O álbum de estreia dos Stone Roses, homónimo, mistura canções psicadélicas e groove de dança. Quando saiu, no dia 2 de maio de 1989, o contexto não poderia ser mais favorável à sua explosão.
Ao longo do dia em que se celebram os 30 anos desta efeméride, ficamos a conhecer melhor, na Antena 3, os singles de The Stone Roses:
Facto: em 1989, as pessoas ouviam álbuns. Nesse formato obsoleto que era o disco compacto, mas também naqueles que emanam modernidade em 2019, como o vinil e a cassete. E, se um álbum não era brincadeira nenhuma, um álbum de estreia era um tudo ou nada. Nesse tudo ou nada, a canção que o introduzia aos ouvidos populares era mais importante do que um hálito fresco numa entrevista de emprego. E, apesar disso, se “I Wanna Be Adored” fosse um candidato a uma entrevista de emprego de cinco minutos, gastaria o primeiro minuto e meio sem pressa de impressionar, proferindo coisas como “isto hoje está mais fresquinho”. Porque sabia que no tempo que lhe restava ganharia facilmente o lugar na empresa e no céu. “I Wanna Be Adored” começa baixinho, cresce em cima de uma linha de baixo inspirada em corações adolescentes e explode. Explode várias vezes. Explode sem precisar de muito mais do que as palavras do título. Quem nunca sentiu a doce miséria na pista de dança ou era o mais popular da escola ou não viveu grande coisa.
Todos sabemos como é na vida da pop e do rock: duas pessoas, na guitarra e na voz, fazem uma banda. Depois logo se vê quem trata da coisa rítmica. Errado, sabiam os Stone Roses, que tinham no baixo de Mani e na bateria de Reni a matéria que permitia a John Squire ser um guitarrista de outra dimensão e a Ian Brown ser um cantor iluminado mesmo não sabendo cantar. Na versão do álbum, e não na do single, “She Bangs the Drums” dá dez segundos de protagonismo à secção rítmica, e isso tem de ser ouvido e assinalado por uma questão de fé na Humanidade. Justiça feita, “She Bangs the Drums”, alegada declaração de amor a uma baterista, é uma passeata pululante à procura do refrão triunfal. Que chega, inevitavelmente, várias vezes, e que nos impele a cantar “to describe the way I feel”. Tudo junto, e sobre a tal camada rítmica que é tudo menos despicienda, do que aqui se fala é de melodias, sobretudo as da voz, que nunca mais abandonarão a memória de quem as ouve. Considerem-se avisados. E fiquem também sabendo que, sempre que lerem a frase “the past was yours, but the future’s mine”, é daqui que ela vem.
▶️ Waterfall
Quando Ian Brown canta “she’s a waterfall”, fica a dúvida: refere-se à mulher que inspirou a canção ou à própria canção? É que, se no domínio da poesia o paralelismo entre a queda de água e a mulher que se liberta é uma bonita imagem, no âmbito puramente musical, “Waterfall”, a canção, é ela própria uma maravilhosa paisagem natural. As palavras, ditas a respeito de alguém que corta amarras opressoras que podem ser as da sua rua, do seu bairro, da sua cidade ou do seu país, saem com uma candura e uma inocência arrebatadoras. A guitarra, por sua vez, é água cristalina na maior parte do tempo, transfigurando-se para construir, sem esforço, socalcos na história do rock americano no último terço da canção. “Waterfall” foi um dos muitos singles de The Stone Roses, mas não é suficientemente lembrada, pelo que aqui fica para memória futura.
Já agora, se tiverem curiosidade em ouvi-la tocar de trás para a frente, agarrem no álbum que hoje cumpre 30 anos e oiçam a faixa seguinte, “Don’t Stop”. Precisamente: é “Waterfall” ao contrário.
Várias são as virtudes que devem ser reconhecidas aos Stone Roses, mas há uma em particular que “Made of Stone” obriga e invocar: a capacidade de, nos primeiros segundos de uma canção, definirem o tom do que aí vem e, mais do que isso, colocar-nos a nós, mortais, no estado que ela de nós exige. Do ponto de rebuçado emocional à suada dança dos espasmos, os Stone Roses levam pouco tempo a lá chegar e a lá levar-nos. “Made of Stone” é um excelente exemplo disso, naquele dedilhar que anuncia que algo épico lá vem. E vem, claro, mas não sem antes corrermos pela mão dos quatro de Manchester sobre uma gigantesca bebinca de melodias e atmosferas. Tal como a própria obra de John Squire enquanto artista plástico, profusamente inscrita nas capas dos discos dos Stone Roses, também “Made of Stone” terá sido inspirada pelo pintor americano Jackson Pollock. No caso, pela sua morte num acidente de automóvel em 1956. Sempre que Ian Brown cantou, a cada refrão, “sometimes I fantasise…”, todos nós fantasiámos com a vida. Felizmente, alguns de nós ainda fantasiam.
Mais de oito minutos, duas partes que nada têm a ver uma com a outra e uma citação bíblica para falar de ódio. Assim encerram os Stone Roses o álbum que em 1989 lhes abriu as portas do panteão da música popular. “I Am the Ressurection”, triunfal logo desde que Reni marca sozinho o tempo até que John Squire ataca pela primeira vez as seis cordas, é com naturalidade um hino a pedir o coro das vozes de quem com ele se cruzou na idade devida. Mas é-o apenas até metade da sua duração.
A transformação que então se opera é, para mantermos a Bíblia como inspiração, uma separação de águas que Moisés não desdenharia. Gravado, diz-se, num único take por todos menos Ian Brown, o segundo ato de “I Am the Ressurection” é uma viagem instrumental, semipsicadélica, selvaticamente dançante, um convite ao abandono de olhos cerrados e pescoço desafiando limites em todas as direções. Em grande parte, Madchester fez-se disto. Como disto se fez Second Coming, o segundo álbum dos Stone Roses, que só chegaria cinco anos depois.
Textos: Pedro Gonçalves | Locução: Nuno Reis
Sonoplastia: Gualter Santos