Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk que eclodiu em Inglaterra, mas também descobrir lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical. Um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
Censurados – “Não Vales Nada”
“Para mim o punk é tudo e o resto é merda”. A frase ganha em sinceridade, em verdade totalmente verdadeira, saída do coração e das entranhas, o que não tem de eloquência. A frase pertence a João Ribas, figura fulcral do punk português, e ele levava-a mesmo a sério. Vivia-a em palco e fora dele, vivia-a enquanto figura pública e na intimidade. Literalmente. Os seus Kus de Judas, banda da segunda vaga do punk em Portugal, ensaiavam no seu quarto em Alvalade, o bairro lisboeta onde nasceram também os Peste & Sida. E os Censurados, a banda que Ribas formou quando os Kus de Judas desapareceram de cena, ensaiavam igualmente naquele espaço exíguo.
Para ele, o punk era tudo. Para os Censurados, ou seja, Ribas, o baterista Samuel Palitos, o guitarrista Orlando Cohen, vindo dos Peste & Sida, e o baixista Fred Valsassina, para aquela banda nascida em 1988, o punk era tudo igualmente. É Valsassina que ouvimos em 1991 numa reportagem do Pop Off, o histórico programa emitido na RTP2. Estão eles a falar de canções, discos e concertos e Fred dispara: “Nos concertos o prato forte é a música, não grandes encenações, não os cenários”.
Os Censurados falavam como tocavam. Um punk cru e directo, sem rodriguinhos e sem distracções. Cantavam, por exemplo, contra o racismo e contra o serviço militar obrigatório: estavam lá, em 1989, no concerto anti-militarista organizado pelo PSR, invadido violentamente por militantes neonazis que acabariam por esfaquear mortalmente José Carvalho, militante do partido. Cantavam também, e sem papinhas na língua, a existência no Portugal cavaquista que sentiam muito yuppie e bafiento de tanto desejo de respeitinho.
Talvez por isso, por cantarem aquilo que cantavam, por cantarem daquela forma, tenham conseguido tocar tantos tão rapidamente. Quem os ouvia, quem lhes decorava as letras em cassetes gravadas por amigos, que as tinham gravado de outros amigos – eram os anos 1980 e a net era coisa de ficção científica -, sentia que a banda falava directamente para si, sem barreiras de qualquer tipo. Havia o ritmo que todos juntavam em comunhão de mosh, havia os refrões de “Tu, Ó bófia”, “Srs. Políticos” ou “Kaga na Kultura” que pediam que mil vozes se lhes juntassem, afinadas ou não, para que a música ganhasse pleno sentido.
Começaram a chegar ao público no final de 1988 e da forma mais do it yourself possível, quando a primeira maquete iniciou a circulação de mão em mão, de cassete em cassete – enquanto isso, os concertos amplificavam a mensagem. Em 1990, chegou o primeiro álbum, homónimo. Um ano depois, o segundo, “Confusão”. Tinham os Xutos & Pontapés como fãs e apoiantes – os primeiros discos foram editados na El Tatu, editora fundada por Tim – e o clube Johnny Guitar, indispensável no cenário musical lisboeta da década de 1990, como espaço onde se cimentava o estatuto.
Modelavam-se em referências óbvias – é o punk, caraças! -, mas traziam-nas para outro país, para outra realidade, para outra língua. Eram os Censurados e não estavam aqui para imitar ninguém.
Houve um terceiro álbum, “Sopa”, antes do primeiro fim, e houve uma reunião anos depois da despedida. Nessa altura, já tinham seguido outros caminhos. João Ribas, por exemplo, fiel à sua ideologia de frase única, liderava os Tara Perdida, que novos fãs seguiram com a mesma empatia que aproximara os velhos fãs dos Censurados.
Ribas morreu a 23 de Março de 2014, aos 48 anos. Continuava a ser o mesmo miúdo que, nos idos de 1980, devotara a sua vida a uma ideia e uma música. Na primeira maquete e no primeiro álbum, encontrávamos “Não vales nada”. “Não vales nada se não lutares para ganhar”, gritava ele então, gritam eles ainda.
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso