“Este disco nasce de exercícios de tentativa e erro até descobrir o lugar em que me sinto confortável”
Conhecemo-lo, sobretudo, do trabalho de composição e interpretação nos Deolinda. Mas Luís José Martins tem tido várias caras — várias experiências de laboratório: em Almost a Song, com Joana Sá, e também com Powertrio, também com Joana e com Eduardo Raón. É uma vida dedicada à ligação umbilical com as seis cordas que agora dá um novo fruto: a solo. O disco chama-se Tentos – Invenções e Encantamentos e é a primeira experiência a solo de Luís José Martins. Tentos, como explica nesta conversa, vem de “tentativa”. Depois, com a guitarra como a eterna parceira, deixa-se inventar e encantar num equilíbrio entre empirismo e emotividade.
O álbum vem com seis temas e foi gravado no Alentejo, no Convento de São Bento de Avis. Hoje, dia 16 de junho, é apresentado ao vivo no Teatro Maria Matos, em Lisboa.
Tens dedicado a tua vida profissional quase na íntegra à guitarra. Tanto no campo do estudo, como no campo da composição e interpretação. Este é o teu primeiro trabalho a solo e também o momento em que te sentes mais próximo da guitarra?
É o momento em que me sinto muito próximo da guitarra, mas é, sobretudo, o momento em que me sinto mais próximo de uma linguagem que posso dizer que é minha — que tem a minha assinatura. Essa linguagem é construída à guitarra e por isso, sim, talvez seja o momento em que estou mais próximo do instrumento. Eu fiz toda a minha formação como guitarrista clássico — no Conservatório, na Escola Superior de Música, em especializações, em Paris… — e esse período de trabalho, e sobretudo o final de cada ciclo, foram períodos de trabalho muito intensos.
Mas comparando o lado académico com fazer um disco… é diferente fazer um disco, não é?
É. Eu acho que é um momento, sobretudo, em que me sinto mais convencido e mais conformado com o instrumento. Porque em todos esses períodos houve momentos de grande frustração, dificuldades técnicas… e aqui, por a música ser minha e não ter a responsabilidade de estar a tocar composições de outros, as fronteiras e as barreiras são colocadas por mim.
Como é que chegas a esta linguagem própria na guitarra? O que foi mais complicado? Encontrar, verdadeiramente, o teu lado criativo a solo?
O processo foi longo. Fiz várias tentativas para chegar ao que cheguei neste trabalho. Mas acho que a construção da minha personalidade musical foi sendo feita aos poucos e também através de uma série de projetos de que faço parte: de Deolinda, é claro; mas também de Almost a Song — com a Joana Sá; e com o Powertrio com o Eduardo Raon e também com a Joana. E acho que foram laboratórios para estender um pouco mais a minha ideia de instrumento, de construir algo à guitarra e ter uma expressividade própria.
“É o momento em que me sinto muito próximo da guitarra, mas é, sobretudo, o momento em que me sinto mais próximo de uma linguagem que posso dizer que é minha — que tem a minha assinatura”
São lugares que vão ser possíveis de encontrar para quem escutar este Tentos – Invenções e Encantamentos?
Nuns é mais claro do que outros. Para quem me conhece e conhece o meu trabalho com a Deolinda, este disco a solo pode parecer um pouco estranho, mas há alguns lugares a que só cheguei por ter tido a experiência da Deolinda.
Que disco é este, afinal?
São três expressões: duas delas são formas musicais — os Tentos e as Invenções — mas eu usei essa terminologia de uma forma muito livre. “Tentos” era uma forma musical usada no Renascimento, sobretudo na música instrumental. Mas aqui a utilização da palavra “Tento” vem de “tiento”, em espanhol; de “tentativa”. O disco nasce de exercícios de tentativa e erro até descobrir o lugar em que me sinto confortável.
“Deolinda, Almost a Song e Powertrio foram laboratórios para estender um pouco mais a minha ideia de instrumento, de construir algo à guitarra e ter uma expressividade própria”
Quando é que sentiste que tinhas um disco?
Em cada um dos seis temas que compõe o disco, fui atrás das ideias. Agarrei-as e fui atrás delas até sentir que tinha o material certo para cada tema. Foi um trabalho longo, mas seguro no sentido de que sempre que tive um ideia forte agarrei-a e tentei cristalizá-la.
É mais um disco de invenções ou de encantamentos?
É das duas coisas. Eu chamo de invenções aos momentos mais técnicos, de descoberta do instrumento, e os lugares onde eu ponho em prática uma série de recursos técnicos que fui juntando durante uma série de anos; e os encantamentos são os momentos em que procuro uma poética e uma expressividade minha. Em todos os momentos há um equilíbrio bom desses materiais.
“Eu e o Norberto [Lobo] somos amigos há muitos anos e gostamos muito das coisas que um e o outro vão fazendo. Fomos experimentando desenvolver e fazer material juntos — quem sabe se um dia isso irá acontecer”
No ano passado estiveste no ciclo Guitarras ao Alto, em três dias pelo Alentejo, juntamente com o Norberto Lobo. Essa jornada de três dias ajudou a dar alguma luz a este disco?
Quando foi feito o convite para o Guitarras ao Alto, no início do ano passado, eu não tinha material nenhum. Eu estava com um pouco mais de tempo e decidi avançar! Ainda por cima porque o concerto ia ser feito com o Norberto e nós somos amigos há muitos anos e gostamos muito das coisas que um e o outro vão fazendo. Fomos experimentando desenvolver e fazer material juntos — quem sabe se um dia isso irá acontecer. Eu parti para esses concertos com quase todos os momentos musicais já preparados, ainda que de forma embrionária. Mas senti que aquele material podia, um dia, ser um disco.
Conversaste muito com o Norberto sobre isso?
Sim, falámos muito sobre música e sobre o instrumento — mais sobre música.
Acabaste por voltar ao Alentejo um ano depois para gravar o disco: na Igreja do Convento de São Bento de Avis. Porquê a escolha deste local?
A escolha foi feita por mim e pelo técnico, o Hélder Nelson. Decidimos que o material devia ser gravado num espaço com uma acústica com personalidade, que não fosse um estúdio, onde o tempo de reverberação fosse maior. Visitámos algumas ideias e tivemos oportunidade de ver essa igreja que nos pareceu, desde logo a ideal, porque tinha muitas soluções e espaços onde poderíamos gravar. Foi um período de trabalho muito intenso, uma semana inteira com um frio de rachar (sorri)… gravei todos os seis temas em Avis e outro tema que, por vários azares, teve de ser gravado de novo. E não sendo possível voltar a Avis, fomos gravar à antiga igreja do Convento de S. Francisco, em Coimbra, que também é um espaço fantástico! E estava menos frio.
Para um disco destes, tão pessoal e vindo tão de dentro, tem algum peso especial gravar numa igreja?
Eu acho que os espaços, sobretudo destas duas igrejas onde gravei, são muito especiais. E há uma série e detalhes que influenciaram, claramente, o disco. Ali está-se a tocar para os próprios espaços e não para os microfones ou para os headphones. E isso é logo uma grande influência no som final. Depois todas as pequenas coisas: a luz, o toque da pedra, o frio… eu acho que este disco vai ser um documento de que não me vou esquecer da história. Se fosse num sítio neutro não haveria uma série de episódios que aconteceram.
Porque não são quatro paredes camufladas de um estúdio. Num convento como esse — e como em tantos outros — há uma existência naquelas paredes. E isso acrediti que também marque quem está ali dentro.
São coisas pesadas: caminhar num chão que está cheio de sepulturas. Essas coisas são tocantes. Faz acontecer algo de especial.
“Eu gosto de pensar num disco como sendo um disco de guitarra clássica: apesar de a minha formação ter sido clássica, eu já me considero um guitarrista híbrido: com técnica clássica, mas há uma série de outras coisas que fui integrando na construção do meu som e da identidade da minha música”
Este Tentos – Invenções e Encantamentos não é um disco só de guitarras. Há outros desenhos de sons pelo meio. Que outras invenções fizeste para este disco?
Eu gosto de pensar num disco como sendo um disco de “guitarra clássica”: apesar de a minha formação ter sido clássica, eu já me considero um guitarrista híbrido: com técnica clássica, mas há uma série de outras coisas que fui integrando na construção do meu som e da identidade da minha música. Então considero que fiz um disco que acho que o fio central é a guitarra clássica, mas construído com uma série de ferramentas — desde a eletrónica, processamento de efeitos, como delays, loops, técnicas expansivas de instrumento, como tocar com um arco, molas ou copos… também tenho alguma percussão como um gongo ou bombo de orquestra. Assim que comecei a compor os temas, percebi que em muitos deles precisava de ter uma segunda camada que conseguisse representar uma sugestão que a música já me trazia: de imersão ou espacialização de som que não conseguia fazer só com a guitarra ou com as técnicas normais da guitarra.
E isso, acredito, muito por “culpa” dos outros projetos que tens vindo a desenvolver para lá de Deolinda: com Powertrio ou Almost a Song.
Sim, foram laboratórios especialíssimos nessa questão da criação de um “meta instrumento” que não fique cingido às seis cordas e à técnica.
Achas que esta experiência a solo também pode vir a marcar o outro lado da composição que fazes em Deolinda?
Com Deolinda dissemos sempre, desde o início, que as canções é que mandavam e pediam para onde queriam ir. E eu gosto de olhar para o trabalho que fui construindo em Deolinda com a minha guitarra — e apesar de a primeira camada de interpretação ser muito direta — como tendo algumas nuances que se forem ouvidas com atenção já vão abrir caminhos e já trazem abordagem diferentes. Claro que com o tempo, com a experiência de estúdio, e estas experiências fora da Deolinda, foram trazendo uma série de soluções diferentes… vamos ver como as canções reagem.
Entrevista: Bruno Martins