“Quisemos tentar matar o loop!”
Diz uma espécie de adágio popular que a memória de peixe tem a duração de três segundos. Foi a pensar nessa curta duração que, em 2011, Miguel Nicolau se aventurou a fazer músicas a partir de loops de guitarra – “olha um loop de guitarra/olha um loop de guitarra/olha um loop de guitarra” e por aí fora. O primeiro disco dos Memória de Peixe, homónimo, gravado então com Nuno Oliveira na bateria, tinha por base a composição de melodias mais próximas do universo pop, rock, às vezes com paisagens mais funky.
Passaram quatro anos desde o lançamento do disco de estreia: Miguel Nicolau trabalha hoje com outro baterista, Marco Franco (Mikado Lab) e deve ter posto o seu peixe a tomar muito magnésio. A memória do seu peixe é hoje muito maior e já não são só os loops a fazer andar as composições que pertencem a um género mais próximo do jazz-rock, bastante mais ousadas e desafiadoras. O peixe também ganhou um nome: o do segundo disco chama-se Himiko e vive numa nuvem – a Himiko Cloud, que pode ser também uma protogaláxia, como há-de explicar o guitarrista.
É com um enredo muito bem trabalhado, hiper criativo, orgulhosamente nerd, que cresce o segundo disco de Memória de Peixe. Miguel Nicolau e Marco Franco revelam-se dois virtuosos nos respetivos instrumentos, que acabam por criar, juntos, um conceito mágico, fantasista e científico à volta do álbum, à volta desta figura de Himiko. A juntar a isso, um trabalho gráfico extraordinário e uma imagem visual que começa no momento em que pegamos na capa do disco de vinil e que se prolonga para o lado dos videoclipes.
O primeiro disco de Memória de Peixe foi editado há cerca de quatro anos. O que é que fizeste durante esse período até chegares a este Himiko Cloud?
Isto é o resultado de muita coisa, inclusivamente da mudança de formação da banda, ali por volta de 2014. Foi nessa altura que entrou o Marco Franco para o projeto e o Nuno Oliveira acabou por seguir outro caminho. Depois foi outro trabalho que se seguiu a partir daí: querer fazer algo específico e novo com o Marco obrigou-nos a recomeçar o projeto e repensá-lo. Também já havia uma necessidade crescente de tentar fugir àquela prisão do loop e tentar transformar isso num projeto misto, que conseguisse ir piscar o olho a coisas mais orgânicas, abrir o espetro à variedade musical e sónica.
Quando é que percebeste que a ideia dos loops de guitarra era uma prisão?
Logo no início! (risos) Foi uma grande surpresa: o processo não é propriamente intuitivo e fácil, sobretudo na sala de ensaios. Às vezes estamos à espera que saia uma ideia, mas a batalhar numa ideia loopada, a unir bocadinhos para conseguir fazer uma canção. E quando fazes outro loop, tens que unir uma parte à outra e isso pode implicar muito trabalho. Enquanto isso acontece, tens o baterista a olhar para ti…
“Tentámos puxar por nós, enquanto músicos, para encaixar loops dentro de uma canção, ter uma parte mais humana a tocar”
Mas neste disco, o conceito dos loops não foi posto de lado: foi aperfeiçoado?
Sim, creio que houve outras referências, outros universos, que fomos explorar. A título de curiosidade: há uma música do Steve Reich com o Pat Metheny, num álbum chamado Electric Counterpoint, em que o Steve Reich explora um loop do Pat Metheny captando notas individuais para construir a música. É outra forma de aproveitar o loop e inspirámo-nos nessa técnica para construir “Tragic Sands”. Havia uma necessidade crescente de tornar mais orgânica a música de Memória de Peixe: em vez de termos as lutas nos ensaios a tentar fazer sair alguma coisa, tentámos puxar por nós, enquanto músicos, para encaixar loops dentro de uma canção, ter uma parte mais humana a tocar. Acabou por confundir-se tudo e pelo meio começámos a inventar histórias para as canções.
Este Himiko Cloud está mais próximo de um universo do jazz experimental. Não sei se há quatro anos já tinhas a ideia de fazer um disco assim. Se tinhas, conseguiste atingir esse objetivo neste trabalho.
Obrigado! Tinha este objetivo, mas não da mesma forma. Acabei por pesquisar e o Marco Franco também me ajudou muito. No projeto dele, em Mikado Lab, já explorava outras sonoridades. Mas Memória de Peixe, ao vivo, já tinha muito esta vertente do jazz-rock, ainda com o Nuno Oliveira. Só não estava consolidado em disco porque o desafio era outro: vamos fazer canções, limitá-las a três minutos e construir uma espécie de produto pop. Aqui foi exatamente o contrário: quisemos tentar matar o loop (risos)! E o terceiro disco ainda irá ser, provavelmente, outra coisa! O que o projeto Memória de Peixe traz é essa versatilidade estilística de não nos prender a nada.
“No sentido mais geek, a Himiko Cloud é uma protogaláxia de informação e por ser um sítio muito primitivo, achámos que podia ser um bom sítio para unificar todas estas histórias”
Conta-nos de onde vem o enredo das histórias de super-heróis, dos cometas, dos dragões…
(risos).
Estás-te a rir! Mas explica-nos esse fascínio pelos videojogos, pela banda desenhada. Pela cultura pop.
Já vem de há muito. Desde as séries do Carl Sagan, o Cosmos, ou outras séries sobre o espaço. Somos os dois muito interessados por ficção científica e estávamos atentos ao que se andava a fazer no CERN – Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear – onde se estava a trabalhar no acelerador de partículas. As histórias das músicas começaram a ser quase todas sobre coisas específicas, descobertas novas. E uma vez estávamos no aeroporto e vimos uma equipa de equitação na área de fumadores. O Marco, como não gosta nada de aviões, disse que o que era bom era meter um cavalo à frente do avião e nem sequer ir! A coisa começou a descambar para uma história completamente fantástica de cavalos que já voavam e que nos transportavam para um outro mundo fantástico. Acabámos por construir estas histórias sempre unidas por um elemento que as ligava: o peixe voador.
O Himiko.
Sim. A “cloud”, a nuvem, é o refúgio dele. No sentido mais geek, há um outro significado: a Himiko Cloud é uma protogaláxia de informação e por ser um sítio muito primitivo, achámos que podia ser um bom sítio para unificar todas estas pequenas histórias. Himiko também está associado a uma rainha xamânica do Japão.
O lado visual do disco e os vídeos, também têm um papel muito importante nessa unificação.
Foi quando percebemos que valia a pena pensar nisto mais a sério. Eu não conhecia pessoalmente o Andy Singleton, mas mandei-lhe um email e perguntei se gostava de colaborar connosco! O Carlos Gaspar também foi uma das outras almas bondosas e supertalentosas que aceitou criar um mapa gráfico para estas canções. Como já havia as histórias criadas foi fácil fazer as músicas.
“O que o projeto Memória de Peixe traz é essa versatilidade estilística de não nos prender a nada”
Tinham um guião para cada canção?
Sim. E isso ajuda imenso a visualizar o ambiente dos temas. Por exemplo, a “Midnight Hero” é a história de um rapaz que tem superpoderes, mas que ainda não sabe – inspirado num filme do Chan-wook Park, o Thirst, sobre um padre vampiro que anda nos telhados da cidade. Foi esse drive dos saltos pela cidade que deu o mote à música. Depois é tudo passível de ter uma diferente interpretação, mas, por exemplo, a música “Arcadia Garden” já tinha os momentos de “continue” e “game over” mesmo ainda antes de ser realizado o vídeo! Digamos que foi um desejo de tornar um trabalho mais específico, mais conceptual – mesmo que não seja um disco conceptual…
Mas não deixa de haver um conceito à volta do disco. Ao criarem a nuvem do Himiko acabam por criar esse conceito.
Concordo contigo! Sei que é um disco específico e diferente. Mas é também uma peça especial. As pessoas podem estar habituadas a que as bandas não façam segundos discos tão diferentes. Pelo menos, para nós, foi uma ótima experiência.
Entrevista: Bruno Martins