar a senhora que trabalha 24 sobre 24 à procura de pozinhos dourados: tinha também que estar grávida. E isso para mim é pornografia. Os filmes não vão mudar nada, principalmente aqueles que não têm um statement muito claro. Se calhar, nunca farei filmes assim, porque muitas vezes não é da minha responsabilidade e porque seria prepotente da minha parte estar a colocar-me num ou noutro lado da equação. Interessa-me mais o diálogo com o espetador, deitar as cartas sobre a mesa.
Então que vai à procura do sentido de justiça no teu filme?
Sim. E ao mesmo tempo faço filmes para mostrar locais com conflito, com limites difíceis de definir. Faço filmes para os poder partilhar com os outros, para os dar àqueles que podem ser agentes de mudança, ferramentas para o fazer. Despertar o interesse e a curiosidade. Apontar o dedo e dizer: “aquilo passa-se ali, mas não me cabe a mim resolver”.
“Eu não consigo distinguir muito bem o trabalho que faço daquilo que sou, a vida íntima da profissional. É uma espécie de hiperatividade que está muito ligada a uma adrenalina, a uma curiosidade de habitar outros locais quase como um colecionador que vai colecionando experiências”
Falaste de mulheres grávidas: também há gestação em La Rinconada?
Sim, mas não é aconselhado – clinicamente.
Há escolas?
Há escolas na Rinconada e estivemos em várias. Existem bastantes escolas, mesmo havendo muito trabalho infantil e mesmo que não seja permitido a jovens de 16 anos entrar na mina, é comum ver crianças a “payaquear” [procurar ouro] junto das mães. É muito comum haver crianças a atender em lojas e negócios locais. Mas até há, creio, uma escola de ensino secundário. A taxa de escolaridade e alfabetização não é assim tão baixa: há filhos de muitas destas pessoas que vão para o ensino superior.
De que forma é que este trabalho artístico nas chamadas zonas de risco tem-te feito crescer? Alimentas-te disto em termos pessoais?
Seguramente. Eu não consigo distinguir muito bem o trabalho que faço daquilo que sou, a vida íntima da profissional. É uma espécie de hiperatividade que está muito ligada a uma adernalina, a uma curiosidade de habitar outros locais quase como um colecionador que vai colecionando experiências. Essas experiências vão moldando a perceção sobre a realidade e preparando para a próxima experiência. Isto é um caminho que não tem final nem objetivo: é uma viagem solitária, mas ao mesmo tempo é acompanhada porque não faço filmes sozinha.