Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
Dr. Feelgood – “Roxette”
Mas que raio era aquilo que eles viam perante si? Que eram aquelas máscaras, as túnicas à corte do Rei Artur, os vinte mil adereços de palco, insufláveis incluídos, a banda que já não era bem banda porque não conseguíamos perceber quem era a banda e quem eram os membros de orquestra contratados para dar corpo à visão do ser iluminado, assim acreditava o dito ser? Mas que era isso de só tocar em estádios ou em espaços de dimensão equilavente, eles lá em cima, armados em semi-deuses, nós cá em baixo, pacóvios deslumbrados a admirar aquilo que nunca poderíamos ser? Não, não e não. O rock’n’roll não podia crescer dessa forma, balofo e convencido da sua excepcionalidade enquanto obra de arte inatingível. Nada disso. Não, não e não, repetiam.
Rock’n’roll é suor a escorrer pelos poros, e nós cá em baixo, junto com eles no palco, a ver tudo a acontecer mesmo à nossa frente, ao alcance da mão. Isso mesmo perceberam os bravos que, ainda na primeira metade da década de 1970, disseram basta e, fato impecável vestido, mas amarrotado e sujo de nódoas de cerveja e fish & chips, devolveram o rock’n’roll ao seu berço: os pequenos palcos, ou seja, os pubs,os cafés, as pequenas salas. Ali estávamos, frente a frente, olhos nos olhos, banda contratada para dar vida à boémia das noites e público à espera do som certo para que essa boémia fosse vivida como se quer, ou seja, como entretenimento regenerador que nos salvasse até ao fim-de-semana seguinte. Pub rock, chamaram-lhe. Foi criado em Inglaterra, ou, mais especificamente, em Londres, por grupos como os Kilburn & The High Roads, por bandas como os Dr. Feelgood, os verdadeiros ícones do movimento.
Não lhes interessavam os tiques progressivos, não lhes interessava o psicadelismo conceptual, não queriam saber da folk confessional. Eles, os Dr. Feelgood, queriam mostrar que há uma chama que nunca se apaga e que, mesmo que a chama parecesse trémula, eles tratariam de a fazer refulgir em toda a sua glória. Das pessoas para as pessoas, pelas pessoas. Os Dr. Feelgood, formação clássica composta pelo vocalista e homem da harmónica Lee Brilleaux, pelo guitarrista Wilko Johnson, pelo baixista John B. Sparks e pelo baterista John Martin, ou The Big Figure, como lhe chamavam, recusavam os grandes palcos, recusavam seguir o caminho de uma modernidade que consideravam mortífera para a chama primordial do rock’n’roll. Eram mods sem lambreta e sem preocupações com o estado impecável dos fatos que vestiam. Eram pessoal que acreditava no rhythm’n’blues e no rock’n’roll originais e que os transportavam para a sua realidade, a dos os anos 1970 a avançar para a década seguinte, com pose de rebeldes da classe operária (fatos impecáveis vestidos, como dissemos, mas adornados, repetimos, de vincos e nódoas que comprovassem que a vida não é um mar de rosas).
Se as grandes editoras não os queriam, tinham as independentes em formação para os acolher, se os estádios eram espaço onde a verdade morria, tinham os pubs para espalhar magia. Tudo muito simples: blues e rock’n’roll de volta às raízes (mas não exactamente). Rock’n’roll a prenunciar passos futuros pela recusa da divinização e glorificação do virtuosismo. Rock’n’roll como música de dança para boa gente etilizada e conhecedora dos primeiros The Who, dos primeiros Kinks e dos Yardbirds; dos Wilson Picketts, Otis Reddings ou Rufus Thomas de sempre. Nos pubs londrinos, algo novo começava a fervilhar. Contacto directo, contacto intenso. “Maximum r&b”, como Pete Townshend e companhia dissera em tempos.
O pub rock é uma nota de rodapé na história, mas devemos prestar-lhe toda a atenção. Editado em Novembro de 1974, com o clássico “Route 66” no lado B, “Roxette” foi o primeiro single dos Dr. Feelgood, a banda que definiu todo um género. Um género que abriu portas, em Inglaterra, para que uma geração mostrasse que sim, havia alternativa e não precisávamos de fazer todos igual. Mostrou que sim, que havia alternativa e que o passado ainda tinha umas coisas para nos ensinar, principalmente quando soava tão vivo e intenso como o ouvimos ali.
Se o pub é o espaço privilegiado de encontro do povo, todo o povo, o pub-rock foi o movimento de regresso a esse povo antes de se dar o passo em frente. O punk? O punk estava mesmo ali ao lado, à espera de se anunciar.
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso