Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
The Raincoats – Fairytale in the supermarket
“Se não fosse pelo privilégio de pôr a tocar aquela cópia gasta do primeiro álbum das Raincoats, teria tido muito poucos momentos de paz”, escreveu Kurt Cobain, recordando um período de depressão na adolescência. “Pareciam pessoas banais a tocar música extraordinária. Tinham confiança suficiente para serem vulneráveis e para serem elas mesmas sem ter que que vestir o manto da agressividade masculina do rock e punk rock, ou o da típica mulher como sex-symbol ‘avec’ ironia e sensacionalismo”, elogiou Kim Gordon, dos Sonic Youth.
Falamos do punk e falamos da revolução musical e da atitude activista. Falamos do quebrar de barreiras e do reencontro do rock’n’roll com os desejos, frustrações e irritações da vida de todos os dias. Falamos de punk e não falamos tanto quando deveríamos de outra barreira que ele ajudou a demolir. Sai um tiro no porta-aviões do rock’n’roll enquanto terreno fértil para o machismo e para a misoginia – fazia parte da (má) tradição, apesar de Wanda Jackson, de Janis Joplin, Grace Slick, Suzi Quatro ou das Runaways.
O que fazia das Raincoats excepcionais era fazerem rock’n’roll contra a tradição rock’n’roll – querem mais punk que isso? Formadas em 1977 pela portuguesa Ana da Silva e pela inglesa Gina Birch, ambas estudantes de Artes em Londres, a que se juntaria numa fase inicial Palmolive, baterista das Slits, e a violinista Vicky Aspinall, as Raincoats inventavam harmonias de voz tão estranhas quanto delicadas, encaminhavam melodias simples para atalhos inesperados e corroíam o brilho pop das canções com um violino nada ortodoxo, à Velvet Underground. Sabiam que a imaginação era mais importante que a perfeição da execução técnica e que havia muito mundo para explorar: dos Kinks kinky de “Lola” ao ska, da folk britânica à canção como performance artística. Muitos críticos viram-nas e olharam-nas de lado, pobres hereges que nada percebiam do que estava a acontecer.
Elas sabiam muito bem. Metiam-se em digressão com as Kleenex, banda suiça também importante nesta história da igualdade de género que o punk propiciou e recebiam elogios de Johnny Rotten, que recomendava que não se perdesse tempo a comentar o facto de serem mulheres, mas sim a maravilha que era a música. Algures em Nova Iorque, Kim Gordon ouvia atentamente e inspirava-se. Perdido num sotão em Aberdeen, nos arredores de Seattle, o adolescente Kurt Cobain encontrava nelas um refúgio. Eles sim, sabiam muito bem. Enquanto as Raincoats cantavam contos de fadas em supermercados (“Farytale in the supermarket” foi o primeiro single, editado pela Rough Trade em 1979), já o torpedo estava a caminho do alvo. Porta-aviões ao fundo.
Ficha Técnica:
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso