Foto: Jorge Luna
“A Vida Invisível de Eurídice Gusmão é um livro sobre impossibilidades”
A Vida Invisível de Eurídice Gusmão é o nome da obra que marca a estreia em ficção da escritora brasileira Martha Batalha. O livro desenrola-se com um enorme rol de personagens no Rio de Janeiro da década de 1940 de onde emerge a protagonista, Eurídice Gusmão, uma típica dona de casa que procura ser algo mais do que isso apesar de ser impedida de o fazer por vários motivos: o marido, os filhos e até por aquilo que a sociedade lhe exige. A história é a de Eurídice Gusmão e passou-se há mais de meio século. Mas será que já passou mesmo? A autora, diretamente da Califórnia onde hoje mora, convida-nos a entrar ainda mais dentro da vida de Eurídice.
O seu livro conta a história de Eurídice Gusmão, mas não só. É um livro carregado de muitas personagens, todas elas muito bem descritas e construídas. São personagens reais, são fruto de pessoas que conheceu ou que ouviu falar?
Muitas personagens nasceram da perceção das mulheres da minha família. Outras vieram de pessoas que conheci, ou de histórias que li ou me contaram. Mas a criação de uma personagem nunca é simples: o escritor está sempre construindo um quebra-cabeças com cada personagem que inventa. Um pouco vem das memórias, um pouco da imaginação, e muito da intuição. Eu sempre admirei livros como As Mil e Uma Noites, em que uma história leva a outra e por aí fora. Tentei fazer isso neste romance: procurei cativar o leitor, envolvê-lo em todas aquelas vidas, para que não quisesse largar o livro.
“A Eurídice é uma pessoa que precisa de se realizar, que quer ter opiniões, desejos, ambições. Tenta ser empreendedora, artista e escritora. Ela precisa experimentar, tem uma mente inquieta, mas esbarra o tempo todo nas limitações da sociedade”
No meio de tantas personagens – umas mais “heroínas” outras mais “vilãs” – porquê dar o protagonismo a esta mulher, uma dona de casa brasileira que gostava de ser mais do que uma dona de casa?
Porque foram (e são) muitas nesta situação e essa história aparentemente insignificante merecia ser contada. Mulheres inteligentes, extraordinárias e empreendedoras, que passaram as suas vidas dentro de casa, por causa das regras da sociedade. Não lhes era permitido sonhar, produzir, aprender nada além do que era preciso para a vida no lar. Muitos leitores e leitoras identificam-se com esta questão. Recebo mensagens de gente que diz que neste livro contei a história das suas mães, das suas avós e até as próprias histórias! Acho isso fascinante.
Como é que esta história nasceu em si?
Nasceu de uma hipótese: o que aconteceria a uma mulher brilhante se ela vivesse num tempo e lugar em que muito pouco lhe fosse permitido? O que aconteceria com o seu potencial? A partir daí escolhi o tempo em que se passa a trama, anos 1940 e 1950; e o lugar, a Tijuca, bairro de classe média do Rio de Janeiro, extremamente conservador nesta época. Depois disso foi só escrever. Não faço um guião, porque acredito no poder do inconsciente na hora da escrita.
“Foram (e são) muitas mulheres nesta situação e essa história aparentemente insignificante merecia ser contada. Mulheres inteligentes, extraordinárias e empreendedoras, que passaram as suas vidas dentro de casa, por causa das regras da sociedade”
Como é que descreve esta protagonista? Parece ter um arco narrativo muito bonito. Pode ser invisível aos olhos da família que nunca olhou para ela de outra forma, que não a dona de casa, mas aos olhos do leitor, a Eurídice luta para mudar e ser uma mulher diferente.
É isso. A Eurídice é uma pessoa que precisa de se realizar, que quer ter opiniões, desejos, ambições. Tenta ser empreendedora, artista e escritora. Ela precisa experimentar, tem uma mente inquieta, mas esbarra o tempo todo nas limitações da sociedade. As outras personagens do livro também são marcadas pela impossibilidade, como a irmã de Eurídice, Guida, e a vizinha, Zélia. A Vida Invisível de Eurídice Gusmão é, de certa forma, um livro sobre impossibilidades. Sobre aquilo que não acontece quando nos preocupamos em viver de acordo com os dogmas da sociedade.
Para lá de Eurídice, com que outra personagem criou fortes laços?
Gosto muito da mãe de Antônio, Eulália, que é dominadora e amarga. Luiz, o brasileiro criador da cerveja Tupã, e das Dores, a empregada que consegue ser ainda mais invisível do que a protagonista. Foi uma delícia criar estes personagens paralelos, construir as pequenas histórias que formam um mosaico da classe média brasileira.
“Nasceu de uma hipótese: o que aconteceria a uma mulher brilhante se ela vivesse num tempo e lugar em que muito pouco lhe fosse permitido? O que aconteceria com seu potencial?”
“Nasceu de uma hipótese: o que aconteceria a uma mulher brilhante se ela vivesse num tempo e lugar em que muito pouco lhe fosse permitido? O que aconteceria com seu potencial?”
A Martha já tinha escrito outros livros – antologias de entrevistas. Quando começou a sua paixão pelo romance?
Decidi tornar-me escritora há seis anos. Durante o período escrevi quatro livros e tive a sorte de não publicar nenhum. Eram projetos de uma escritora a tentar encontrar o seu estilo. Comecei por imitar os autores que admirava, não por plágio, mas porque não sabia fazer de outra forma e queria escrever tão bem como eles. Depois de muito trabalho encontrei uma forma de escrever que era só minha. Acho que todos os autores passam por este processo.
Sei que teve várias rejeições das grandes editoras brasileiras até o livro ter sido publicado. Sentiu-se, também, a viver uma espécie de “vida invisível” aos olhos dessas editoras?
O mercado editorial no Brasil e no mundo mudou muito nos últimos dez anos. É muito difícil um autor iniciante publicar, tendo como bandeira apenas a qualidade da escrita. Hoje as editoras procuram autores que já venham com uma plataforma, que já sejam conhecidos numa comunidade. Youtubers, bloggers, personalidades do Facebook, escritores de ficção que já ganharam algum prémio. Eu não tinha nada disso e nem me preocupei em ter. A minha opção foi por criar uma ficção que falasse por si. É um caminho muito mais difícil, porque é, como disse, um caminho que passa primeiro pela invisibilidade. Mas que no fim correu bem. O que aconteceu também no caso do meu livro é que o mercado editorial brasileiro passava por uma imensa crise na época em que a minha agente, Luciana Villas Boas, apresentou o livro. Não estavam a investir em novos autores. Devo-lhe muito, que insistiu, e apostou no romance deste o início.
“Os meus livros de Saramago são todos rabiscados e relidos, de vez em quando algum sai da estante e reaparece na minha mesa”
Há algum romance/autor que seja como uma referência para si até hoje?
José Saramago é um dos autores que mais me influenciaram. O seu estilo é elaborado sem ser pedante. As suas frases são como arabescos, cada uma é em si uma obra de arte. Saramago também tem um sentido incrível de ritmo: é capaz de enfeitiçar o leitor, de fazer com que ele não queira parar a leitura, algo que também me preocupa, e tento fazer à minha maneira. Cada livro dele é uma declaração de amor à língua portuguesa e carrega um imenso conteúdo político e social, que também considero importante quando se faz literatura. Os meus livros de Saramago são todos rabiscados e relidos, de vez em quando algum sai da estante e reaparece na minha mesa. Cheguei a decorar frases e considero o final do Evangelho Segundo Jesus Cristo uma das passagens de literatura mais fortes que já li.
Depois de “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” o que tem em mente? A caneta já começou a atacar um novo romance?
Estou a terminar um segundo romance, sobre a formação e desenvolvimento do bairro de Ipanema, a partir da história de uma família. É uma metáfora para o que aconteceu no Brasil durante os primeiros anos da República até agora. Como em Eurídice, no novo romance eu uso o humor e a ironia, e muitas, muitas personagens para contar essa história. Está a ser divertido fazer! Principalmente agora, que estou quase no fim. O pior para o escritor é aquele meio de livro, quando não se sabe exatamente para onde se vai ir, mas que fazemos porque temos que seguir em frente, até ver a luz no fim do túnel, até tudo fazer sentido.
Entrevista: Bruno Martins