“Agora as pessoas estão muito mais abertas ao que vem de África”
Milton Gulli atende-nos o telefone lá longe, no hemisfério Sul. Moçambique é a casa do vocalista e compositor dos Cacique’97 desde 2011. Foi à distância que o segundo disco do coletivo, We Used To Be Africans, foi sendo feito nos últimos anos: uma ponte musical criada entre Maputo, Lisboa, também Luanda e Brasil que ajudou a dar forma a uma espécie de afrobeat lusófono.
Além de nos explicar como trabalhar com uma banda e criar um disco à distância de três continentes, Gulli fala-nos dos seus últimos cinco anos em Moçambique, do trabalho cultural e de intercâmbio musical que tem feito em Maputo com a sua editora Kongoloti Records.
Passaram cerca de seis ou sete anos desde o lançamento dos Cacique 97. O que é que aconteceu durante todo esse tempo?
Nós lançámos o primeiro álbum em 2009 e em 2011 eu mudei-me para Moçambique. E isso dificultou a dinâmica da banda: nós já tínhamos feito algumas jam sessions, tínhamos alguns pseudo-temas preparados para o segundo álbum, mas com a minha vinda para Maputo atrasou tudo um bocado. Então só com muita força vontade da malta toda é que conseguimos começar a fazer as coisas à distância: muito devagarinho e por isso é que demorou este tempo todo.
Como é que foi fazer esse trabalho à distância? Serviste como uma espécie de pivot a distribuir o “jogo” pelos colegas de banda?
O trabalho partiu de várias pessoas. Houve uma espécie de núcleo duro de três ou quatro pessoas – eu o Tiago [Romão], o Marcos [Alves], o [João] Cabrita, a minha irmã [Marisa Gulli] – que foram pegando nesses temas que ainda não eram temas, e nessas jams, e começaram a estruturá-los de alguma forma. À medida que íamos estruturando íamos passando uns para os outros para mexerem mais um bocadinho, sempre em função da disponibilidade. Estivemos a trabalhar estas músicas quatro ou cinco anos, de forma intermitente.
Ainda assim, este We Used To Be Africans vem com uma belíssima uniformidade. Quase que não se nota a distância geográfica entre os membros da banda. A que se deve isso? A gravação do disco foi feita em conjunto?
Não, nada disso: as gravações foram feitas separadamente. Eu gravei umas coisas aqui em Maputo, a minha irmã também, e a maior parte da banda gravou em Lisboa. Mas houve outros elementos gravaram no Brasil, onde estavam nessa altura. O que aconteceu, para o disco soar tão coeso, foi o facto de estes músicos já se conhecerem todos muito bem e partilharem todos, mais ou menos, as mesmas influências no que diz respeito ao funk, ao afrobeat e à música negra. Acho que é isso que torna o trabalho mais coeso: entendemo-nos todos muito bem, não estamos a apontar para sítios diferentes.
“A banda é quase uma família, não verdadeira, mas que acabou por se tornar uma família. E é um bom exemplo de pequenos modelos sociais que poderíamos adotar: estar mais próximos da nossa comunidade, da nossa família”
Então havia uma direção comum neste disco: a vontade de continuar a criar em volta deste universo da música negra? Solidificar o vosso som?
Sim, depois do primeiro disco dissemos que queríamos continuar a fazer coisas dentro do afrobeat. Mas queríamos que os próximos discos fossem muito mais lusófonos, que tivessem muito mais a ver com as tradições musicais, com as tradições musicais dos PALOPs, do Brasil, e incorporá-las no afrobeat. Não queríamos ser uma banda de afrobeat tipicamente nigeriano. Acho que também foi isso que trouxemos para este álbum: sinto que tem muito mais a vertente lusófona.
Ainda assim, cantam em português, mas também em inglês. Qual foi a ideia de juntar os dois idiomas em disco?
Quem escreve, sobretudo, sou eu e a minha irmã e nós simplesmente escrevemos, sem pensar se é em inglês ou português. É o que sai na altura. Neste disco até temos temas que são mesmo direcionados para Moçambique e Angola, mas cantados em inglês. Não fazemos distinção: é o que sai e não temos preconceito nenhum.
O que é que vos foi inspirando para a escrita de canções?
O facto de eu ter vindo para Moçambique e chegar a uma realidade completamente diferente da que estava habituado em Lisboa, de ser confrontado com uma série de situações de que só ouvia falar ou via à distância. Aqui está tudo bem presente e à flor da pele: isso foi um fator que influenciou a escrita. Mas este mundo, nos últimos anos, tem vindo a piorar em vários aspetos: conflitos militares, governos a virar para a extrema direita, as primaveras árabes… houve uma série de eventos que se tornaram globais até pelas redes sociais que faz com que já não consigamos ficar à parte dessas coisas.
“O que aconteceu, para o disco soar tão coeso, foi o facto de estes músicos já se conhecerem todos muito bem e partilharem todos, mais ou menos, as mesmas influências no que diz respeito ao funk, ao afrobeat e à música negra”
Creio que os os conflitos político-sociais já faziam parte daquilo que é a mensagem dos Cacique’97, mas também do género em que vocês se enquadram. A sensação é que as coisas nunca estiveram muito bem, mas nos últimos anos estão a ficar ainda mais negras?
