Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
Mata-Ratos – “Eu Tenho Um Pobre”
“Niilismo; substantivo masculino: Redução a nada; Negação de todo o princípio religioso, político e social”. Assim nos diz o dicionário. Tendo em conta a definição, não é difícil encontrar rapidamente a banda que, em Portugal, melhor se encaixa nela. Chama-se Mata-Ratos e nasceu em 1982, quando o punk, depois da explosão além-Mancha, se implantava definitivamente em Portugal. Saíram de Oeiras para disparar em todas as direcções, com a ambiguidade certa para nunca conseguirmos enquadrá-los devidamente, com refrões provocadores e melodias tão simples quanto os versos cantados.
São desde a fundação uma banda subterrânea, movendo-se nas zonas não iluminadas da cena musical portuguesa, sem um desvio de direcção, sem uma mudança de atitude. São os Mata-Ratos de Miguel Newton, o berrador, o homem eternamente zangado, sempre desejoso de fazer dessa fúria dança furiosa, mas feliz. Foi ele que disse um dia: “Não concordo com a esquerda nem com a direita, simplesmente abomino uma e outra. Não é anarquia, não entramos numa de destruir a sociedade porque sabemos que isso é um bocado impossível. Estamos mais numa onde de ironizar, ridicularizar e mostrar a farsa que é a política: fazer escárnio e desprezar”. Fazer escárnio e desprezar, sem política pelo meio – o que é, obviamente, uma outra forma de se ser político.
Nascido numa família católica conservadora, Miguel Newton, que chegou à banda em 1984 e é a sua alma desde então, teve os seus momentos de epifania quando se deparou com as canções dos Ramones, que lhe mostraram como a simplicidade pode ser uma arma poderosa, com as canções dos Xutos & Pontapés iniciais, que foram revelação pela forma como usavam o português em contexto punk, e com as canções dos hooligans Sham 69, que lhe abriram portas para todas as subculturas em que o punk se dividia, como o Oi! ou o streetpunk.
Os Mata-Ratos, verdadeiro punk das ruas, comparsas de concertos de contemporâneos como os Crise Total ou os Kus de Judas, cantavam as frustrações, as parvoíces, os ódios e as alarvidades em que o dia-a-dia se revelava tão fértil. A ambiguidade da postura tinha reflexos na forma como eram recebidos: são famosos os arraiais de pancadaria em que, por vezes, degeneravam os seus concertos, quando entre a assistência se encontravam punks revolucionários de esquerda e cabeças rapadas de extrema direita.
Em 1990, aconteceu algo curioso: os Mata-Ratos tornaram-se fenómeno popular e estrelas dos topes. Nesse ano, editaram o seu primeiro álbum, “Rock Radioactivo”, por uma multinacional, a EMI Valentim de Carvalho, e assaltaram o mainstream com estrondo – 5º lugar no top nacional, vejam-me lá isto. Eis “A minha sogra é um boi” a ouvir-se em horário nobre, eis uma série de putos a cantarolar “C.C.M.” ou “Armando é um comando” antes de fazerem as suas próprias bandas punk. Eis os Mata-Ratos a deixarem muitas cabeças muito confusas, muitas muito indignadas, outras tantas a gargalhar desavergonhadas com as letras da banda então formada por Miguel Newton, Pedro Coelho, Jó e Cascão.
“Rock Radioactivo” é o álbum em que encontramos “Eu tenho um pobre”, sátira feroz à caridadezinha tão compostinha, um pedaço de niilismo a fazer mira às boas intenções e à consciência que se quer limpa. “Eu tenho um pobre / de quem só eu cuido / sou um cidadão honrado / mereço ser respeitado”. No sobressalto de “Rock Radioactivo”, os Mata-Ratos assomaram perante todos e dispararam sem contemplações. Depois, desceram novamente à sua casa de sempre, o underground. Ainda por lá andam, 35 anos depois.
Ficha Técnica:
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso