Texto: Rui Portulez | Locução: Nuno Reis
Sonoplastia: Gualter Santos
E ao sétimo album de originais, os Cure conquistaram o mundo.
Foi há 30 anos. Numa altura em que já ninguém lançava duplos álbuns em vinil, se exceptuarmos Sign ‘o’ The Times de Prince e Warehouse: Songs and Stories dos Husker Du, a banda de Robert Smith resolveu contrariar os sinais do mercado com Kiss Me, Kiss Me, Kiss Me.
O disco beneficiou do empurrão da colectânea de singles “Standing at The Beach” em vinil e “Staring at the Sea”, versão em cd com mais quatro temas, ambas editada em 1986, e comprovou, para além de qualquer duvida razoável, que o pós-punk new wave rock gótico da banda de Robert Smith era capaz de fazer canções pop que agradavam a toda a gente. Até ao público americano.
Um dos motivos para os compatriotas de Sylvester Stallone terem aderido poderá ter sido, especulamos, o facto de “Catch”, segundo single de Kiss Me, thrice, ter tido como inspiração, alegadamente, o poema que Rocky Balboa lê à sua apaixonada Adrian que estava em coma em Rocky II.
A corroborar esta possibilidade, acrescentamos o facto de 1987 ter sido o ano em que os Smiths acabaram, de pois de escolherem como single “Girlfriend In a coma” do álbum Strangeways, Here We Come.
“Catch” é representativo do lado mais melódico, pop e catchy dos Cure que neste álbum fizeram aquilo que Robert Smith descreveu como “uma mistura do melhor de Pornography e Head On The Door“, ou seja, o equilíbrio entre o desespero e a euforia, respectivamente.
Por um lado, há temas densos e debruados numa matriz urbano-depressiva, por outro, sinais exteriores de ligeireza. Há também uma grande variedade estética e de arranjos e elementos sonoros: acordeão, cítara, flauta, quiçá de pan, saxofone, mais violinos e sintetizadores para todos os gostos, a engalanarem baladas tortuosas, atmosferas tipo 4 AD, synthpop ou a inesperada citação funk dos Red Hot Chilly Peppers com linha de baixo a lembrar os INXS a lembrar os Queen e até um gritinho à Prince no início de “Hot Hot Hot”, o quarto e último single do álbum.
Este ecletismo evidente foi atribuído ao processo de composição e escolha dos temas.
Foi, segundo Robert Smith, o período mais agradável que teve nos últimos 10 anos. Os Cure refugiaram-se na Provença, no sul de França, numa velha mansão campestre, com vinha e tudo. Não mostraram o disco a ninguém até estar terminado. Foram 10 semanas de isolamento. A vila mais próxima ficava a cerca de 8 quilómetros, não tinham transporte, não tinham televisão e toda a comida era entregue numa carrinha, pela manhã.
Foi neste contexto que seguindo os pergaminhos do Festival da Canção, cada elemento do grupo propôs esboços e ideias de canções, e as mais votadas, de 0 a 20, foram as escolhidas. De um lote inicial de 35, ficaram 18 na edição de duplo vinil, e 17 na edição em cd. O tema “Hey You” foi retirado por falta de espaço digital.
Já o primeiro single não sofreu contestação e revela-nos as possibilidades da lírica Camoniana ao serviço da pop, a transpirar anos 80 por todos os poros, e a piscar o olho a “Walking On Sunshine” de Katrina and The Waves e aos sopros de “Wake Me Up Before You Go Go” dos Wham.
Falamos, claro, de “Why Can’t I Be You” ou como o mote “Transforma-se o amador na cousa amada, Por virtude do muito imaginar” não perde actualidade.
O single de Kiss Me, Kiss Me, Kiss Me que falta referir é porventura uma das canções mais emblemáticas da banda, “Just Like Heaven”.
Robert Smith compôs os acordes e melodia de base em 15 dias, e quando chegou ao fim percebeu que a estrutura era semelhante a “Another Girl, Another Planet” hit de 1979 dos The Only Ones. Nas sessões de gravação, acrescentaram uma introdução de bateria e modificaram alguns pormenores instrumentais, mas o espírito original continua lá. “Just Like Heaven” teve direito a uma versão à altura por parte dos Dinossaur Jr. e foi fortemente citada pelos Radio Macau em “O Anzol”.
Kiss Me, Kiss Me, Kiss Me é um disco de amores e paixões obsessivas, de índole romântica e idolátrica, mas que tem os seus momentos sombrios e até assustadores, roçando o stalking e a violência, sobretudo em “Shake and Shiver” que tem versos como “You’re just three sick holes that run like sores”. Talvez reminiscências dos tempos em que Robert Smith foi guitarrista de Siouxie and the Banshees e dos Glove ou a explicação para os lábios vermelhos esborratados que figuram na capa do disco e são imagem de marca do seu mentor. Mentor e único membro fundador a partir daqui, pois o sobrevivente Laurence Tolhurst, que fazia parte da banda desde o liceu e da altura em que se chamavam The Obelisk, não chegaria a gravar Desintegration, tendo sido expulso devido a problemas com alcool e droga.