Em 1984, ano em que saiu Stop Making Sense, o filme-concerto dos Talking Heads, a banda de David Byrne já era grande. Não ainda na escala verdadeiramente galáctica a que ser “grande” equivale hoje em dia (e que os Talking Heads seriam de facto, se ainda existissem), mas eram uma banda de culto com seguidores fiéis e um estatuto imbatível no circuito mais arty. Na fase pós-punk, numa época em que Nova Iorque fervilhava de ideias, os Talking Heads chegaram ao mainstream com música ousada, pop desafiante, contaminada por funk (Bernie Worrell, dos Funkadelic, faz parte da banda em Stop Making Sense, tal como Alex Weir, dos Brothers Jackson), soul, afrobeat, existencialismo pós-moderno, refinada ironia, talento provocatório e apurado sentido estético. A banda surgira em 1977, mantinha um ritmo regular de edição de álbuns e já tinha uma trilogia com Brian Eno (More Songs About Buildings and Food, Fear of Music e Remain in Light), produtor que, mais ou menos na mesma altura, também ajudava Bowie a encontrar novos caminhos em Berlim. Em 1984, os Talking Heads tinham um disco duplo ao vivo, meia dúzia de álbuns de originais, hits como “Psycho Killer”, “Take Me to the River” (original de Al Green), “Once in a Lifetime” ou “Burning Down the House”, todos obrigatórios nos concorridos concertos da banda.
Além disso, estavam bem entrosados no circuito artístico de Nova Iorque, e o próprio David Byrne interessava-se por cinema ao ponto de já ter realizado alguns dos icónicos videoclipes da banda (em 1986, realizaria o filme True Stories). Quando, como conta Chris Frantz, Jonathan Demme apareceu no backstage no final de um espetáculo a dizer que gostava de fazer um filme com eles, não houve grandes dúvidas. Pago pelos próprios, Stop Making Sense é hoje considerado o melhor filme-concerto alguma vez feito. Jonathan Demme, também ele parte dos agitadores artísticos que faziam de Nova Iorque uma cidade culturalmente tão rica no início dos anos 80, já era conhecido, mas ainda nem tinha realizado Selvagem e Perigosa (1986) e estava a quase dez anos de O Silêncio dos Inocentes (1991). O olhar é seu, ele filmou três concertos da banda que uniu num só, mas tudo o que se passa em palco é responsabilidade dos Talking Heads: a encenação e a coreografia, o fato extralargo de David Byrne, a energia infecciosa e a conexão em palco, tudo isso é a magia de uma banda que a câmara captou e o trabalho de montagem manteve coeso e fiel à verdade do palco. O filme tornou-se mítico. As pessoas iam ao cinema e comportavam-se como se estivessem lá, na sala onde tudo aconteceu, e a sua edição em formatos domésticos só veio transportar isso para as salas de estar de cada um. Hoje, com os Talking Heads reformados, mas uma série considerável das tais estrelas galácticas a disputar atenção, ver Stop Making Sense também é perceber onde está a descendência dos Talking Heads — e ela é muita.
Falámos ao telefone com Chris Frantz, baterista que fundou os Talking Heads com David Byrne, sobre tudo isso, mas também sobre a cena de Nova Iorque na fase pós-punk e sobre os Tom Tom Club, a banda que formou com a esposa, Tina Weymouth, baixista dos Talking Heads, quando foi preciso “pôr o pão na mesa”, e que fez uma das primeiras aproximações brancas ao então ainda chamado rap: “Wordy Rappinghood” (1981). Nota-se nas palavras de Chris Frantz algum ressentimento por Byrne não aceitar fazer nada com o resto da banda (Chris, Tina e Jerry chegaram a gravar um disco como The Heads — No Talking, Just Head, em 1996 —, mas Byrne agiu judicialmente para impedir a utilização do nome Talking Heads e demarcou-se do resto da banda), mas percebem-se bem o entusiasmo e o amor que continua a ter pela música. Os Tom Tom Club continuam ativos, lançaram Downtown Rockers, em 2012, e continuam a tocar ao vivo regularmente, coisa que os Talking Heads não fazem desde 1984, ano em que saiu Stop Making Sense. É verdade que cantaram alguns hits na cerimónia de entrada para o Rock & Roll Hall of Fame, em 2002, mas Byrne deixou claro que nunca haveria digressão. Stop Making Sense é também a única maneira de ver a banda no que é considerado o momento alto (e final) da sua carreira.
Que memórias tem de Stop Making Sense? Quem teve a ideia de fazer um filme do concerto?
Nós andávamos a filmar os concertos porque queríamos perceber como seria possível melhorar a nossa performance ou o espetáculo em si e quando vimos as imagens pensámos “isto era capaz de dar um bom filme”. Por coincidência, mais ou menos na mesma época, Jonathan Demme, o realizador, foi ter connosco ao backstage e disse qualquer coisa como “oh, vocês são tão cinemáticos, adorava fazer um filme”… Nós já tínhamos visto alguns filmes do Jonathan, nomeadamente Melvin e Howard, o filme que ele fez sobre o Howard Hughes e o tipo interessante que supostamente o resgatou de um acidente de mota no deserto, e adorámos o seu entusiasmo e também a sua estética, porque ele percebeu muito bem o que estávamos a fazer… Pagámos o filme…
É então verdade que pagaram o filme com o vosso dinheiro.
Sim! O filme é nosso. (risos)
Seria de esperar que, tratando-se dos Talking Heads, houvesse quem estivesse disposto a financiar o filme…
Tínhamos um manager muito bom que sempre nos disse que era melhor sermos nós a pagar tudo porque assim poderíamos controlar as coisas, todos os direitos. Na verdade, era suposto filmarmos duas noites, e acabámos por filmar três, por isso tivemos de ir pedir dinheiro emprestado à Warner Bros. para a última noite, mas rapidamente devolvemos o que pedimos. O filme, todos os direitos, são nossos.
Jonathan Demme fez algum tipo de direção de banda/atores em palco? Houve algumas instruções?
As únicas instruções que deu foi para não olharmos para a câmara e não metermos o dedo no nariz. (risos)
O facto de ele estar a filmar interferiu com a vossa dinâmica em palco de alguma maneira?
A primeira noite de filmagens foi um pouco estranha, mas nós já éramos músicos experientes e estávamos habituados a ter câmaras e luzes brilhantes à nossa volta, portanto, se alguma coisa mudou por estarmos a ser filmados, foi o concerto ter sido provavelmente melhor do que o habitual. (risos)
Porque queriam exibir-se para as câmaras?
Sim. (risos)
Ainda vê o filme, atualmente, com a Tina? Provavelmente, têm as vossas próprias memórias dos acontecimentos…
Já não vejo o filme há alguns meses. Acho que o vimos no inverno passado, em Blu-ray, e foi para ver se o som tinha melhorado, e melhorou! Mas o comentário que fizemos foi: “Uau! Que banda tão boa!” Na verdade, é incrível que o filme continue a parecer-nos tão excitante como parecia quando o fizemos, continua a perceber-se o maravilhoso entrosamento entre os músicos, e é um espetáculo ao vivo ao nível dos melhores…
E sabiam que, na altura, as pessoas que iam ver o filme ao cinema comportavam-se como se estivessem de facto numa sala de concertos, dançavam e cantavam…
Sim, ouvi essas histórias, e continuam a acontecer, porque, nas sessões da meia-noite que fazem nos cinemas perto dos câmpus universitários, as pessoas continuam a comportar-se dessa maneira. Fico muito feliz por isso!
Muita coisa mudou na música e na indústria desde os Talking Heads, tanto na edição de discos como nos espetáculos ao vivo. Como vê a situação atual? A realidade é a mesma que se vivia nos anos 80, por exemplo, ou estamos num momento completamente diferente?
Continua a ser música (risos), mas o negócio mudou. Antes de mais, a maior parte das pessoas com quem trabalhámos no tempo dos Talking Heads está reformada ou morta… O Jonathan Demme já não está connosco, o nosso manager na altura também não, tal como o nosso agente… Todas as pessoas que na altura trabalhavam na Warner Bros. já não estão lá… O Seymor Stein [o patrão da Sire que assinou contrato com os Talking Heads e bandas como Ramones] continua vivo e de boa saúde! (risos) Mas, na verdade, há toda uma nova geração de pessoas, e mudou muita coisa… Nós, eu e a Tina, continuamos a fazer música e estamos muito felizes por isso, mas não temos quaisquer expectativas em relação ao sucesso; fazemo-lo só por amor… E acho que essa é a razão por que muita gente faz música hoje em dia.
O advento das tecnologias digitais diminuiu muito a hipótese de se viver decentemente da música… Diria que será preciso ter um emprego, um day job, para se ser músico atualmente?
Provavelmente, sim… Ou um night job. (risos)
E os espetáculos ao vivo? Hoje em dia, há muitos festivais grandes, mas também começa a ser frequente o streaming online, o que nos faz voltar a Stop Making Sense, porque se trata, no fundo, de ver uma filmagem a que se reage como se estivéssemos lá, onde e quando acontece ou aconteceu.
Não sei… Os festivais continuam a ser a melhor forma de ganhar algum dinheiro; sobre o streaming online, não sei, nunca experimentámos de facto. De qualquer modo, os Talking Heads já não tocam ao vivo há bastante tempo (risos), infelizmente…
Alguma vez pensaram em voltar?
Bem, há sempre esse tipo de conversa, e já recebemos propostas magníficas de alguns festivais, mas o nosso vocalista até agora não aceitou fazer nada com o resto da banda… O que é uma pena, mas ele é assim, nós sabemos, vivemos com isso durante muito tempo… (suspiro)
O som dos Talking Heads e de muitas bandas do pós-punk, no wave, punk-funk continua a ser emulado por grandes bandas indie hoje em dia. Reconhece isso? Reconhece, por exemplo, a sua forma de tocar bateria em bandas de hoje?
Sim, claro. As primeiras que me ocorrem são Arcade Fire e LCD Soundsystem. É particularmente óbvio nesse dois casos, mas há outros. Os Arcade Fire têm uma canção nova, chamada “Electric Blue”, que eu acho muito influenciada pelos Tom Tom Club, e eu e a Tina ficamos sempre felizes com isso, porque significa que o tempo que passámos com os Talking Heads valeu bem a pena. (risos) Acho que todos os artistas gostam de ter um bom legado.
E como era Nova Iorque quando surgiram os Talking Heads? Tem-se a ideia de que se vivia uma época muito criativa e livre, em que toda a gente queria fazer coisas e estava aberta a vários géneros e linguagens. Era de facto assim?
Era, sim, claro! Havia música no CBGB, mas também havia música no The Kitchen, no Soho, com o Philip Glass e o Steve Reich, o John Cage… E, depois de anos a dizerem “a pintura morreu”, havia uma cena de pintura muito forte, com gente como o Jean-Michel Basquiat, que era o meu preferido. E havia a Laurie Anderson, e o Lou Reed ainda tinha ideias novas, o Andy Wharol ainda era pertinente. Também havia realizadores como o Jim Jarmusch… Se fosses ao CBGB, era provável que tropeçasses nesta gente toda na mesma noite! Ou ao Mudd Club. O Mudd Club era um viveiro de artes, moda, design, literatura… Foi um momento muito excitante para nós. Agora, vivemos fora de Nova Iorque, no Connecticut, mas ainda voltamos lá regularmente…
Continua igual?
Não está igual, mas continua extraordinária.
Ainda sobre a fervilhante cena de Nova Iorque naquela altura: a ideia de que todos os géneros eram permitidos é real? Não havia de facto preconceitos de estilo?
Lembro-me de que, quando o hip hop começou a aparecer, na altura chamava-se rap, havia muitos músicos na cena punk, new e no wave que olhavam com desdém para aquilo tudo. Mas também havia músicos de soul e R&B que faziam o mesmo! “Isso é rap, é terrível!” Por acaso, eu até acho que era bastante bom; agora é que é terrível! (risos) Na altura, achei que era muito fixe, e nós, Tom Tom Club, e a Debbie Harry (Blondie) percebemos isso, mas nem toda a gente o fez. Os Tom Tom Club são muito influenciados pelo hip hop!
“Wordy Rappinghood” é um exemplo claro.
Sim!
É verdade que os Tom Tom Club surgiram porque tanto o David Byrne como o Jerry Harrison estavam a fazer outras coisas, e vocês resolveram criar também o vosso próprio projeto?
Tínhamos de pôr o pão na mesa e não podíamos depender do David para isso. Basicamente, o nosso contabilista disse: “Têm dois mil dólares na conta. Têm de fazer alguma coisa.” Os Talking Heads não tinham feito muito dinheiro, naquela altura nem sequer tínhamos um disco de ouro, ainda. Tom Tom Club foi o primeiro disco de ouro que eu e a Tina recebemos! Por isso, respondendo à pergunta, fizemos os Tom Tom Club por necessidade, mas ainda bem!
E continua a soar tão fresco!
Obrigado por reparar. (risos)
É um baterista casado com uma baixista. O ritmo é a coisa mais importante?
Tudo é importante no que toca a música. Às vezes, a pessoa que te deu uma ideia é muito importante, mas, sim, se o baterista e o baixista não se entenderem, não vão fazer música muito interessante. (risos)
Depois da antestreia no Lux Frágil, Stop Making Sense estará em reposição no Cinema Ideal, em Lisboa, e no Cinema Trindade, no Porto, a partir de 31 de agosto.
Entrevista: Isilda Sanches