Eu pelo menos sinto que as coisas estão a piorar bastante. Não sei se vão ter que piorar ainda mais para depois se começar tudo do zero… este mundo está muito doente.
Ainda assim, a musicalidade dos Cacique – e do afrobeat – vem com uma grande dose de esperança, digo eu. Pelo menos faz-nos dançar e agitar. É esse também o espírito de missão e intervenção da banda?
Nós assumimo-nos como uma banda de intervenção, e as nossas letras são de intervenção, mas defendemos também a união das pessoas, o amor, o viver em comunidade – e isso é muito importante. A banda é quase uma família, não verdadeira, mas que acabou por se tornar uma família. É um bom exemplo de pequenos modelos sociais que poderíamos adotar: estar mais próximos da nossa comunidade, da nossa família.
E já que falamos em comunidade: puxaram para o vosso lado uma série de convidados que demonstram a diversidade sonora e linguística dos Cacique’97. O rapper moçambicano Azagaia aparece numa faixa dedicada à situação política e social de Moçambique; o Jorge du Peixe, a representar o Brasil, o Nástio Mosquito a trazer a canção angolana e a Nneka com a raiz nigeriana tão próxima do afrobeat.
A Nneka apareceu um bocado por acaso: tínhamos esse tema, o “Big Business”, em que queríamos convidar o Waldemar Bastos, mas na altura ele não pôde participar. Contactámos a Sara Tavares, que também não estava disponível, mas que imediatamente nos encaminhou para a Nneka. Acabou por funcionar muito bem. O Jorge du Peixe era um músico com quem já queríamos trabalhar há muito tempo, porque os Nação Zumbi é uma banda de referência no Brasil, e para nós fazia todo o sentido até porque somos grandes fãs. O tema com o Nástio Mosquito já tinha sido gravado há uns seis anos e ficado na gaveta: surgiu por acaso, quando o Nástio estava por Lisboa nessa altura em que fizemos a gravação do “American Cop” e ou foi o João Gomes ou o Francisco Rebelo que sugeriram o Nástio e ele veio e fez aquilo. O Azagaia é um músico com quem eu tenho uma relação muito próxima aqui em Moçambique: acabei por por produzir o último disco dele, o Cubaliwa, e é um dos músicos com quem eu toco aqui. Fazia todo o sentido ter um músico moçambicano a cantar, com a dimensão do Azagaia.
“Queríamos que os próximos discos fossem muito mais lusófonos, que tivessem muito mais a ver com as tradições musicais, com as tradições musicais dos PALOPs, do Brasil, e incorporá-las no afrobeat”
Como é que está a vossa agenda de concertos? Estando a banda meio espalhada entre Portugal, Moçambique e Angola, como vão funcionar os espetáculos?
A partir de junho estarei em Lisboa para fazer a temporada de concertos. Já temos uns três ou quatro marcados, que ainda não podemos anunciar, mas de junho a setembro é quando vamos atuar mais pela Europa.
E a tua vida aí em Maputo? O que estás a fazer?
Eu abri a editora Kongoloti Records poucos meses depois de cá chegar. Lançamos artistas da África austral: Moçambique, Suazilândia, África do Sul, Angola… eu pego sempre em artistas que eu considero originais, que fogem um bocado ao padrão típico de música africana que ouvimos hoje em dia. Tenho também um estúdio aqui, que faz parte da editora, que é também uma espécie de pólo criativo onde vários artistas se juntam para fazer música, para gravar, para masterizar discos, e toco com algumas bandas por aqui: Azagaia, Simba… são vários projetos. Mas aqui em Moçambique há muita criatividade, muitos artistas bons e muita coisa boa a sair, mas sem o acesso a determinadas coisas que os europeus já têm. É um desafio louco, mas que tem piada porque facilmente conseguimos ver resultados (risos).
Porque é que foste para Maputo? Também com um espírito de missão e ajudar artistas a crescer?
Sim, mas um dos meus objetivos era tentar criar uma ponte entre os músicos moçambicanos e portugueses. Acho que chega muito pouca música de moçambique – mais de Angola e Cabo Verde. A ideia era tentar criar um maior intercâmbio entre os artistas. Isso poderia valorizar tanto a música portuguesa como moçambicana.
Queres dar-nos alguns exemplos de artistas moçambicanos da atualidade que tenhamos mesmo que ouvir?
Além do óbvio Azagaia há um miúdo que lançou um disco no ano passado, o Deltino Guerreiro, com uma espécie de afro-pop ou afro-soul. Há um outro coletivo muito interessante que são os GranMah – são de reggae, alternativo. Se calhar posso falar também do puto TRKZ, que editou há uns meses e que vai dar muito que falar no panaroma hip hop, soul, R’n’B.
E o teu trabalho de intercâmbio entre cultura lusófona? Está a dar frutos?
Sim. Agora, a abertura a tudo o que é africano é maior. Se calhar quando estava aí em Portugal sentia muito mais dificuldade e agora as pessoas estão muito mais abertas ao que vem de África. E tenho sentido que há muitos músicos portugueses a vir cá com mais regularidade. Acho que a relação está a ficar mais próxima: esperemos que sim!
Ouve aqui o disco We Used To Be Africans
Entrevista: Bruno Martins