Unknown Pleasures. Chegou há quatro décadas, no dia 15 de junho de 1979. Diretamente de Manchester. Um guia intenso, inventivo, dilacerante, a que não mais deixámos de recorrer. Ian Curtis, Bernard Sumner, Peter Hook e Stephen Morris tocaram; Martin Hannett assinou a magistral produção; e Peter Saville desenhou a capa, icónica como poucas na história.
Tal efeméride jamais poderia passar em branco na Antena 3, pelo que recordamos cinco canções do álbum de estreia dos Joy Division:
▶️ Disorder
“O Bernard Sumner é irritantemente esperto.” Bernard Sumner era o guitarrista dos Joy Division, e quem o chamou irritantemente inteligente foi Tony Wilson, o fundador da Factory Records, a editora que lançou Unknown Pleasures. Porque era Bernard Sumner tão inteligente? Tony Wilson explica. Citamos as declarações de um velho artigo da revista Mojo: “Certa vez, o Bernard defendeu que o punk rock foi vital porque salvou a música da merda e tornou-a verdadeira outra vez. Mas o punk tinha um vocabulário limitado — só podia exprimir coisas simples como ‘vai-te foder’ ou ‘estou aborrecido’. O Bernard disse que, mais cedo ou mais tarde, alguém iria aproveitar a energia e a inspiração do punk e levá-lo a exprimir emoções mais complexas.” Concluía Tony Wilson: “Foi isso que fizeram os Joy Division. Em vez de dizerem ‘vai-te foder’, disseram ‘estou fodido’.”
No início, os Joy Division eram os Warsaw, banda formada por quatro tipos dos arrabaldes de Manchester, cidade deprimida, esvaziada de gente, esvaziada de esperança entre as ruínas das velhas fábricas e os vapores fétidos lançados pelas chaminés das fábricas que ainda trabalhavam. Os Warsaw eram rudes e ruidosos, grito violento de uma banda inspirada pelo concerto histórico que os Sex Pistols haviam dado na cidade em junho de 1976. Mas eram ainda uma banda a aprender a ser banda.
Os Joy Division — foi esse o nome que adoptaram depois — não eram apenas uma banda; eram, na verdade, um lugar. A música tornara-se intensa, atmosférica e insular, uma viagem por tormentos interiores e por uma tristeza bem mais funda que melancolia, à espera de ser resgatada pelo poder de um som, de uma canção. Unknown Pleasures, o álbum de estreia, editado a 15 de junho de 1979, é o momento em que tudo se torna claro — ou trágica e maravilhosamente negro.
Lado A, primeira canção: “Disorder”. Chega primeiro o ritmo do baterista Stephen Morris, padrão clássico rock’n’roll transformado em batida robótica, estranhamente maquinal e sci-fi. Depois, a linha de baixo de Peter Hook, naquela linguagem que se tornou imagem de marca dos Joy Division: um groove subterrâneo que era, ao mesmo tempo, a base melódica da banda. Junta-se então a guitarra de Bernard Sumner, um flash elétrico entre o negrume, e, depois dela, a voz, aquela voz de barítono assombrado a cantar os seus famosos primeiros versos: “I’ve been waiting for a guide / To come and take me by the hand / Could these sensations make me feel / The pleasures of a normal man?” Ian Curtis anunciava-se. Há quarenta anos, chegava Unknown Pleasures. E era mesmo um novo lugar.
“Os Joy Division são impecavelmente trágicos — desde os textos resignados e suavemente desiludidos até à ‘morrinha’ da sua música. Quase que poderíamos dizer – doem…” Assim os definiu Miguel Esteves Cardoso num dos textos compilados na sua Escrítica Pop. Como quase sempre, MEC identifica o ponto fundamental. Impecavelmente trágicos e doridos, eis os Joy Division. Assim os encontramos no âmago da sua música. Os Prazeres Desconhecidos pelos quais nos guiam não são delícias, não é hedonismo, não é festa e esperança. Os Joy Division ficaram aquém e além disso. “New Dawn Fades”, o título da canção que encerra o lado A de Unknown Pleasures, é sintomático. Um novo amanhecer não chega para que sejamos agraciados com nova luz, mais luz, renovada esperança. O novo amanhecer desvanece-se na escuridão de um novo dia — mas é aí, nessa identificada tragédia dorida, que a música cresce.
“New Dawn Fades” é uma canção que começa lá no alto e que, depois disso, desce antes de continuar em crescendo, com a banda a seguir as palavras de Ian Curtis até ao momento em que os últimos versos lançam o lamento da guitarra, profundamente melancólico. Tudo começa com o som da mesma guitarra, a de Bernard Sumner, a atravessar o espaço amplo que a música parece ocupar — a capa icónica que o artista gráfico Peter Saville criou para Unknown Pleasures, utilizando a imagem das ondas de rádio de um pulsar lá longe no espaço sideral, casa na perfeição com esta música de vastos espaços desolados.
Aqui, percebe-se a presença de material genético de outras bandas e de outros músicos, percebe-se como eram importantes os Doors e as novidades recentes do David Bowie berlinense, o de Low e Heroes, e percebe-se também como a ideia de fazer a música planar é importante para o espírito dos Joy Division — mas não planar no sentido psicadélico dos anos 1960, antes como os dos alemães da década seguinte, como os Can ou os Kraftwerk, de que os Joy Division eram grandes fãs. Esse material genético era, porém, mero sinalizador.
Os Joy Division não podiam e não queriam escapar a si mesmos. “New Dawn Fades” é o som da impecável tragédia e da dor que os atravessa. É, também, sem tristeza, o som de uma banda a canalizar esses sensações numa canção que as sublima. “It was me, waiting for me / Hoping for something more”, canta Ian Curtis quase no fim. “Me, seeing me this time / Hoping for something else”, despede-se ele, antes de Bernard Sumner tomar as rédeas. Naquele preciso momento, já temos mais. Ou melhor, já somos mais.
“She’s Lost Control”, a canção que abre o lado B de Unknown Pleasures, não é só uma das canções mais conhecidas e emblemáticas dos Joy Division. É também uma canção que, nos anos e décadas seguintes, pela sua hibridez orgânico-sintética, qual pós-punk em circuito robótico, serviu de modelo e inspiração para inúmeras outras bandas. Focando-nos em tempos mais recentes, recordemos, para o bem e para o mal, a recuperação do legado pós-punk britânico que assolou o cenário musical no início do século XXI — lembremos os Interpol do início, tentemos esquecer os She Wants Revenge.
Ora, “She’s Lost Control” é resultado de um engano (o do baterista Stephen Morris) e do carácter de um visionário chamado Martin Hanett, produtor de Unknown Pleasures e o homem que levou os Joy Division a descobrirem o som que, sem o saberem, tinham dentro de si.
Stephen Morris adorava os Can. Adorava-os e, naturalmente, adorava Jaki Liebezeit, o baterista que, diz a lenda, conseguia ser mais infalível do que uma máquina. Na capa da edição inglesa de Tago Mago, editado em 1971, via-se algo ao lado do kit convencional de bateria de Liebezeit. Morris queria saber o que era, e o irmão disse-lhe, sem saber do que falava, que era um pad de bateria. Stephen Morris apressou-se então a comprar o primeiro que lhe apareceu. Tão rápido quanto o comprou, percebeu o engano. Aquela coisa que comprara não tinha nada a ver com o som dos Can. Ainda assim, dado o dinheiro que tinha investido, obrigou-se a utilizar o material no álbum que estava a gravar. Felizmente, tinha por perto Martin Hannett.
Ligado umbilicalmente ao punk de Manchester — fora o primeiro produtor dos Buzzcocks —, Hannett era um visionário excêntrico, tão capaz a criar identidades sonoras para as bandas com quem trabalhava quanto inábil a exprimir o que pretendia: os Joy Division recordam-se de ouvir instruções como “este take está bom, mas agora toquem mais cocktail party” ou “a guitarra não está nada mal, mas precisa de um pouco mais de amarelo”.
“She’s Lost Control” é um exemplo do extraordinário trabalho de Hannett. Os Joy Division já estavam habituados às manipulações de fita e ao eco que parecia envolver todo o som e já o tinham visto gravar garrafas a partirem-se para incluir no disco. Para “She’s Lost Control”, usou o tal sintetizador de bateria de Stephen Morris e percebeu que só ele seria insuficiente. Aquilo que ouvimos em cada compasso foi conseguido da seguinte forma: Hannett mandou Morris enfiar-se numa cabine de gravação de voz; deu-lhe um spray anti-mosquitos; pediu-lhe que utilizasse o spray para marcar a cadência do ritmo. No final da sessão, havia a lamentar um baterista prestes a sufocar na cabine e havia um clássico intemporal a celebrar, “She’s Lost Control” de seu nome.
▶️ Shadowplay
Os Joy Division eram o som saído de quatro indivíduos e eram o som da cidade e do tempo em que esses quatro indivíduos se reuniram para formar uma banda. Os Joy Division eram filhos de Manchester e dos seus decrépitos arredores. Eram filhos de uma cidade em que a polícia local atacava os espaços onde, na sua visão conservadora, tacanha, reacionária, se reunia a escória da terra. Quem era a escória? Eram os punks, eram os gays, era o pessoal que não se vestia de acordo com as regras de etiqueta social, eram, em resumo, todos os que não parecessem conformados. Os Joy Division, com altar devotado ao pouco santo Iggy Pop e aos seus Stooges, com os estilhaços da explosão punk espalhados pelo corpo, começaram por ser reação violenta, ruidosa e catártica a todo esse contexto.
Os seus primeiros passos, quando ainda se chamavam Warsaw, mostravam-no claramente. Guitarra cortante, ritmo acelerado, uma voz a alucinar, canções em descalabro. Uma energia que a banda canalizava, mas que não estava ainda certa de saber controlar. Em Unknown Pleasures, guiados pelas mãos hábeis e pelo cérebro ágil do produtor Martin Hannett, operaram um pequeno milagre, transformando a fúria em algo menos exposto e interpretando a raiva como um questionamento interior que o som cavernoso, reverberante, traduziu magistralmente.
À época, o baixista Peter Hook ficou desgostoso. “Só queria que fôssemos como quando tocávamos ao vivo. Não queria que soasse melancólico, não queria que perdurasse”, recordava em This Searing Light, the Sun and Everything Else, o livro que conta a história oral dos Joy Division. Nessa obra assinada por Jon Savage, Peter Hook continua: “Eu só queria cortar a cabeça das pessoas, como o Iggy Pop ao vivo. Não estava interessado em profundidade nem nada disso; só queria pontapeá-las nos dentes e nada mais. Mas não é assim que as coisas sobrevivem.”
Não foi realmente assim que sobreviveram as coisas que dão corpo a Unknown Pleasures. Mas subsistiram nele traços dessa agressividade de que fala Peter Hook, sinais dessa vida em corrida pela cidade que se ama e que se odeia, dessa Manchester que os moldou. Há o baixo tenso de Peter Hook e a guitarra serrada de Bernard Sumner, que explodirá em luz intensa, tremeluzente. Há “Shadowplay”, a canção punk de um álbum que já estava para além do punk. “To the center of the city where all roads meet / Waiting for you”, canta Ian Curtis. Estamos a caminho.
▶️ Wilderness
Tudo é eco, como nos filmes de ficção cientifica em que miraculosamente o som se propaga no vácuo e, assim sendo, ouvimos as naves que se movem ora lentamente, ora num zumbido arrebatador e os disparos de lasers mortíferos a propagarem-se na imensidão. Tudo é eco na “Wilderness” dos Joy Division, a antepenúltima canção de Unknown Pleasures. A bateria de Stephen Morris recebe tratamento jamaicano, mas o eco dub ganha aqui, por comparação, velocidade da luz. A guitarra de Bernard Sumner irrompe como máquina futurista, guincho lancinante a atravessar-nos os tímpanos, enquanto o baixo distorcido de Peter Hook age como âncora a tentar prender-nos em terra. Ian Curtis, por sua vez, dá verbo àquilo que a música sugere: visões de santos e mártires cobertos com o sangue de Cristo, numa viagem pelo tempo e pelo espaço que conduz inevitavelmente ao mesmo lugar. “They had tears in their eyes, tears in their eyes”, canta Ian Curtis quando a canção se despede.
Bob Dickinson, jornalista de Manchester que acompanhou a banda desde os seus primeiros passos, disse deles certo dia: “Os Joy Division soavam a fantasmas e pareciam espetrais, e a sua música ainda retém essa condição, a de qualquer coisa que está morta, mas está viva, que está ali, mas não está ali. A outra questão que surge é que a tecnologia transformou-nos todos em fantasmas, está a transformar-nos em objetos datados e, dessa forma, a matar-nos. Julgo que eles estavam conscientes disso, que se sentiam assombrados por essa consciência e que descreveram essa condição, que é o que faz a sua música tão relevante e ainda tão poderosa.”
A selva que os Joy Division descreveram como poucas outras bandas, esse ermo que habitavam e que era tão real quanto o cimento sujo da cidade e a violência e as injustiças que escondia, tão real quanto era verdadeira a angústia, a dor e a tristeza que as violências e injustiças provocavam, essa “Wilderness” dos Joy Division, não desapareceu. É por isso que se mantêm tão relevantes e é por isso que continuam a ter tanto impacto em gente que nasceu muito depois de Ian Curtis desaparecer — e, com ele, desaparecer a banda que se transformaria depois em New Order.
Um ano depois de Unknown Pleasures, foi editado Closer, o segundo e último álbum dos Joy Division. Ian Curtis morrera pouco antes do lançamento, aos 23 anos. Quatro décadas depois, a música que nos deixou, essa que o mundo descobriu verdadeiramente com Unknown Pleasures, continua. Ian Curtis está morto e está vivo. Os Joy Division estão aqui, definitivamente.
Textos: Mário Lopes | Locução: Nuno Reis
Sonoplastia: Gualter Santos