Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
Black Flag – “Rise Above”
É o ponto de partida perfeito para a violência física e psicológica da viagem que se seguirá. Vemos Martin Sheen às voltas no quarto quente e mal iluminado. Ele é o homem atormentado cuja profundidade dos tormentos conheceremos nas horas seguintes. Sheen frente a frente consigo mesmo no espelho que esmurrará, Sheen a espalhar pela cama o sangue que lhe corre da ferida aberta no punho. Temos que ter cuidado com os nossos inimigos, não é?
Quando foi editado “Damaged”, o primeiro longa-duração dos Black Flag, “Apocalypse Now” – é esse o filme em que Martin Sheen esmurra o espelho – já estreara há dois anos. O mundo era outro. Já terminara a guerra do Vietname filmada por Francis Ford Coppola e Jim Morrison, a voz da banda-sonora que acompanha a cena de Martin Sheen, já morrera há dez anos. Porém, olhamos para a capa de “Damaged” e a violência e intensidade é a mesma: Henry Rollins a esmurrar o espelho que o reflecte enquanto sangue lhe escorre do punho. Os tempos eram outros, mas os inimigos não se vão embora facilmente, pois não? Não, mas surgem outras formas de lidar com eles, de os confrontar, de os expor perante todos.
Os californianos Black Flag, banda charneira do hardcore americano e de qualquer outra latitude, mostraram-no de forma exemplar. Liderados pelo guitarrista Greg Ginn e inspirados pela primeira passagem dos Ramones por Los Angeles, em 1976, criaram a sua própria manifestação punk, onde cabia o peso grave do metal (adoravam os Black Sabbath) e onde a velocidade do ritmo e as mudanças de tempo nas canções pareciam ser representação perfeita da neurose que os corroía e da vontade de atacar, sem contemplações, a existência burguesa alienada que abominavam.
Neles, a ética do-it-yourself era para levar à letra e, por isso, tocavam em todo e qualquer lugar que os recebesse, das salas de concertos a parques de piquenique. Também por isso, aliavam a intervenção musical à acção artística exposta nos posters de Raymond Pettibon, irmão de Greg Ginn e autor de cartazes onde humor e insurrecção anti-autoritária caminhavam de mãos dadas.
Em 1981, quando já eram banda de culto em crescimento acelerado, todas as peças se reuniram com a chegada de Henry Rollins, que saltou da plateia, onde era mais um fã, para o estúdio e para os palcos. É ele que vemos a esmurrar o espelho na capa de “Damaged”. É ele, acompanhado por Greg Ginn, pelo guitarrista Dez Cadena, pelo baixista Chuck Dukowski e por Robo, o baterista, que dá voz ao desejo de insubmissão, à sátira do conformismo e à violenta sensação de alienação que atravessa todo o álbum.
“Damaged” é um daqueles discos que parecem representar um momento zero. Em 1981 já existia o punk, naturalmente, e o hardcore já começara a anunciar-se. Mas é com “Damaged” que parece cristalizar uma nova linguagem. Era música negra e zangada, rápida e convulsiva, ameaçadora para os ouvidos de pais conservadores, libertadora para o corpo e ouvidos de putos que percebiam os tempos mais claramente que os pais. “We are tired of your abuse / Try to stop us, it’s no use”, cantavam. “Rise above”, uma, “rise above”, duas, “rise above”, três. O vidro estilhaça, o sangue corre pelo pulso abaixo.
Ficha Técnica:
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso