“Há lados da adolescência que devem ficar connosco até ao fim da vida”
Um final de ano cheio de sorrisos lá para os lados de Alvalade. O último disco os Capitão Fausto foi considerado pela Antena 3 o Melhor Álbum Nacional de 2016 e o tema “Amanhã Tou Melhor” a Melhor Canção Nacional. Junte-se a isso o intenso trabalho de preparação para a estreia do grupo de Tomás Wallenstein, Domingos Coimbra, Francisco Ferreira, Manuel Palha e Salvador Seabra no palco do Coliseu dos Recreios, amanhã às 22h.
Foi entre ensaios e preparação de equipamento que conseguimos encontrar tempo para que Domingos, o baixista, se sentasse à conversa connosco numa fria sexta-feira de dezembro – como se deseja, claro. E o local escolhido foi mesmo na ampla sala de ensaios no bairro de Alvalade, construída pela própria banda num orgulhoso trabalho de bricolage do coletivo, onde agora se ensaia o longo alinhamento para o espetáculo e que foi também a maternidade de Capitão Fausto Têm Os Dias Contados.
O músico faz-nos um balanço deste 2016, muito melhor que 2015. As gravações, os concertos, um disco novo na rua e também este abraçar da idade adulta, agora já com menos dúvidas e com menos receios: dois mil e dezassete promete ser ainda de mais trabalho. Dias contados para as férias? Nem vê-los.
Esta nossa conversa estava já marcada ainda antes de se saber que o disco tinha sido eleito pela Antena 3 como o Melhor Disco do Ano. E nesse sentido, peço-te uma reação a esta distinção.
Claro que ficamos satisfeitos com a distinção. É ótimo ouvir isso, mas falar de tops é sempre falar numa questão de gostos. Não vemos os discos como uma competição entre bandas. Acho que as bandas devem ser contra essa ideia da competição: houve muitos discos de colegas nossos de trabalho que são igualmente bons ou melhores do que o nosso! Mas sabe bem sentir essa distinção pelo facto de ter sido eleito por pessoas que lidam diariamente com música e que fazem da música a sua profissão.
Claro que há o top da Antena 3, mas depois há muitos outros tops onde figura Capitão Fausto Têm os Dias Contados. A questão aqui é que o álbum foi muito bem-recebido pelo público. E mais uma prova disso é que têm um concerto marcado numa das mais importantes salas de espetáculo de Lisboa.
Sim, é uma boa prova. Claro que nos surpreendeu a aceitação que o disco teve, mas quando o fizemos também sentimos que tínhamos feito um bom trabalho. De outra forma também não teríamos lançado, porque nós só pomos os discos cá fora quando achamos que estamos confortáveis para os defender. Mesmo que não tivesse sido tão bem-recebido, não íamos ficar muito afetados – é quase um egoísmo do compositor: para nós, está como queríamos! O resto são acrescentos. Tínhamos boas expetativas, mas a verdade é que 2016 é capaz de ter sido o melhor ano de Capitão Fausto até à data. Tem sido em crescendo. O Coliseu é o fechar de um ano em que começámos por tocar em imensos concertos esgotados por todo o País, em bares e sítios mais pequenos, depois pelos festivais – alguns de grande dimensão, como o Paredes de Coura, o Super Bock Super Rock e o Rock In Rio. Mas em qualquer dos locais sentíamos que as músicas tinham uma recetividade que não sentíamos nos outros discos. O Gazela e o Pesar o Sol são discos que punham o público a saltar, há sempre mosh! Aqui as músicas mais calmas, muitas vezes eram celebradas de uma forma ainda mais intensa! Não através de mosh, mas com as pessoas a cantar! Quando começámos a perceber isso, comentámos que estava a ser muito mais do que estávamos à espera.
“Tendo decidido que queremos fazer carreira na música com Capitão Fausto, tentamos sempre ao máximo não nos considerarmos profissionais da música. Há de haver uma parte de não nos levarmos muito a sério”
Dois mil e dezasseis, um ano tão bom, depois de o Tomás Wallenstein cantar, em “Mil e Quinze”, que “Mil e quinze foi merda, mas chegou ao fim”.
Exato. Mais no sentido de “foi bera, mas já passou”. Aí não teve tanto que ver com a banda, mas mais com o ano dele. Ainda assim: o processo de gravação deste disco correu muito bem, mas foi intenso. Aliás, há um ano estávamos aqui nesta sala a gravar e foi muito trabalhoso. Como nós construímos esta sala toda de raiz, além do trabalho de compor o disco houve também o trabalho de construir! O Pesar o Sol demorou dois anos a sair, mas foi gravado em duas semanas. Este demorou quase seis meses e com períodos muito intensos! Por isso essa expressão talvez seja um alívio, um “uf, já está!”. Por mim falando, posso dizer que nunca me diverti tanto a fazer um disco, mas foi sem dúvida o mais trabalhoso.
Porque é que este disco teve uma redução na velocidade?
Quando saiu o Pesar o Sol, já estava gravado há dois anos. Já não estávamos muito na onda da música que compusemos então há dois anos, até porque tínhamos tocado muito ao vivo, felizmente. Acabou por ser quase unânime e até meio inconsciente: já sabíamos à partida que quando começássemos a fazer um disco novo não iria ser naquela linha. Foi natural e inconsciente querer fazer uma coisa mais tranquila. Andávamos a ouvir vários discos: Rumors dos Fleetwood Mac, Beach boys, Todd Rundgren, Kurt Vile… coisas um bocadinho mais tranquilas. Então surgiu de forma natural, mas se tivesse de escolher um momento marcante para essa mudança terá sido as primeiras músicas novas depois do Pesar o Sol: “Mil e Quinze”, depois a “Dias Contados” e depois “Amanhã Tou Melhor”. Percebemos para onde queríamos ir.
O facto de terem construído este estúdio tão acolhedor com as vossas mãos, onde entram e saem à hora que querem, aqui e acolá com poltronas, sofás, gira-discos e posters na parede, também pode ter-vos sugerido e encaminhado para o conforto sonoro do disco?
Sem dúvida. E sabe muito bem gravar um disco fora de estúdio: é não ter aquele horário das 9h às 17h. às vezes é bom ter método – e tivemos bastante neste: ensaiar e gravar – mas também é bom existir a flexibilidade de se quisermos ficar a gravar até as 2h ficamos ou começar a gravar mais tarde. Houve uma liberdade maior. E há uma outra coisa que temos repetido em todos os discos: há ali uma semana ou duas, quando já temos uma ideia do disco que queremos fazer, que vamos para fora de Lisboa e vamos ensaiar. O Pesar o Sol foi feito quase na íntegra em casa do Manuel, em Paredes de Coura. Mas este, de lá só vieram duas músicas: “Alvalade Chama Por Mim” e “Tem de Ser”.
“O Gazela e o Pesar o Sol são discos que põem o público a saltar, há sempre mosh! Aqui as músicas mais calmas, muitas vezes eram celebradas de uma forma ainda mais intensa! Não através de mosh, mas com as pessoas a cantar”
Uma das curiosidades deste disco: o Tomás fala de muitas experiências pessoais, mas acredito que também seja o espelho de muito o que a banda pensa. Sentem todos o vosso crescimento e amadurecimento pessoal? Reflete que já não são miúdos?
Acho que sim e sem contar com coisas mais pessoais do Tomás, que sei que algumas letras falam, também há letras que falam de questões nossas: além de banda, somos os melhores amigos desde os 12 ou 13 anos. E neste momento, tirando o Francisco, vivemos os quatro juntos na mesma casa. Chamamos-lhe a Mansão Fausto! Tem tudo para correr mal, mas na verdade, os problemas de um são os problemas de outros. Hoje em dia vivemos todos da música, recebemos todos o mesmo, temos todos de estar à mesma hora no mesmo sítio para ensaiar, tomar decisões e os mesmo dilemas. E conseguimos acabar todos o curso! Quando se vai à faculdade e se tem a banda, há sempre uma noção de objetivo clara: agora não estou a ensaiar, mas posso estudar para uma cadeira qualquer. E quando se acaba um curso, há um bocado um vazio! Este foi o primeiro disco em que já estávamos todos licenciados. É a chegada da idade de sair de casa dos pais e da tomada de algumas decisões: perceber que é este o caminho que queremos seguir quando somos ainda uma banda, de certa forma, de nicho, mesmo que tenhamos contas para pagar. Mas como somos um grupo muito forte, decidimos atirar-nos todos para isto. Pode haver um nervosinho por fazer um disco nestas condições. Não deixa de ser interessante que, mesmo assim, tendo decidido que queremos fazer carreira na música com Capitão Fausto, tentamos sempre ao máximo não nos considerarmos profissionais da música. Há de haver uma parte de não nos levarmos muito a sério.
Para a música continuar a ser vista de uma forma artística e não sob o ponto de vista das folhas de contas Excel?
É isso. E mesmo assim, o que acontece, é que somos incrivelmente focados a trabalhar – e temos trabalhado bastante – mas ao mesmo tempo convém estar relaxado em relação a isso. O facto de sermos muito amigos retira um bocadinho a pressão de que se um disco não corre bem, a carreira pode acabar. Mas sem dúvida de que o disco acaba por falar dessas coisas: a “Morro na Praia” é sobre o Tomás não querer acabar o mestrado – ele licenciou-se e disse que o queria fazer agora era cantar. A ideia de sair de casa é cantada em “Os Dias Contados”. O que sinto que aconteceu é que nos identificamos todos com aquilo que o Tomás escreveu porque era uma história nossa, mas no fundo – e isto até nem cabe às bandas perceber – foi que muita gente de fora se identificou com essas letras. Quando as ouvi consegui abstrair-me do facto de ter sido eu a fazer as músicas e isso é raríssimo.
“Sinto que nos identificamos todos com aquilo que o Tomás [Wallenstein] escreveu porque era uma história nossa, mas no fundo – e isto até nem cabe às bandas perceber – foi que muita gente de fora se identificou com essas letras”
O disco acaba por vos ensinar um pouco mais sobre a maturidade das vossas vidas?
Nós não paramos para pensar se estamos mais ou menos crescidos. Para o primeiro ano em que não estou a estudar sinto uma data de coisas: sinto que estamos bem mais responsáveis, que estamos a trabalhar melhor. Mas depois… (risos) há coisas que continuam iguaizinhas! É um erro pensar que, de repente, com este disco, somos outras pessoas. A evolução é sempre constante: para mim será sempre importante considerar-me um adulto de pés e cabeça, mas há lados da adolescência e dos 20s que devem ficar connosco até ao fim da vida: o sentido de autodescoberta e descoberta. A curiosidade nunca deve desaparecer com o fim da adolescência. O sentido de descoberta é bom para combater o lado burocrático que a vida traz: as contas, os pais, filhos… todas essas dores de cabeça. Há imensos filósofos que dizem que com a idade as pessoas vão ficando mais conservadoras – e não é em termos ideológicos. Aliás, há de chegar a uma altura em que, daqui a 50 anos, os ideais mais progressivos de hoje serão os conservadores!
Estamos destinados a ser resmungões e conservadores?
No caso de Capitão Fausto não quero que isso aconteça, que pensemos que já encontrámos uma fórmula para fazer música. No dia em que acharmos que já sabemos aquilo que temos de fazer na música, é o dia em que acho que a banda perde razão de ser.
Mas têm conseguido fugir a isso.
Não fazemos por fugir: simplesmente sinto que não deve haver uma fórmula. toda a música pop vem de fórmulas, mas ter uma banda a dizer que “é isto que nos dá jeito fazer” não seria tão genuíno. É sempre bom para uma banda descobrir-se e dentro de uma data de ideias que já assentou – acho que existe uma linha que acompanha os nossos três discos – mas é bom existir esse sentido de descoberta, independentemente de uma banda estar ou não mais adulta, ter uma maneira mais coerente para trabalhar e de se predispor a fazer música.
Como é que funcionam as outras bandas em que trabalham na vossa editora, a Cucamonga? Olham para Modernos, BISPO, El Salvador e Ganso com a mesma seriedade com que olham para Capitão Fausto ou vêem-nas como laboratórios de experimentação?
Começou por ser um bocado um escape a Capitão Fausto. Todos nós gostamos de imensa música, e música diferente, e Capitão Fausto é um compromisso de nós os cinco para aquela banda, mas isso não impede de nos explorar, noutras bandas, outras áreas de música. BISPO é um exemplo disso: são só sintetizadores e música eletrónica feita à base de sintetizadores e samples. Eu toco bateria e o Francisco e o Manuel que tocam teclados. É completamente diferente e nada daquilo caberia em Capitão Fausto. Modernos já tem o Tomás a tocar e, por isso, muitas vezes, faz-se a associação com Capitão Fausto, mas na verdade ele queria fazer algo mais próximo de The Kinks, mais simples – cançonetas! À partida todas essas coisas eram escapes, mas a verdade é que depois sai do nosso controlo e essas coisas ganham uma dimensão maior. Aquilo que era um escape, acaba por tornar-se numa banda como outra qualquer.
São sempre canções que saem de vocês. São sempre filhas dos mesmos pais.
Depois há pessoas que já gostam mais de Modernos do que de Capitão Fausto. Sai do nosso controlo! Acontece o mesmo com BISPO. Há pessoas que não gostam nem de Capitão Fausto nem de Modernos, mas gostam de BISPO e é tudo feito pelas mesmas pessoas.
E hoje temos dois Bispos na música portuguesa – o vosso grupo e o rapper de Mem Martins!
E já falámos com o manager dele que mandou uma mensagem a dizer: “Está tudo bem. Se calhar um dia até fazemos uma colaboração – ahahah”. Claro que sim! Isto não é como os Led Zeppelin que são processados, ou os Coldplay e o Satriani. Aqui não há stress.
“Só quando lá estivermos [no palco do Coliseu] é que vamos perceber o verdadeiro peso do concerto que estamos a preparar. Não fazemos assim grandes considerações: somos uma banda de ir fazendo”
Ainda mandam uns beats ao Bispo para ele rimar por cima.
Podemos fazer uns beats para o Bispo, se ele quiser. Claro que sim!
Deixa-me perguntar-te sobre o concerto de amanhã: o que é que significa para os Capitão Fausto subir ao palco do Coliseu dos Recreios?
A ideia nem foi nossa! Foi um desafio do nosso manager, o Paulo Ventura, que disse que devíamos fazer o Coliseu para fazer este ano em grande. E nós ficámos surpreendidos: “A sério? O Coliseu? E com dois meses de antecedência?” E ele: “Vai correr bem!” É uma sala incrível, com imensa história e não só para a cidade de Lisboa, mas para o País inteiro. Muitas das bandas que crescemos a ouvir acabaram por passar também naquele palco e por isso sentimos a responsabilidade. Mas só quando lá estivermos é que vamos perceber o verdadeiro peso do concerto que estamos a preparar. Não fazemos assim grandes considerações: somos uma banda de ir fazendo. Fomos lá ver como ia ficar o palco e aquilo assusta, sem dúvida. E para mim a ideia das mil ou três mil pessoas estarem lá só para nos ver a nós é algo que nunca nenhum de nós pensou que fosse acontecer. Nunca nenhuma banda começa com desejos de grandeza. Só temos de estar gratos por estas coisas estarem a acontecer, que é um misto de muita sorte – por ser a altura certa – com muito trabalho. É mérito nosso e da fortuna, como diria Maquiavel. Nesse sentido, será a celebração do ano que tivemos juntamente com as pessoas que têm estado connosco a ouvir a música e o fechar de um ciclo.
Haverá um alinhamento especial pensado para a solenidade de estar naquele palco?
Uma das coisas difíceis dos alinhamentos é que o …Dias Contados é incrivelmente diferente do Pesar o Sol e do Gazela. Sou eu que faço os alinhamentos, quase sempre – este está a ser mais debatido – e é sempre difícil juntar músicas desses discos. O concerto, com as músicas dos discos separadas ou juntas, fica, em termos sonoros, fica um bocadinho desconchavado. Tem sido um desafio preparar uma setlist tão grande e torná-la harmoniosa. O concerto será acompanhado por uma orquestra e, por isso, a forma como a orquestra vai entrar, as passagens de umas músicas para as outras, deu mais trabalho do que outros concertos.
A orquestra participa em todas as músicas ou sobretudo nas dos Dias Contados?
Sobretudo neste último disco e em duas músicas de Pesar o Sol.
Quem preparou esse trabalho de orquestrar as canções?
As partituras para o disco foram feitas por mim, pelo Manuel, pelo Tomás e eu. O Manuel e o Tomás são muito mais eficazes porque sabem ler. Eu leio mais ou menos, mas no lado da escrita não sei pôr as colcheias e as pausas e essas coisas todas. Demoraria horas! O Tomás como tem o Conservatório feito em violino e o Manuel tem ciências musicais é tudo muito mais rápido. Eu contribuí mais com o meu ouvido.
Como é que perspetivam 2017? Repousar o Capitão e dar mais vida aos outros projetos da vossa editora Cucamonga?
Nunca será para repousar. O ano que vem vai ter uma digressão grande e queremos tocar no verão, também. Sinto que o próximo ano poderá ser um bom ano de concertos para Capitão Fausto. Ainda não passou a fase de não querer tocar, mas também já combinámos entre nós que no próximo verão – e o quanto antes – vamos começar a fazer músicas novas, provavelmente já a seguir ao coliseu vamos começar a juntar-nos e a experimentar fazer uma coisa nova que nunca fizemos, que é ir fazendo as músicas e não, de repente, começar a fazer tudo. Vai ser um ano de ainda mais trabalho, parece-me: se conseguíssemos ainda lançávamos esse disco no próximo ano ou no início de 2018.
Entrevista: Bruno Martins