Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk que eclodiu em Inglaterra, mas também descobrir lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical. Um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
The Pogues – “Dark Streets of London”
Que a génese da banda esteja no encontro entre Shane McGowan e Spider Stacy num concerto dos Ramones serve bem esta história, mas é apenas uma curiosidade – que, muito a propósito, confirma o que aqui se defenderá. Muito temos falado de como o punk foi, por um lado, um movimento de protesto musical, através do qual se procurou resgatar o rock do pedestal inalcançável ao comum dos mortais em que o haviam enfiado, todo técnica virtuosa entediante atirada goelas abaixo do público que observava à distância em concertos de estádio. Muito temos falado de como o punk foi, por outro lado, uma reacção a um ambiente social específico, a uma sociedade conservadora que carregava na moralidadezinha de pacotilha e desregulava alegremente a economia enquanto, em Inglaterra, mineiros e operários lutavam para manter empregos e direitos e uma juventude olhava o futuro sem ver nele grande esperança.
Muito temos falado disso tudo e ainda não tínhamos falado dos Pogues, banda com génese nesse encontro feliz entre Shane McGowan e Spider Stacy em Londres, num concerto dos Ramones, ano 1977. E quem eram os Pogues? Os Pogues eram espalha-brasas armados de flautas, banjos e acordeões. Eram incendiários de pub que cantavam canções sobre heróis da classe operária e que pontuavam o ritmo de músicas tradicionais irlandesas utilizando como percussão uma bandeja de bar e uma cabeça – a bandeja era utilizada por Spider Stacy, a cabeça de Spider Stacy também.
Os Pogues foram a banda que os Clash escolheram para fazer as primeiras partes da sua digressão de 1984. Os Pogues eram um ajuntamento de músicos dispostos a fazer da música tradicional matéria viva e urbana, música do seu tempo, para o seu tempo, activa no seu tempo. Os Pogues, que tinham como vocalista Shane McGowan, homem de lírica inspirada que cantava, gloriosamente desdentado, num quase balbuciar; homem que, como alguém escreveu algures, tinha uma fé inabalável no poder positivo da música para beber copos, eram punks da música tradicional ou, dito de outra forma, autores de música punk fora da norma. Faziam a sua música subir ao povo nos concertos suados em que a distância entre público e banda se tornava inexistente. Traziam baixo e bateria para o convívio dos banjos, flautas e acordeões e montavam um festim dançante que tanto servia bailes de séculos idos, quanto o pogo inventado pelo punk no final dos anos 1970.
Estrearam-se com um álbum clássico, “Red Roses for Me”, em 1984, e tornaram-se figuras de relevo na cena musical da altura, iguais a nenhuns outros, com canções como “Streams of whiskey”, “Dirty old town”, “Fiesta”, “A rainy night in Soho” ou “Fairytale of New York”. A vida excessiva de McGowan afastou-o da banda em 1991, mas a marca já ficara vincada. Os Pogues vinham de lá muito atrás no tempo, da música cantada olhos nos olhos, som feito vida, enquanto a cerveja corria livremente no pub entre os pares que dançavam. Os Pogues eram precisamente daquele tempo: cantavam a vida lixada enquanto lhe espetavam um dedo bem espetado nas fuças. Descobrimo-los numa canção chamada “Dark Streets of London”.
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso