“As coisas puristas não nos interessam”
Patrícia Relvas e Roberto Afonso são os Lavoisier. Antes de serem uma banda já eram um casal que, com uma emigração para Berlim, em 2009, decidiu avançar com a criação de um projeto musical. Os Lavoisier pegam na tradição musical portuguesa e recriam-na. Como dizem as leis de Conservação de Massas — também conhecida como Lei de Lavoisier — “tudo se transforma”. É a premissa da dupla: transformar, mas com respeitinho. Às vezes a partir a loiça, porque uma guitarra elétrica assim permite. E entregam-nos o segundo disco, É Teu, para escuta atenta.
É teu é o segundo disco dos Lavoisier, depois de Projeto 675. É uma entrega vossa para quem?
Patrícia Relvas [P.R.] — Bom, para quem estiver disponível para aceitar (risos). Mas vem com essa premissa de partilhar. Lavoisier passa por aí: acreditar muito mais na transformação, na partilha e não na posse.
Roberto Afonso [R.A.] — Mas o É Teu também não quer dizer que não seja nosso, meu e da Patrícia. é um trabalho que foi feito também com a grande premissa de revogar um imaginário coletivo onde nós possamos partilhar poemas cantados, música popular portuguesa e algumas novas músicas que fomos nós que escrevemos a letra, mas que também não sentimos que somos donos delas. Gostamos de pensar que podemos consumir este álbum, culturalmente falando, numa mesa sem esquinas, sem etnias, numa partilha muito bonita e especial
As leis de Lavoisier, que, de forma sintetizada dizem que “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, dão uma grande liberdade ao projeto e, sobretudo, àquilo que querem fazer.
R.A. — Nós costumamos dizer que há a dualidade “liberdade/responsabilidade” (risos). O conceito de “na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma” poderia proteger-nos e dar a ideia de fazermos o que quiséssemos. E fazêmo-lo, mas tentamos fazer com um sentido muito grande de responsabilidade…
“Lembro-me que tínhamos um MP3 onde estava a discografia dos Beatles e a do Giacometti… e era muito interessante como se cruzavam”
Afinal de contas, estamos a falar de uma lei!
R.A. — Exatamente! (risos) Mas essa responsabilidade científica (sorri) inerente às músicas vem no sentido de não ofendê-las, especialmente a música popular portuguesa. Sentimos uma grande responsabilidade em não diminuir os temas que escolhemos para musicar. É mais para que as possamos ouvir com referências diferentes: toco guitarra elétrica, mas sempre sem diminuir a essência do tema popular.
O cancioneiro popular português faz parte da vossa génese enquanto ouvintes de música?
P.R. — Na verdade não crescemos com isso, bem pelo contrário. Somos filhos dos anos 1980, temos as referências anglo-saxónicas. E toda esta curiosidade apareceu quando fomos morar para Berlim: tivemos muito interesse em perceber o que era isto de um passado; de uma tradição oral; ou de uma música popular que desconhecíamos. A obra do Michel Giacometti e os livros do Fernando Lopes Graça despertaram-nos muito interesse e uma necessidade de descobrir o que era isto do “povo que canta”.
Foi um espírito de emigrante, de levar um pedacinho de Portugal para Berlim, que vos ajudou a descobrir melhor este lado da música tradicional portuguesa. Quando é que se deu essa mudança para Berlim?
R.A. — Foi em Setembro de 2009 e durou até junho de 2013. Foram quatro anos.
O que fizeram nesses quatro anos?
R.A. — Nós tínhamos acabado o curso superior — eu de Som e Imagem e a Patrícia de Cerâmica e Vidro — e queríamos mesmo experimentar viver noutro país. De facto, foi muito importante estar em Berlim: ainda que o início tenha sido mesmo muito difícil: fomos em setembro, no início de um inverno, e Berlim recebeu-nos muito friamente (risos).
P.R — Com 25 graus negativos!
R.A. — Era a cidade a perguntar-nos logo ali se queríamos mesmo ficar por ali. Tivemos uns part-times, meio chatos, coisas meio fabril, para termos o apoio financeiro.
Mas a ideia foi logo ir fazer música?
R.A. — Não foi assim tão claro e definido. Mas Lavoisier começa lá, de facto.
P.R. — Tínhamos um projeto musical nas Caldas da Rainha, antes: éramos uns sete ou oito e quando fomos para Berlim percebemos que podíamos fazer qualquer coisa só os dois e que a coisa podia ter um outro tempo.
“Nós gostamos de criar dinâmicas, ambientes em que estamos a tocar e a cantar baixinho e de repente dão-se explosões. E nisso a guitarra elétrica permite que as dinâmicas sejam muito grandes”
Começou primeiro a vossa relação pessoal, enquanto casal.
R.A. — Sim, nós já nos conhecemos há muito tempo. Desde os 12 ou 13 anos estudámos juntos do 7º ao 9º.
P.R. — Depois separámo-nos, voltámos a encontrar-nos com 18 ou 19 anos e agora aqui estamos.
É impossível escapar ao destino. Quando começaram a fazer nascer os Lavoisier houve logo a vontade de pegar nesta herança cultural da canção portuguesa?
P.R. — Sim, foi mesmo lá fora que todas as dúvidas nos surgiram: fazer música, sim, mas para quê? Para quem? Porquê? Depois foi esse percurso de conhecer melhor as nossas raízes, de onde vínhamos, todo o saudosismo que faz parte de uma vida emigrante! (risos) Mas a nível artístico foi muito interessante para nos encontrarmos. Claro que fomos muito beber ao tropicalismo e conhecer esse movimento, de muitas coisas nos porem à vontade no sentido de tocarmos guitarra elétrica, podermos fazer uma música como “Sra. do Almurtão”… as coisas puristas não nos interessam e temos essa liberdade. Os tropicalistas, nesse sentido, com esse movimento, deixam as coisas muito claras: somos filhos dos dias de hoje e não há problema nenhum em sermos portugueses em Berlim a fazer música popular portuguesa com uma guitarra elétrica.
R.A. — E se quiséssemos ir a outro tipo de música também iríamos. A génese do tropicalismo, em que estão várias vertentes artísticas, iam todas buscar ideias ao manifesto antropofágico do Oswald de Andrade, de 1922, que era a aglomeração, a digestão. E nessa digestão também existe identidade: não é por nascermos em território português que a nossa identidade é portuguesa. A nossa identidade é aquilo que ouvimos, aquilo que digerimos e presenciamos. E nunca deixámos de ouvir Elis Regina ou Beatles… lembro-me que tínhamos um MP3 onde estava a discografia dos Beatles e a do Giacometti… e era muito interessante como se cruzavam.
“Sentimos uma grande responsabilidade em não diminuir os temas que escolhemos para musicar”
E como é que se cruzavam?
R.A. — A génese é a mesma: a música, a musicalidade. É uma necessidade.
P.R. — Na necessidade de fazer música de uma maneira muito primária. O canto vem como uma expressão de um povo, de uma cultura, de um berro que tem de sair.
R.A. — E tem mesmo que ser. Se atentarmos na música popular portuguesa, ela existe a trabalhar-se um campo, logo existe por uma necessidade muito básica: ou atenuar a dor do trabalho, ou aumentar o ritmo do trabalho. É uma questão prática. Os Beatles também tinham uma necessidade básica: quando foram para Hamburgo e tinham que entreter um público muito embriagado que vinha do porto e não percebia nada do que eles diziam. Não era um arado, era um bar! Acho que Giacometti e Beatles encontram-se muito bem: ouvir a voz do John Lennon e a seguir ouvir a voz da Catarina Chitas é o meu antidepressivo favorito!
Estas descobertas musicais também vos têm mexido com as memórias de canções que ouviam os mais velhos trautear?
P.R. — Sim e este É Teu tem um tema, que se chama “Romance do Cego”, que veio até nós por tradição oral. Era a avó que cantava, a tia também cantou e nós achámos interessante. Num serão ouvimos a canção e ficámos apaixonados… começámos também a trautear hoje faz parte do álbum, com um convidado, que é o José Valente. Mas sim, a tradição oral é uma coisa muito importante, que se perde cada vez mais, porque há cada vez menos pessoas a cantar e a ter a prática.
Este É Teu é o disco em que começam a cruzar as memórias, as histórias da canção tradicional portuguesa com as vossas próprias criações.
R.A. — É um disco que passa pelo compêndio de todas essas experiências que foram, de facto, passadas pela música popular portuguesa, pelo campo da poesia portuguesa: musicamos Fernando Pessoa e musicamos Judite Teixeira, uma poetisa de Viseu. Musicamos também pequenos excertos de músicos que apreciamos. E depois existem algumas palavras (risos) que foram surgindo ao longo destas experiências todas que passaram por nós e que se traduziram em canções.
Roberto, e porquê assumir a guitarra elétrica neste projeto com tantas ligações à canção tradicional portuguesa?
R.A. — Eu comecei a tocar guitarra, mais a sério, aos 15 ou 16 anos. Tinha uma guitarra clássica, mas o amigo que me ensinava a tocar tinha uma elétrica. Lá se comprou uma “squierzinha”, com um pequeno vox, e aquilo fazia as minhas delícias. Todo o meu ouvido foi treinado para essas ferramentas. Depois de teres um instrumento, a tua audição procura essas referências, então fez de mim um guitarrista elétrico, embora eu toque sem pedais, com som limpo (risos). Sou um guitarrista elétrico mais estranho!
“Gostamos de pensar que podemos consumir este álbum, culturalmente falando, numa mesa sem esquinas, sem etnias, numa partilha muito bonita e especial”
Mas não deixa de ser interessante assumir um lado tradicional com esta estética elétrica que foge aos cânones.
R.A. — Falamos da guitarra, mas as vozes também assumem o caráter épico ou meio grunge/rock em português. Nós gostamos de criar dinâmicas, ambientes em que estamos a tocar e a cantar baixinho e de repente dão-se explosões. E nisso a guitarra elétrica permite que as dinâmicas sejam muito grandes. Eu posso aumentar o som do amplificador, tocar baixinho e quando tocar muito alto vai ser mesmo muito alto. E numa guitarra acústica, o espectro dinâmico não me resolve essas vontades.
P.R. — E já tocavas guitarra elétrica antes de começar a tocar música tradicional portuguesa.
Eu sei que acabaram de editar o mais recente disco, mas voltando às leis de Lavoisier: como é que olham para a vossa transformação no futuro?
P.R. — Do Projeto 675, o primeiro, para este disco já houve uma grande transformação: foi um trabalho cru, gravado pelo José Fortes, como se fosse um take ao vivo. Quando fizemos o É Teu fomos à procura do oposto: não queríamos ser dois, queríamos ser mil. Quisemos ter todas as possibilidades de estúdio, mas ao vivo continuamos a ser dois.
R.A. — O que não invalida o facto de queremos tocar com mais gente em cima do palco.
P.R. — No concerto de lançamento do disco tivemos o José Valente, na viola de arco, e para o futuro claro que todas as possíveis parcerias estão em aberto. Mas queremos continuar com esta simplicidade. Ou seja: Lavoisier vai continuar por ser só os dois. Mas isso não invalida que possamos ter uma orquestra atrás de nós. Eu adorava! (risos)
Entrevista: Bruno Martins